Existe hoje a mania de amesquinhar a importância cultural dos Jogos Florais, tendo-se mesmo a ousadia de apoucar os seus concorrentes.
Creio que esta ideia, infeliz e injusta, foi divulgada após o 25 de Abril, pelos poetas dos novos movimentos literários que, na esteira do surrealismo, se perfilavam por toda a Europa, sob a invocação da libertação da poesia, fazendo tábua rasa de todas as regras e modelos estilísticos herdados dos clássicos.
Aceitamos plenamente que se enverede por novos caminhos para a criação duma poesia mais livre, mais conceptual e menos ortodoxa.
Nos tempos que correm – cada vez menos ilustrados e mais materalistas -, a poesia livre e sem regras estilísticas tornou-se numa opção natural. Concordamos inteiramente. Agora o que discordamos é que se depreciem e amofinem os Jogos Florias como concursos literários de divulgação e fomento da poesia.
Na verdade, esses certames poéticos dividem-se em modalidades sujeitas ou não às regras clássicas, não havendo por isso razão para que não haja lugar para todos poderem concorrer, os mais conservadores e os mais progressistas.
Por outro lado, convém lembrar que os Jogos Florais são competições submetidas a confronto e à apreciação de um júri, longe, portanto, dos prémios literários atuais avaliados por mero auto-criticismo de admissão mais ou menos favorável, quando não por favoritismo político, proteção partidária ou simples amiguismo. Os prémios literários, não são mais do que uma capa legalista de proteções insofismáveis.
A prova disso é que nos Jogos Florais, que se realizavam por todo o país, se revelaram vários talentos que viriam a consagrar-se na lira de Orfeu.
Um desses exemplos foi o de José Carlos Ary dos Santos, que em 1951 ganhou o 1.º prémio de soneto nos Jogos Florais da Praia da Rocha. Nessa altura, concorreram 400 composições poéticas, tendo cabido a José Morais Lopes o 2º e 3º prémios na modalidade do soneto.
Aliás, esse nosso amigo e associado da AJEA, recebeu prémios em todas as modalidades à excepção da prosa, da fotografia e da pintura.
Ao tempo o poeta Ary dos Santos, era ainda um ilustre desconhecido que residia em S. Martinho do Porto, não tendo qualquer pejo em concorrer aos Jogos Florais e até em apoiar esses certames, mesmo depois de se haver revelado no programa Zip-Zip e nos Festivais da Canção como um dos melhores poetas do nosso tempo.
Os júris estiveram reunidos em 20 e 21 de setembro de 1951, para avaliar os trabalhos apresentados a concurso, sendo o de poesia constituído pelos poetas Cândido Guerreiro e Emiliano da Costa e pelo jornalista Mário Lyster Franco; o da prosa era composto pelos Drs. José Fernandes Lopes e Justino Bivar; na pintura era o Mestre José Campas quem avaliava os trabalhos e na fotografia eram os ateliers Matos de Faro e Oliveira de Portimão.

Como se vê, a composição dos júris era bastante credível, emprestando a melhor reputação não só aos Jogos como sobretudo aos seus vencedores.
A cerimónia de entrega dos prémios decorreu no casino da Praia da Rocha, nas noites de 22 e 23 de Setembro, tendo a participação de artistas de Lisboa, como a atriz Maria Dulce e a cantora lírica Manuela Laborde consagrada artista de S. Carlos.
Resta-me acrescentar que desconheço se este belo soneto foi ou não recolhido nas suas obras completas do saudoso José Carlos Ary dos Santos:
Plenitude
Encontrei afinal o meu caminho!
Ando louco de azul, ébrio de terra!
Como as aves que vão de ninho em ninho
Sem saber se no mundo há paz ou guerra.
A minha alma mais rubra do que o vinho
Beijo de fogo que a verdade encerra –
Tem a doçura cândida do linho
E a resistência heróica duma serra.
Adoro o sol em êxtases pagãos,
Abençoando o dom da claridade
Que faz vibrar de luz todo o universo.
Trago o luar escondido em minhas mãos
E esta onda suprema que me invade
É o sangue da minha alma feito verso!
O mais interessante de tudo isto é que da participação nesses Jogos Florais da Praia da Rocha nasceu uma sólida e fraterna amizade entre Ary do Santos e Cândido Guerreiro, ao fim e ao cabo dois grandes poetas, o primeiro já consagrado pelos anos e pela obra publicada, o segundo a dar os primeiros passos na senda de Orfeu.
Sei que Ary dos Santos manifestou por várias vezes nos jornais e no convívio de amigos, a sua admiração pelo grande poeta Cândido Guerreiro, considerando-o como um dos melhores sonetistas do seu tempo.
E a prova está no soneto que enviou ao «Correio do Sul» para ser publicado em sua homenagem:
Viagem ao Dr. Cândido Guerreiro
Vai!
Segue o teu rumo sem parar
Que te importa o mundo?
Bastam-te o Céu
E o mar
Vai!
Porque depois de tanto caminhar
Ainda podes cingir o Infinito
Na expansão do seu grito.
Vai!
Despe o teu manto de magestade
E de poder
Sê pobre como as cigarras
E alegre como as papoilas.
Vai!
Sem chorar nem sofrer
Vai!
Que te importa a cadência dos instantes
E o tempo que passou
Vai!
Pelos caminhos que seguias dantes
E que a vida apagou.
Vai!
Segura em tuas mãos
Os teus cantos dispersos.
Vai!
E chama ao Sol, ao mar e à terra teus irmãos
Pois são da mesma carne dos teus versos.