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Quando aqui chegámos, sentimos de imediato que se tratava de uma terra singular. Com uma diversidade de paisagem natural extraordinária.

O projeto cultural Lavrar o Mar – as artes no alto da serra e na Costa Vicentina, tem por missão, desde 2016, criar programas artísticos para os territórios de Aljezur e de Monchique. Tem como propósito trabalhar as terras destas regiões, não no sentido da sua exploração mas no da sua admiração.

Quando aqui chegámos, sentimos de imediato que se tratava de uma terra singular. Com uma diversidade de paisagem natural extraordinária, dunas a perder de vista na Carrapateira, como um deserto de um outro planeta, os pinhais do Bordalete, onde as copas redondas muito chegadas umas às outras nos dão a ilusão de um mar ondulado de caruma verde, os cursos de água que vindos das ribeiras da serra se encontram com o mar nas marés para se regenerarem e fluírem pelo solo de areia branca como jibóias marinhas, onde é possível mergulhar.

A serra, as hortas escondidas nas pequenas várzeas entre montes, os sobreirais, os medronheiros dispersos pelas encostas da Portela da Viúva, que nos fazem subir e descer para ir ao encontro do seu fruto que se transforma nas mãos dos sábios destiladores, no líquido alquímico e mais precioso daquele lugar.

A água que se deixa cair em cascata no Barbelote, as aldeias quase extintas que nos contam com as suas pedras, uma vida rural que já não existe. Os animais, as manadas, os rebanhos. O pão e o peixe. Os cheiros e o vento. A maresia e os pescadores. Os lavradores, os lenhadores, os esconderijos da serra e do mar.

Entre Aljezur e Monchique, encontrámos um terreno maravilhoso e fértil para aí plantar uma programação que, tal como as sementes, foi nascendo e crescendo devagar ao encontro de um diálogo com o território, com as suas populações tão ricas em cultura rural e piscatória.

Foi preciso caminhar, caminhar, caminhar. Procurar, parar e observar. Tentar um entendimento deste território, lendo as suas geografias exteriores e interiores, as suas formas acidentadas e nos lençóis freáticos de uma cultura quase submersa, encontrar a força telúrica que se respira no ar, a misteriosa aragem da serra e do Atlântico e a sua memória potenciadora de imaginários múltiplos.

Iniciámos a realização de espetáculos, concertos, percursos em que experiências estéticas fortes transformam os lugares, perdendo estes por um tempo (o tempo da obra), o nome que tinham, os dramas neles inscritos, o seu proprietário, deixando-se escorregar para uma nova identidade, ainda por designar e por definir.

A nossa pesquisa reside em saber como é que um mesmo lugar, um promontório, um bosque, um vale, uma aldeia, a própria serra, se deixam perturbar pela arte, ao ponto de, na ausência total de uma intervenção efetiva, se transformarem durante o tempo de um acontecimento artístico que ali surge e se revela, num espaço outro, totalmente novo.

Que possa esse lugar, uma floresta por exemplo, renascer aos olhos de quem a conhece num outro plano, o plano poético.

É este plano poético para onde o território é projetado, o mecanismo que viabiliza esta perturbação valorizadora, que faz nascer e renascer leituras.

As novas narrativas da montanha, do Atlântico, dos prados, das aldeias, dos moinhos, de lugares e vilas, presentes na nossa programação, nascem assim: ao chegar a esta paisagem, os artistas perturbam-se, apaixonam-se e apropriam-se.

Com um toque leve e subtil esgueiram-se pelas fendas da terra, da serra ou do mar para neles fazer habitar as suas ficções.

Homens que voam das janelas, atores que contam tragédias amorosas ficcionais com a força da verdade total, danças que reconstituem fábulas entre homens e animais. Tudo a acontecer num teatro totalmente natural.

A paisagem deste território, mantendo-se intacta através da nossa intervenção, é assim alimentada, acalentada e revestida de mais sentidos. Os nutrientes para uma transformação, de que só a arte é capaz de produzir.

Fotos: Nuno de Santos Loureiro.