Um país por construir

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Do desordenamento do território aos baixos salários temos um país por construir.

Com o aproximar dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, mais do que questionar o antes e a importância desse momento histórico que nos libertou da ditadura, da repressão e de uma vida enfadonha e cinzenta, importa perguntar, o mais objetivamente possível, o que nos deram estes anos de democracia, as conquistas sociais, os direitos, garantias e liberdades, as alegrias, mas também o muito que nos continua a deixar insatisfeitos: da educação à saúde, do ordenamento do território à habitação, da insatisfação de quem não tem casa ou tendo um teto passa muito frio no inverno, da tristeza dos atentados urbanos que esvaziaram a vida cívica, cultural e comercial de muitas cidades para a remeter para depósitos concentracionários de consumo. Do desordenamento do território aos baixos salários temos um país por construir.

Da canção do Sérgio Godinho… Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação… no despertar da esperança do país de Abril, de uma sociedade mais próspera e justa, ao desencanto presente no perpetuar e até agravar de desigualdades, de não ter médico de família e mal sobreviver com um salário mínimo, que Portugal temos hoje, que país nos habita ou queremos habitar… Do Ai Portugal, Portugal, de que é que tu estás à espera?! Tens um pé numa galera e outro no fundo do mar,… do Jorge Palma, qual o sentido da vida, de que estamos nós à espera… ao Vim em passo de bala/Deixei o meu amor pra trás/Faz tanto frio em Paris/Sou já memória e raiz… da canção de Pedro Abrunhosa, de quem continua a ter de partir e a encontrar melhores oportunidades lá fora. Quantas décadas de Democracia…

Uma reflexão/comparação que por vezes me dá que pensar, para a qual apenas em parte encontro resposta, é entre as duas democracias ibéricas, ambas sucedendo a duas ditaduras fascistas. Nós, primeiro, com uma revolução que conheceu todas as etapas clássicas de um verdadeiro processo revolucionário: extinção de instituições e instrumentos de repressão (polícia política, censura), radical alteração da hierarquia e comandos militares, apropriação dos meios de produção pelos trabalhadores, fuga dos capitalistas, dezenas de partidos e outras tantas ideologias representadas.

As datas marcantes: 28 de setembro 1974; de 11 de março a 25 de novembro de 1975, o designado Processo Revolucionário em Curso (PREC), período quase sempre conotado de forma negativa pelo seu radicalismo, mas que, no meu entender, permitiu conquistas sociais significativas, nomeadamente a nível salarial e da segurança social.

Assistiu-se a confrontos entre defensores das políticas revolucionárias e eleitorais. Por fim a acalmia, o respeito pelos resultados das primeiras eleições livres e uma Constituição (1976), das mais avançadas da Europa em termos de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Em Espanha, dá-se uma transição pacífica, muito hesitante e negociada nos gabinetes das altas esferas do poder político e militar, que apenas tem lugar com o rondar da morte ao ditador Franco. Escassa participação popular e ausência de pressão nas ruas. Os partidos movem-se timidamente, a ação mais radical vem das vontades reivindicativas nacionalistas das regiões. Morre o ditador e é escolhido o rei. Os valores conservadores persistem e muitos dos militares, juízes e figuras gradas do regime substituído mantêm a sua influência. O mundo empresarial, da indústria e da finança mantém-se intacto. A Espanha torna-se uma democracia com muitos focos infecciosos do passado, como demonstraram posteriormente a ação do seu Tribunal Constitucional ao afastar o juiz Baltázar Garzón, que quis prender Pinochet e na ação judicial e julgamento dos independentistas catalães mais recentemente.

Assim sendo, pergunto: como é que o meu país, que foi revolucionário, tem hoje salários médios e mínimos quer no público, quer no privado, muito inferiores ao país vizinho?… e salários demasiado elevados na gestão e administração de empresas com capital público, ao nível dos países mais ricos (Alemanha, Suécia)?

