Fim do Alojamento Local: empresárias de limpeza voltam a escravas Isauras

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As profissionais de limpeza estavam a ter os seus negócios muito mais bem pagos no Alojamento Local, do que a vergonha do passado.

Não posso divagar muito sobre Lisboa e outras grandes cidades, pois já não vivo lá desde 1999, mas atrevo-me a ser um pouco fora da caixa dos atuais defensores da crise da habitação e assim ser alvo de críticas da generalidade das pessoas que discutem a ordem do dia de acordo com a consciência coletiva maioritária que, também me atrevo a dizer, nem sempre é devidamente ponderada e fundada. 

De Lisboa lembro-me da baixa envelhecida e em ruínas, em que a partir das sete da tarde já não era seguro andar pelo Rossio e ruelas periféricas onde os prédios estavam abandonados e em mau estado. 

De Lisboa lembro-me que, enquanto estudante, era uma carga de trabalhos arranjar casa e quando o conseguíamos era um quarto num prédio em mau estado e a partilhar com outra malta (muita nostalgia tenho desses tempos). 

Também tenho memória de nesses tempos que já lá vão, não ser nada fácil criar família e arranjar um lar sem a ajuda da família ou de um qualquer milagreiro. Ou seja, perdoem-me as novas gerações, mas o que quero dizer é que crise na habitação sempre houve. 

E quando eu era da idade dos mais novos também tínhamos as nossas dificuldades, que eram muitas mesmo.  Não nego que haja uma crise. Só não estou convencida que esta seja nova e que a sua gravidade seja novidade. 

É mais uma daquelas coisas que nunca foi resolvida, mas que finalmente causa alarme social e provoca muito alarido a ignorância dos políticos para o tema. O problema está aqui. 

É que como passou a ser alarmante socialmente, os políticos acordaram publicamente para o tema. E por serem políticos, claro que pretendem a mobilização a seu favor, o que é legítimo, pelo que decidiram fazer cavalo de batalha para resolução da problemática da habitação. Até aqui muito bem. 

O que me assusta é que a experiência já me vai dizendo que quando assim é, lá vêm as medidas à pressa para mostrar ao povo que a classe política está do seu lado. 

Medidas estas que normalmente são feitas por encomenda a uma mente pseudo-especialista. Digo pseudo-especialista porque nestas coisas do Direito, das Ciências Económicas Sociais e Humanas e outras similares, tenho visto que a aplicação das teorias se faz no terreno a larga escala fazendo de nós todos, cobaias por antes não ter havido qualquer experimentação. 

Por esta razão passamos mais tarde umas quantas gerações a corrigir as falhas da aplicação de famosos programas e planos decididos porque um grupo académico que assessorou o governo e que putativamente se auto define como muito sabido na matéria. E Portugal é exímio nestas grandes opções de plano e programas. 

Desde que trabalho na minha profissão e já lá vão mais que 20 anos que lido com estas grandes opções em que todo o rebanho muda o seu percurso ao sabor dos ventos, das medidas decididas em menos de seis meses, por conta das idiotices de alguém que achou que assim devia ser só porque sim. 

Mas falta a essa equipa de assessoria académica a experiência de laboratório. Veja-se o que se passou no planeamento urbanístico dos anos 1990 que foi aplicado durante 20 anos e que foi brilhantemente defendido por urbanistas e académicos que fizeram parte das comissões legislativas que deram origem ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) e derivados: hoje sabemos das lacunas e dos grandes erros cometidos pela deficiência do regime que originou defeitos de tal maneira enraizados que para resolver se vai levar cinco gerações, sendo uma das consequências negativas já sabidas, o aumento dos preços das casas para as chamadas elites de luxo e a concentração da construção nas mãos dos grandes. E aumentou a corrupção que já não era pouca (mas isto é para outro artigo).  

Bom, mas concentrando-nos na região algarvia não posso deixar de tecer algumas considerações. 

O programa Mais Habitação aprovado no Parlamento proíbe novos registo de Alojamento Local (AL) em apartamentos. 

Um estrangeiro compra cá o seu apartamento para segunda habitação e vai agora, por obrigação imposta pela nova lei, mantê-lo fechado no tempo em que não cá estiver. 

Lembro-me de ver Lagos com prédios completamente vazios em determinadas épocas do ano. Costumávamos chamar as vilas fantasmas de inverno, período em que pouca gente havia para circular nas ruas, comer nos restaurantes ou visitar galerias. 

