Faleceu o escritor algarvio António Silva Carriço

  • Print Icon

A literatura portuguesa, e a cultura algarvia, acaba de perder, com o falecimento de António Silva Carriço, ocorrido no passado dia 21 de novembro, um dos mais genuínos escritores da língua de Camões.

É uma perda irreparável para os que o conheciam e admiravam a sua obra. Mas, ao mesmo tempo, é também uma perda de que o país não se aperceberá. A razão dessa infeliz circunstância é muito simples: o Silva Carriço era um escritor que nasceu e viveu na província, longe das luzes da ribalta que apenas iluminam os céus de Lisboa.

Conheci o escritor Silva Carriço na vila de Monchique, sua terra-natal, quando visitei a Biblioteca Municipal. Voltamos a encontrar-nos, várias vezes, em eventos de carácter literário. E quando ia a Monchique costumava vê-lo na Farmácia Moderna, onde ao fim da tarde se reuniam os homens cultos da vila, sobretudo os colaboradores do jornal local, cujo diretor era o Dr. José Manuel Furtado.

Numa dessas tardes contou-me a sua vida. Estudara no Colégio de Santa Catarina, em Monchique, que foi um dos mais prestigiados estabelecimentos escolares do sul do país, sob a égide das freiras do Convento de Nossa Senhora do Desterro, professas da Ordem Terceira de S. Francisco.

O colégio funcionava em regime de internato, para os alunos que vinham de fora, tanto do Algarve como do Baixo Alentejo, e de externato para os poucos que eram da vila e suas redondezas. Foram essas proficientes religiosas que vieram, em 1954, fundar o Colégio do Alto, em Faro, um dos mais conceituados do país.

O Silva Carriço, saiu de Monchique, para completar os estudos liceais em Lisboa. Mas, como já tinha idade para ganhar a vida, foi trabalhar como desenhador num gabinete de arquitetura, enquanto estudava no Liceu Camões. Terminou o curso no Liceu de D. João de Castro, em Lisboa, empregando-se de seguida no Instituto Nacional de Estatística, aí convivendo com outros algarvios, que se fizeram gente em diversos organismos estatais. Entrado no quadro da função pública, pediu transferência para a Câmara de Monchique, onde permaneceu desde 1961 até à aposentação em 2003.

Funcionário público e homem da cultura

Muito dado ao estudo e à leitura, revelou-se interessado nas letras e na cultura local, razão pela qual lhe seria entregue a direção da Biblioteca Fixa da Fundação Calouste Gulbenkian e, dez anos depois, em 1971, a Biblioteca Municipal de Monchique.

Nessas funções prestou um inestimável serviço à cultura e à educação de sucessivas gerações de jovens monchiquenses. Conhecia os clássicos da literatura europeia, mas não era só a leitura que lhe ocupava o tempo, era também o estudo da arte, sobretudo da pintura e escultura. Sabia onde paravam os tesouros artísticos do mundo, e quando as posses lho permitiram foi vê-los, na companhia da sua amorosa esposa, aos próprios museus.

Durante quase meio século, pode dizer-se que foi ele quem cuidou da educação literária e do autodidatismo de muitas centenas de crianças e jovens daquele concelho serrano. Fez do seu posto de bibliotecário uma espécie de cátedra popular, na qual divulgou os principais monumentos da cultura lusíada.

O mais interessante era a sua prodigiosa memória, e a forma inteligente como concatenava os autores e as suas obras, clareando diferenças, juntando afinidades, esclarecendo as ideias e os objectivos que incitaram os escritores a exaltar convicções, incendiar mentalidades, revolucionar gerações.

E a par da sua refinada cultura estava a sua requintada sensibilidade, que transparecia de forma contagiante no amor à poesia. E quantos por sua influência leram, e adoraram Alves Redol, Manuel da Fonseca, José Régio ou Natália Correia, quando as suas obras ainda não tinham alcançado o prestígio, com que hoje são reconhecidas em todo o mundo.

Um homem da escrita e das letras

Ainda jovem, com apenas 16 anos de idade, o Silva Carriço começou a escrever nos jornais. E não se estreou, como tantos outros, na humilde imprensa regional, mas antes nas prestigiadas colunas do «Novidades», órgão católico de expansão nacional, cujos assinantes se distribuíam pelo país inteiro. E como os jornais sempre foram a rampa de lançamento dos escritores, tornou-se correspondente em Monchique de «O Século» e do «Diário de Lisboa», mantendo durante décadas uma assídua colaboração.