Qual a razão dos nossos baixos índices de produtividade comparando com Espanha? Se trabalhamos mais como é isso possível? O que faz com que os nossos autarcas permitam o licenciamento e implantação de grandes áreas comerciais dentro das suas cidades, sufocando o comércio e vida cívica que antes existia? (E depois fazem aquelas ridículas campanhas Compre no comércio local, quando entretanto já permitiram mais um hipermercado).

Os governantes regionais e locais espanhóis aprovam essas grandes superfícies comerciais afastadas do centro e mantêm pujante a vida nas ruas e praças. E comparem a quantidade de jardins e parques verdes? Os nossos autarcas não viajam?!… Visitem Vitória, no País Basco, por exemplo, percebam o que é uma cidade verde.

Cidades muito mais industrializadas do que as nossas e rejuvenescidas com investimento público na reabilitação urbana e planeamento ordenado. E que dizer do IVA e das diferenças de preços no gás, eletricidade, combustíveis entre a vizinhança ibérica?

Comparem também os preços das casas em Portugal e Espanha? Bem mais baratas. Um apartamento com a mesma tipologia pode custar 200 mil euros no Algarve e 80 mil na Andaluzia.

Onde posso, então, esboçar uma tentativa de resposta para esta divergência na História contemporânea de ambas as democracias? É sabido na dimensão territorial (basta olharmos um mapa físico da Península Ibérica) e consequentemente na maior riqueza na exploração de recursos naturais, em atividades económicas como a agricultura, por exemplo; na pujança industrial de regiões como a Catalunha e o País Basco.

A dimensão e as dinâmicas urbanas das cidades também é incomparável: muitas cidades médias em Espanha são maiores do que algumas das nossas capitais de distrito. As autonomias regionais, nascidas na era pós-Franco, dotadas de verdadeiro poder, vastas competências e meios de investimento, também contribuíram em muito para o desenvolvimento do país vizinho.

Assim como a existência de um meio empresarial menos dependente do Estado. Veja-se a recente polémica com os custos da Jornada Mundial da Juventude, por cá corre tudo por conta do Estado e Câmaras (ou seja dos contribuintes) e algum dinheiro da Igreja; aqui ao lado, foram as empresas que avançaram, sendo recompensadas com benefícios fiscais pelo Estado, resultando numa solução bem mais económica.

Pois bem, não sendo iberista nem defensor de uma qualquer versão futurista de união ibérica, preferindo conhecer a vizinhança ao simples e apressado deslocar para atestar o depósito, lamento apenas que o meu país não seja mais do que aquilo que é. Envergonha-me a pobre romaria da poupança que nos leva a passar a fronteira.

Talvez fosse bom descentralizar, tornar mesmo possível a regionalização de Portugal, apesar de sermos um país pequeno e com um Estado de forte tradição centralizadora, mas não aqueles arremedos que estão a ser congeminados pelo Governo de passar serviços nas mais diversas áreas, da educação à cultura, para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), as quais não são eleitas por sufrágio universal, com o voto dos cidadãos e têm chefias designadas apenas por convergência de interesses partidários.

Falta-nos também massa crítica na classe política. Prevalece um status quo político estereotipado onde a originalidade é desencorajada. Formatados e acomodados reagem mal a muitos bons projetos e ideias inovadoras. Na orientação do sistema de ensino falta uma vontade política esclarecida e sedimentada no tempo, para lá dos slogans da paixão e da burocracia legislativa dos últimos anos, sinceramente apostada na valorização da escola pública e dos professores. A educação e a saúde públicas são dois pilares fundamentais da sustentabilidade de uma sociedade democrática evoluída.

Por fim, esse mal maior da corrupção, que tudo mina, não apenas nos casos mais mediáticos e escandalosos envolvendo dinheiro, mas no descrédito generalizado em que mergulha toda a vida pública e social. Um caldo cultural nascido nas trocas de favores entre amigos, na cunha, no dar um jeito, presente nos mais variados aspetos da vida profissional e não só política de muitos portugueses.

Queria de nós um Portugal diferente, mais produtivo e criativo. Menos lambido e mais frontal. Talvez então tivéssemos energia coletiva para aprofundar a Democracia e calar a demagogia do discurso populista.