Fui eu quem esteve no centro da organização do movimento de entrega de livros em Faro, no sábado, 4 de fevereiro, no antigo espaço que o alfarrabista Simões deixou em 2015 por falta de clientes. Atendendo a que foi um ato invulgar, que mobilizou tanta gente e deu tanto que falar nas redes sociais, é importante explicar como e porque sucedeu. De facto, por falta de clientela (não é demais frisar), o sr. Simões deixou de ter capacidade para pagar as rendas que se foram acumulando, resultando na sua saída.
Na altura, devido a não ter condições para guardar o espólio noutro local, manifestou o desejo de doar tudo ao município de Faro.
O proprietário do espaço, acedeu ao desejo e estabeleceu a necessária articulação com o município que, por sua vez, selecionou tudo quanto lhe convinha guardar e convidou outros municípios e instituições (bibliotecas e associações), que também por lá passaram e o mesmo fizeram. No entanto, e mesmo depois disto, a quantidade de livros continuava imensa, questão que preocupava sobremaneira o proprietário do imóvel que, com sensibilidade, quis encontrar destinatários adequados para todos estes livros que ainda sobejavam.
Em finais de 2016, eu soube desta situação, e como sou dirigente de uma organização que se preocupa com estas questões, neste caso, a Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão (APOS), propus ao referido proprietário encontrar uma solução. A APOS voltou a publicitar o espólio junto de municípios e escolas, que também lá se deslocaram e escolheram os livros que quiseram.
Ainda assim, continuavam milhares nas prateleiras… Foi então que a APOS decidiu agendar um dia para entrega pública gratuita. Numa primeira fase, enviamos a convocatória através da nossa newsletter (que chega a 700 endereços de e-mail, incluindo alguma imprensa).
Enviámos o aviso com uma semana de antecedência, tal como é costume quando divulgamos nossos eventos, que, regra geral, atraem poucas dezenas de interessados e raramente são noticiados pela comunicação social.
A verdade é que, talvez pelo insólito, coisa rara e talvez mesmo nunca vista, rapidamente a comunicação social lhe deu divulgação.
Admito que fui surpreendido pela mediatização. Agora que olho para trás, compreendo que a situação, de tão invulgar, e também devido ao facto que todos estes livros resultam de anos e anos de trabalho do sr. Simões, se justificou.
A verdade é que a APOS não estava preparada para tal. No final de sábado, ao meio-dia, fechámos a porta e não restou um único livro. Ou seja, o objetivo foi cumprido com sucesso. No entanto, não nos foram alheios os inúmeros comentários, sobretudo os maledicentes replicados à exaustão nas redes sociais.
Muitos foram rápidos a ver nos outros os seus próprios defeitos de personalidade.
Realço que no fim deste processo, conseguimos dar nova vida a todos estes livros: a maioria seguiu para instituições públicas ou associações ligadas à cultura. Uma minoria passou a pertencer a particulares. Serão estimados? Serão vendidos?
Aproveito ainda para deixar uma palavra de apreço às centenas de pessoas que fizeram fila no sábado. Apesar da situação explosiva e que poderia ser caótica, souberam comportar-se sempre com civismo, demonstrando que uma multidão de leitores tem, talvez, qualquer coisa de diferente de outras multidões!
Pude verificar que muitas pessoas esperaram na fila e ainda assim não conseguiram um livro sequer. Disseram-me que só pelo convívio valeu a pena: muitas saíram de lá com novos amigos, em vez de novos livros. Algumas foram até almoçar juntas, acabadas de se conhecer! Nas redes sociais falou-se que deveria ter sido encontrada uma forma de «pagar» o esforço do sr. Simões, e os livros distribuídos de forma livre e grátis.
De facto, isso não foi pago. Assim como também não foi pago o trabalho que o proprietário do imóvel teve em articular e convocar as instituições públicas para lhes doar os livros, nem o trabalho da APOS.
Foi totalmente gratuito e altruísta, e nunca esteve em causa qualquer compensação monetária. No entanto, a quem sugeriu a ideia de deixar um donativo ao alfarrabista, é importante esclarecer que a «Livraria Simões» continua aberta, na Rua Capitão José Vieira Branco, 7, em Faro. Todos podem passar por lá e comprar-lhe um livro.
Opinião de António Paula Brito | Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão (APOS)