Voltar à normalidade… ou nada pode continuar como dantes?

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1. Vivemos na civilização da velocidade, da pressa em chegar sempre antes do outro. Esta crise obrigou-nos a parar. Mas suspeito que este medonho susto pandémico ainda não conseguiu alterar, em profundidade, a mentalidade geral. Ouve-se, agora, dizer, com aliviados desabafos, que estamos a regressar à vida normal.

Ora, aquilo a que chamamos vida normal já mostrou, nesta calamidade, as suas anormalidades estruturais, semeadas de velhas e novas desigualdades, de que o desemprego, a insolvência das empresas, a fome, a insegurança na vida dos cidadãos, o medo do futuro são fenómenos reconhecíveis.

Os sistemas autoritários pretendem substituir, pelo quero, posso e mando, a lentidão das decisões democráticas de consensos alargados.

No entanto, se as democracias se perderem na exibição de labirínticas discussões clubísticas, acabam por cansar os cidadãos que reclamam e esperam resultados, em todos os domínios, para a construção do bem comum. E o cansaço não é bom conselheiro!

2. Será possível combinar as respostas às urgências maiores da população mais pobre e ir alterando o sistema económico dominante e insustentável, assente na exploração ilimitada de recursos limitados e na manutenção de escandalosas desigualdades sociais?

Perante a tragédia que estamos a viver, e pensando no futuro, já é recorrente o veredicto: nada pode continuar como dantes. Há quem pense que é este o tempo certo para definir estratégias económicas para o futuro, assentes nas áreas da biodiversidade, alterações climáticas e saúde pública.

Mas, segundo os peritos, o ritmo da mudança, na Europa e no resto do mundo, é demasiado lento para evitar os golpes duríssimos que, nos próximos anos e décadas, nos esperam.

Numa altura de emergência como é o caso desta crise pandémica, e num deserto mundial de excelência política, para os políticos normais (já não falo dos Trump, Bolsonaro e outros que tais), o paradigma da ação, em vez de escolher uma longa e esforçada política que «impeça o futuro de desaguar no inferno» (Viriato Soromenho-Marques), continua a passar por satisfazer de imediato as clientelas do presente: é a opção mais fácil e de recompensa pronta.

As notícias que vão chegando do regresso à «normalidade» não nos iludem. Um exemplo: os países despejam décadas de futura dívida pública para apoiar sectores que nos estão a conduzir para o beco sem saída do colapso ambiental (o BCE, desde março, já aceitou, como contrapartida colateral, ativos de empresas de combustíveis fósseis no valor de 7 mil milhões de euros; Lisboa parece querer injetar mais de mil milhões na TAP, sem que se perceba se vai interferir na gestão da empresa).

A dispendiosa reconstrução da normalidade não parece ir além do regresso à distopia de uma modernidade que continua a ignorar os limites dos recursos existentes e persegue a ideia de um crescimento autofágico, como se não houvesse amanhã.

É preocupante que, no caso da região do Algarve, mais de metade da sua riqueza dependa direta ou indiretamente da monocultura do turismo, assente na sazonalidade e na forte dependência de certos mercados emissores (que agora se nos revelam precários).

E, no entanto, desde há uns 20 anos que se fala de alternativas complementares ao modelo de Turismo que temos. Além da alteração do modelo de turismo, o saudoso professor Ernani Lopes apontava cinco apostas estratégicas para o Algarve no século XXI: produção de energia «limpa», tecnologias da informação, cluster do mar, indústrias do lazer/animação e cluster da saúde/geriatria. Infelizmente parece que ninguém pegou e está quase tudo por fazer. O desafio poderia ser agora.

3. Sou dos que acreditam que é este o momento certo para desenhar o futuro. Parece-me, no entanto, que isso não vai ser possível sem uma autêntica conversão de mentalidades e a prática de uma cultura que alimente, na vida quotidiana, a paixão pelo cuidado do mundo e não pela sua dominação destruidora. E isso mexe com os nossos desejos distorcidos. Quem deseja tudo para si próprio só pode ver, nos desejos dos outros, rivais a abater. A cultura do ego é assassina. Mas, amigo leitor, olhe que é bom sentir alegria com a diferença!

Manuel da Luz | Cidadão algarvio