Uma das suas facetas menos conhecida é a de poeta. Começou a expor a sua inspiração lírica em concursos locais de poesia, embora sem grande sucesso. Conseguiu ser distinguido, em 1982, nos Jogos Florais do Algarve, do Racal Clube de Silves, recebendo uma Menção Honrosa, na modalidade «Poesia Lírica».

Percebeu que a sua poesia não teria o apreço que esperava, e dedicou-se quase em exclusivo à prosa. As musas deixou-as em repouso, para só as venerar nos momentos de desencanto e solidão, quando as angústias da vida lhe abatiam a alma.

Quando, em Dezembro de 1985, o Grupo de Dinamização Cultural «O Monchiqueiro», decidiu lançar a edição inaugural do «Jornal de Monchique», é o Silva Carriço, juntamente com o José Manuel Furtado, o José Gonçalo Duarte, o José Rosa Sampaio, o Reis Luís, e outros, que preenchem as suas colunas com interessantes reportagens, artigos e curiosas secções, sobre os mais variados assuntos.

Esse notável órgão da nossa imprensa regional ainda hoje se publica, e numa altura em que a imprensa algarvia se reduz a meia dúzia de órgãos, impõe-se enaltecer a sobrevivência do «Jornal de Monchique», cujos 34 anos de existência, num concelho em crescente desertificação, deveria ser homenageado pelo Ministério da Cultura.

Como prosador testou o seu talento novamente nos concursos literários. É uma prática corrente, e uma estratégia normal, quando se começa a tentear o árduo caminho das letras. Submeteu~se à aferição do mestre das letras algarvias, o Dr. Joaquim Magalhães, que como presidente júri dos Jogos Florais do Algarve, promovidos pelo Racal Clube de Silves, avaliava e apadrinhava o talento de muitos poetas e prosadores algarvios.

Vemos então o Silva Carriço laureado em 1990 com uma Menção Honrosa, o que era um bom augúrio para a carreira literária que iniciaria em 1995, com a publicação do seu livro de estreia, intitulado «Memória das Coisas».

Nele compilou as crónicas que publicara ao longo de vários anos no «Jornal de Monchique», cujos temas retratam vivências da cultura serrenha, relatam episódios marcantes na vida local, registam o valor e a importância do património etnográfico e das tradições do povo, que constituem a memória e identidade de Monchique. Como livro de estreia teve um inusitado sucesso, esgotando-se a edição pouco tempo depois. Sendo justamente reeditado em 2008.

No ano seguinte à sua estreia literária, em 1996, foi-lhe atribuído pela Região de Turismo do Algarve, o 2º Prémio de Comunicação Social, em razão do seu artigo «O Prazer da Diferença», um texto brilhante, carregado de conceitos filosóficos, no qual os valores da ética e da estética artística são rebatidos com a sincera e natural eloquência de um homem sensível e inteligente, como sempre o foi o meu amigo António Silva Carriço.

Na continuidade do seu périplo pelos concursos literários, recebeu em 1997 do Clube de Jornalistas de Braga o Prémio Especial Verde Minho, patrocinado pela Região de Turismo do Minho, mercê do artigo publicado no Jornal de Monchique, sob o título de «O Irresistível Fascínio do Verde», no qual compara a viçosa floresta da sua terra natal com o fascinante Gerês na viridente serra minhota. Um texto de rara beleza literária, que se pode comparar com os que melhor escreveu Raul Brandão, certamente um dos autores que mais inspiraram a sua escrita e melhor moldaram a sua personalidade literária.

A consagração como escritor e homem de cultura

Ainda em 1997 publica o seu segundo livro de crónicas, O Sabor da Vida, que tal como o primeiro foi editado pelo grupo cultural «O Monchiqueiro», que não demorou a esgotar-se.

Trata-se da compilação de alguns artigos publicados no «Jornal de Monchique», que o próprio Silva Carriço considerou como «pedaços de um profundo olhar, que não se limitou a agarrar a luz das pessoas e das situações, mas que se perde e prende nas funduras do sentir».

É um livro de ampla dimensão filosófica, ponderada apreciação artística e de ajuizada análise literária, que o autor, para facilitar a compreensão do leitor, segmentou em conjuntos temáticos de grande interesse para o conhecimento da vida intelectual nos finais do século passado. Pode parecer estranho, a quem nos lê, conceder tão elevados créditos a um simples cronista dum jornal de província, numa terra ignorada e esquecida como Monchique. Para quem não conheceu o Silva Carriço poderá parecer um exagero da nossa parte, mas, na verdade, era um homem muito culto e inteligente, que escrevia primorosamente, caldeando a sua ilustrada escrita com aferições artísticas e juízos de valor, só ao alcance das mentes mais eloquentes e brilhantes.

