Uma aula para o João Costa

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Pois hoje, senhor ministro da Educação, João Miguel Marques da Costa, repetimos a aula só para si.

«Hoje, na nossa aula, vamos falar de…», eis o início de tantos dias da semana para os 130 mil professores da escola pública portuguesa, no ativo. Tantas vezes esta frase repetida, uma oração pela ciência e pela imaginação, que bate teimosamente à porta de uma geração de jovens, aparentemente distraídos, revendo-se no brilho dos ecrãs em vez de se espantarem com o mundo à sua volta. E os professores, o que fazem? Capitulam? Entregam o currículo nos colégios privados? Cedem à reiteração vazia e inconsequente de conteúdos com o único propósito de alcançar uma taxa de sucesso que sossegue as elites governativas e posicione Portugal na média europeia das boas práticas educativas?

Não. Repetimos a lição, mas de uma forma diferente, porque a escola pública é feita de diversidade humana, da multiplicidade de visões e de vontades e não de uma uniformidade bacoca e manobrável.

Pois hoje, senhor ministro da Educação, João Miguel Marques da Costa, repetimos a aula só para si, para a recuperação das aprendizagens não realizadas durante a pandemia de COVID-19, para o esclarecimento das dúvidas residuais e, mais ainda, em consagração do princípio do trabalho colaborativo interpares, partilharemos a nossa aula com outras escolas além-fronteiras, conscientes que somos, depois de centenas de horas de formação individual, muitas delas pagas por nós, de que a degradação da escola portuguesa não é caso insólito, mas antes grassa por essa Europa fora, executada habilmente nos cortes orçamentais anuais.

Ponto um. «Hoje, na nossa aula, vamos falar sobre o saber ouvir», o parente pobre no ato comunicativo. Comecemos por dar-lhe um exemplo significativo, os milhares de pais, técnicos auxiliares, alunos e cidadãos, em geral, que têm vindo a manifestar o seu apoio a uma luta que existiu, durante décadas, somente no inconformismo da sala de professores.

Uma classe profissional que tem posto, consistentemente, à frente do seu bem-estar e do convívio familiar a máquina burocrática insaciável, que é a escola portuguesa, e o primado cognitivo dos seus alunos. Agora segue o argumento: desde dia 9 de dezembro que as escolas do país estão em greve ininterrupta, desde 9 de dezembro de 2022 que há centenas de escolas fechadas semanalmente, milhares de professores na rua, em protesto fora das escolas. Desde 9 de dezembro que deixámos a complacência e a cordialidade de lado e decidimos incomodar quem nos governa, porque incómoda é, também, a indiferença que nos é votada por si, senhor ministro da Educação, nem uma palavra de anuência por si proferida, nem um voltar de cabeça perante os mais de 20 mil professores que se manifestaram a 17 de dezembro de 2022, em Lisboa. Claramente, o domínio do ouvir não está plenamente adquirido.

Ponto dois. «Hoje, na nossa aula, vamos falar da cidadania ativa», afinal, parte integrante das atitudes e valores incluídos no perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória, que o senhor ajudou a desenhar. Opulento pensador, fraco aplicador da sua fé. Vejamos o exemplo significativo, milhares de professores em fuga do ensino há mais de duas décadas, em fuga antecipada, cansados, envelhecidos por dentro, com reformas cortadas ao meio, com licenças sem vencimento, porque a promessa de um percurso profissional digno lhes foi sonegada, com sucessivos horários incompletos, ultrapassada a barreira dos 40 anos ou dos 300 quilómetros de distância de uma suposta casa, paga com o sacrifício cumulativo de um quarto ilegal algures no quadro de zona pedagógica do Algarve. Afinal, ainda não aprendemos a poupar dinheiro, dormindo na rua.

O argumento, Portugal apresenta um perigoso défice de professores em diversas disciplinas e regiões, situação que nos próximos anos ameaça paralisar inúmeras escolas. O trabalho de casa não foi, obviamente, feito, não sabemos se por inépcia ou se por vontade de esboroar o que distingue pela positiva o sistema de ensino português de o de muitos outros países: a obrigatoriedade de uma formação académica e didática na área científica de lecionação e um sistema de colocação de professores virtualmente incorruptível, onde todos os proponentes se regem publicamente pelos mesmos critérios. Aqui, repete-se a falha na liderança, a sua liderança ministro João Costa, pois essa não é uma atitude ubuntu (1). A redenção moral seria alcançada se, hoje mesmo, pegasse num apito e, de mochila às costas e crachá ao peito, fosse gritar para a porta do Ministério: «políticos a ajudar também estão a trabalhar!». Altamente improvável pois, contrariamente aos professores que inspiraram milhares de seguidores em poucas semanas, o senhor ministro ver-se-ia sem companhia na sua luta até ao fim dos tempos.

Ponto três. «Vamos concluir a nossa aula com o conceito de avaliação», afinal, a chave que encerra a verdade sobre as competências adquiridas. Aqui, propomos deixar a avaliação formativa de lado, pois o escrutínio da evolução no desempenho do cargo certamente deixá-lo-ia profundamente desmotivado, e não é isso que queremos. Mais uma vez, um tema profícuo em exemplos, não fosse a classe de professores avaliada em função do desempenho, diligentemente traduzido em casas decimais e grelhas de grande rigor científico, mas com a progressão baralhada ao som da música das quotas de acesso aos 5º e 7º escalões, barreiras dificilmente transponíveis para quem já tem, pelo menos, 30 anos de serviço.

Tristemente, não há como o senhor fugir ao «insuficiente» ou, como o projeto MAIA (2) tão diligentemente defende: «não revela a aquisição do conceito em causa». Terminada a avaliação política, resta-nos a avaliação moral, e não há melhor argumento, como a Filosofia nos ensina, do que recorrer aos modelos exemplares, neste caso Nelson Mandela, que disse «O que conta na vida não é o mero facto de termos vivido. É a diferença que fizemos na vida dos outros que determinará o significado da vida que levamos».

Este é um princípio que honramos diariamente em frente aos nossos alunos e elevamos a lição de democracia na rua, diariamente, em frente às escolas onde trabalhamos. E o senhor ministro, João Miguel Marques da Costa, quem honra diariamente? Que lição quer deixar na memória dos que serve, quando chegar a sua vez de ceder o cargo a quem vier a seguir?

1) Termo designador de uma filosofia de origem africana, que se apoia nas ideias de interdependência e de solidariedade, selecionado para nomear um projeto de capacitação de jovens, com elevado potencial de liderança. Presentemente em vigor em cerca de 74 escolas.
2) Projeto de Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica, iniciado em setembro de 2019.