No prédio em que eu vivia, no início da primeira década do século XXI, a festa de aniversário da minha filha era feita na garagem coletiva que simplesmente não era usada por ninguém, além de nós, porque ninguém habitava no prédio durante a maior parte do ano. 

De novembro a março as ruas estavam sem gente, restaurantes fechados e vilas inteiras sem vida nesses meses de tédio. O Alojamento Local permitiu que os proprietários assumissem toda a gestão de uma atividade de forma organizada e expedita que permitiu a rentabilidade dos imóveis enquanto não eram usados por si, o que teve como consequência o despertar das cidades e vilas algarvias, diminuindo os períodos fantasmas e sombrios. 

Nesse tempo, em que não havia AL, e a grande maioria dos proprietários não arrendava os seus apartamentos para férias, também não me lembro de ver um proprietário fazer arrendamentos para habitação, pois quem compra um apartamento para as suas férias em Portugal quer tê-lo disponível quando quiser cá vier. Fora das férias, trancas nas portas. 

O Algarve tem inegavelmente uma lista de imóveis de segunda habitação e espero que o objetivo não seja acabar com isso. Talvez o objetivo político seja que os portugueses deixem mesmo de ter uma segunda habitação e que os estrangeiros deixem de cá vir investir na casa de sonho e de férias, assumindo-se a filosofia do miserabilismo e considerar-se um capricho e um luxo ter uma segunda habitação. 

E também por que raio é que têm de ser os estrangeiros a tirarem-nos as casas?  Não quero ter resposta porque esta terá sempre uma conotação xenófoba, pois passa sempre pelo raciocínio que os que cá estão é que valem. 

Na parte que me toca, eu e muitos dos que conheço, não teriam o nível de vida de hoje se não fosse o investimento estrangeiro. Temo, assim, que se queira acabar com o investimento estrangeiro em Portugal, no Algarve, e tratar mal quem consegue ter uma segunda habitação. 

Enfim, talvez a comissão da economia que elaborou o programa para o governo tenha uma fonte que comprove que afinal o investimento estrangeiro é mau e deva ser combatido. 

E tenha uma estratégia já muito bem montada para uma nova economia no Algarve que exclua o turismo. 

Mas para já, o que sei é que vamos ter novamente as ruas fantasmas, num futuro próximo. E mais, vamos manter o turismo de hotel, esse sim que vive de trabalho precário e mal pago dada a sazonalidade do mesmo. 

Ora, o AL contribuiu para o fim do turismo sazonal e permitiu que novos espaços e empresas se mantivessem ativas durante todo o ano. O fim do AL vai ressurgir o turismo exclusivamente sazonal e vai acabar por criar desemprego porque muitos negócios vão à vida por ser impossível mantê-los em função do verão. 

E o que me custará mais será ver profissões a perderem a dignidade que estavam a adquirir, como as profissionais de limpeza, que agora estavam a ter os seus negócios muito mais bem pagos do que a vergonha do passado em que as desgraçadas trabalhavam de sol a sol para vários patrões, limpando escadas e outros biscates para complementar os ganhos para poderem viver condignamente. 

Sim, estas senhoras estavam agora a gerir empresas que funcionam muito bem e cujos serviços são pagos muito mais condignamente. 

Uma outra novidade é que as novas regras não se aplicam a apartamentos destinados a habitação própria e permanente, desde que a exploração em AL não ultrapasse os 120 dias por ano. 

Esta nova regra só me leva a concluir que a ideia é então continuar a permitir as férias no verão porque o Algarve no inverno é apenas para quem cá vive. 

Sim, porque quem cá vive precisa do isolamento invernal. Não me restam dúvidas que existem outras soluções para a crise da habitação que acarretam uma alteração estrutural no planeamento da habitação e melhor gestão do erário público, o que mexe obviamente com interesses instalados pelo que é extremamente difícil executar.

Aplicar medidas que passam apenas por restrições não vai dar certo. E vai arrebentar com a economia do Algarve. Bom, a não ser que seja este o objetivo. É que até íamos bem. 

A senhora ministra da habitação, que disse que se as suas medidas contra AL fizerem com que surja um único apartamento para habitação já ficará feliz, sofre de uma insensibilidade doentia porque todos beneficiámos com o regime do AL tal como foi desenvolvido. E não, não é o AL que retira casas para habitação. Contra factos não há argumentos!

Alexandra Soares | Advogada