Em 1998 convidei-o a pertencer à Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve, à qual aderiu imediatamente. Fundei, e dirigi, no ano seguinte a Revista Stilus, em cuja edição inaugural publiquei de Silva Carriço um brilhante trabalho, do mais fino recorte literário, intitulado «Sabina na Casa de Espelhos» [Stilus, nº 1, Junho 1999, pp.89-96].

Prosseguindo a ordem cronológica da sua vida literária, impõe-se salientar o facto de ter sido galardoado, em 2002, com o 1º Prémio Manuel Teixeira Gomes, no concurso instituído pela Câmara Municipal de Portimão, com o patrocínio da Delegação Regional da Cultura do Algarve.

Daí resultou a publicação do seu primeiro livro de ficção, Entre o Corpo e a Rosa, inspirado no realismo mágico da literatura sul-americana, cuja urdidura endógena decorre no espaço rural do Barranco do Demo, um suposto lugarejo da serra algarvia, onde uma mulher com raros poderes místicos, faz prodigiosas curas e milagres, em troca dos prazeres da carne.

Todavia a morta colheu-a da vida de uma forma quase misteriosa, mas ela volta para se vingar dos algozes, como uma penumbra diabólica, que à noite enlouquece de desejo os seus antigos amantes. A bíblica sedução de Eva, e a explanação erótica das relações adúlteras, acaba por resvalar numa imbricada estória macabra, onde o medo, o terror e a desconfiança se apodera dos habitantes da aldeia. Um conto fantástico, muito bem escrito, ao nível de um clássico Edgar Allan Poe ou de um moderno Gabriel Garcia Márquez.

Reconhecendo o seu contributo, como «figura proeminente na vida cultural do concelho de Monchique», a Câmara Municipal decidiu atribuir em 2004, à Biblioteca Municipal o nome de António da Silva Carriço, em homenagem ao seu esforço desenvolvido em prol da educação e da cultura local.

Tratou-se de um gesto de agradecimento pelos 43 anos de serviços prestados naquela edilidade, em benefício das gerações jovens que tiveram em Silva Carriço um fraterno amigo, um conselheiro cultural e modelo de erudição, com base num insaciável autodidatismo, que a todos poderia servir de exemplo.

Em 2005 publicou o seu terceiro livro de crónicas, Retrato da Paisagem Enquanto Gente, uma compilação dos textos publicados no «Jornal de Monchique». Na origem desta obra está a intenção de resgatar para a posteridade a efémera lembrança das suas crónicas, na fugaz leitura daquele periódico.

A editora Colibri, especialmente vocacionada para a publicação de obras académicas, teve o mérito de acolher debaixo da sua prestigiada chancela a última colectânea de crónicas literárias de António Silva Carriço.

Nos anos que se seguiram participou em diversos eventos culturais, nomeadamente na apresentação de livros, do seu conterrâneo António Manuel Venda, ou em exposições de artes plásticas, incluídas no programa «Faro Capital Nacional da Cultura», presidido pelo meu saudoso amigo António Rosa Mendes.

No domínio das artes publicou Silva Carriço os seus últimos textos, um deles intitulado Zé Ventura – As Cores do Tempo, foi premiado em 2007 no London Book Festival. O outro texto, «Uma Abertura de Alma», escreveu-o em 2008 para o livro-catálogo da exposição de fotografia de António Maria Callapez – um olhar a Sul, numa edição comemorativa do centenário do seu nascimento.

Por fim, em 2014, a Paulinas Editora, publicou o seu último livro, Reflexos, constituído por 13 contos de Natal, nos quais se apela à paz e à reconciliação entre os homens de todos os quadrantes, de todas as raças e credos. Nesses contos ressalta a esperança num futuro melhor, sob a bênção do Deus-Menino nascido em Belém.

A mensagem, que o Silva Carriço nos deixou nesses contos natalícios, é a de os homens foram talhados pela mão de Deus para fazerem o bem, protegendo os fracos e os desfavorecidos, como expressão do amor e da conciliação da humanidade.

Nesta quadra natalícia, seria de inteira justiça que alguns desses belos contos fossem difundidos na rádio Fóia, recriados nas escolas de Monchique ou editados em pequenos livrinhos ilustrados, para oferta daquele município às crianças de todo o Algarve.

José Carlos Vilhena Mesquita | Historiador e professor universitário