E da distância, do outro que vem de tão longe, o sorriso e o gesto de proximidade de quem te oferece um delicioso e desconhecido refresco numa tarde quente de Verão.
Vem este texto falar-vos de Saba e Masood, jovem casal paquistanês, muçulmano, e vizinhos de curta duração. Correspondo igualmente ao cumprimento de levar a mão ao peito e abri-la em direção ao outro, saudação fraterna e religiosa. Curiosamente, é sempre ela que toma a iniciativa da conversa, falando em inglês, língua que usa com fluência. Muito nova, atenta, querendo saber mais, envolvendo a cabeça com um comprido lenço que se prolonga pelos ombros quando vem à rua, mas rosto livre. Ele, mais reservado, não falando inglês e mal compreendendo o português, resume a sua sociabilidade ao sorriso simpático e à saudação de levar a mão ao coração, como se dissesse – estou contigo, irmão.
Trabalham ambos num restaurante da cidade, onde Saba se apresenta de maneira ocidental, calças de ganga e cabeça descoberta. Contaram-me que quando chegaram a Silves, olhando a cidade do alto da estrada, tiveram o sentimento ou a revelação de que esta seria a sua cidade, o lugar onde a promessa de futuro se cumpriria.
Cruzando o tempo, de maneira fantástica e anacrónica, imaginei o que pensaria o jovem Al Mutamid, príncipe e poeta, tão saudoso dos lugares da sua juventude silvense, deste humilde casal do séc. XXI, não guerreiro, não conquistador, migrantes apenas da fortuna que foge à miséria, mas igualmente muçulmanos em tempos diferentes.
Na sociedade portuguesa atual, com milhares de imigrantes das mais variadas proveniências, a novidade da sua presença nas nossas ruas e locais de trabalho e convívio é um dos desafios maiores à nossa capacidade de partilha humana e integração social.
O outro como amigo, o outro como inferno, o outro como mistério, o outro como igual…
Do medo e da incompreensão emergem as vozes de quem vê o outro como uma ameaça, os movimentos nacionalistas e identitários sustentados na demagogia política de falsas verdades e ideias simplistas, tudo confundindo.

Mas também a aceitação e a tentativa de aproximação, com a defesa da coabitação multicultural e multiracial. Apesar de o mais das vezes, a integração desta imensa maré humana se traduzir apenas no aproveitamento do chico-espertismo nacional de empregar a baixo custo. Ou seja, apenas integração económica através da exploração laboral e não uma efetiva integração social. Falha também o Estado, na concessão de vistos e legalização, na fiscalização do trabalho, na aculturação e integração escolar (por exemplo, os menores em idade escolar não deveriam ser integrados nas turmas apenas em função do nível etário, sem qualquer conhecimento da língua do país de acolhimento; deviam sim cumprir 1/2 anos de aprendizagem básica e intensiva do português para poderem compreender uma aula de História ou Ciências). «Do outro lado da grade linguística há um tu. Esse tu preserva ainda a proximidade da distância» (Byung-Chul Han).
Afirmo que uma das mais dramáticas expressões da vontade humana é a liberdade de partir em busca duma vida melhor. Seja por necessidade material ou espiritual.
Como bem sabemos, da nossa experiência histórica de país que viu sair milhares de compatriotas, sobretudo nos 60 e 70 do século passado, um autêntico rombo humano na população, de gente a fugir a um destino de vida miserável num país triste e sem horizontes. Emigraram, principalmente para a França e Alemanha, em busca de melhores condições de vida, outros mais jovens a fugirem à guerra colonial. Muitos a salto, quando não autorizados pelo governo da ditadura, como a odisseia que me foi contada por um homem idoso de S. Brás que atravessou a Península Ibérica a pé, dormindo ao relento ou em palheiros, chegando a estar detido pela Guardia Civil.
Vidas de odisseia, como a odisseia de muitos que hoje vêm até nós. Nem todos são dignos da nossa boa vontade, também é verdade. Temos as redes de tráfico, a cruel exploração entre os próprios. Mas esse é um problema de polícia, de perseguir quem não cumpre a lei. De identificar e resolver os problemas, por parte das autoridades.

São fortes os que partem, os que não se resignam a uma vida mesquinha ou de pobreza. São bem-vindos ao meu país o asiático e o africano, os pobres e os perseguidos. Quem sabe, num futuro ainda não visível e algo distante, fruto de um hoje problemático, possa emergir desta confluência de culturas e raças uma sociedade mais interessante. Se pensarmos bem, nunca fomos grande coisa orgulhosamente sós. E o mundo continuará a girar sem nós e a História, essa, depressa nos esquecerá – como canta Cave – mas o céu olha-nos e os anjos conduzem a humanidade que nos resta.
A Saba, num gesto de grande generosidade, e descendente de uma hospitalidade civilizacional oriental, resolve brindar-nos com um jantar surpresa no restaurante onde trabalha.
Tacinhas de salada de legumes; um arroz longo de especiarias, fragrante e muito saboroso; frango no forno bem passado, bem aromatizado e com uma textura crocante. Um jantar paquistanês. Ah!… e o refresco que sempre faz questão de oferecer, uma limonada com groselha e umas sementes de manjericão (?) – apropriada aos dias quentes – diz.
Obrigado, Saba e Masood. Bem-vindos sejam a Silves. Deus vos proteja.