Estamos todos no mesmo barco

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«A Europa estilhaçou a sua alma quando deixou que os mais vulneráveis fossem perseguidos e escorraçados». Hannah Arendt.

Devido a fatores políticos e sociais, como guerras, conflitos religiosos, crises económicas e ambientais, muitas pessoas de diferentes regiões do mundo, como Síria, Afeganistão e Iraque, procuram segurança e oportunidades de uma vida melhor e em paz na Europa.

Em 2015, mais de um milhão de refugiados entraram na Europa. Só no mês de novembro do presente ano de 2021 mais de mil migrantes procuraram um porto seguro no Mediterrâneo onde desembarcar.

No Algarve, nos últimos anos, algumas dezenas de jovens marroquinos, muitos novos e em busca de uma vida melhor, de trabalho e sustento, têm dado à costa.

E que fazemos muitos de nós, no ameno e meigo Algarve, reparamos que têm telemóvel e censuramos… como se ter um telemóvel não fosse o mais banal utensílio tecnológico nas mãos de qualquer pobre no mais ignorado e miserável recanto do mundo.

Até ouvimos dizer que vêm traficar droga ou podem ser terroristas…

Entretanto, na Europa de Leste, nas fronteiras da Bielorrússia, Polónia e países bálticos, milhares de refugiados encontram-se em situação de desespero, com frio e fome, vítimas das rivalidades geopolíticas e da insensibilidade dos governos de muitos países.

Em vez de os deixarem passar, de abrirem as fronteiras, de permitir chegarem até onde pretendem, de os receberem e acolherem, o que fazem os governos?…

Erguem muros e barreiras de arame farpado, enviam soldados e polícias armados para os deter.
Em vez da desejada segurança e ajuda humanitária são recebidos com canhões de água e à bastonada.

Onde para o nosso discernimento e humanidade?…

Vivemos esquecidos das vagas de refugiados, das perseguições políticas e da fome de que a Europa foi palco durante a Segunda Guerra Mundial.

Grupo de 28 migrantes ilegais, que desembarcou na Ilha da Deserta, concelho de Faro, ao início da tarde de hoje, mostrou um «padrão diferente» em comparação aos anteriores que deram à costa algarvia, oriundos do Norte de África. Autoridades não confirmam nem desmentem que se trata de uma rota organizada.

Ignoramos os milhares de portugueses que emigraram para a França e a Alemanha, deixaram as suas terras, fugindo à pobreza e a salários miseráveis, alguns a pé ou escondidos em carrinhas, a salto, a viver em bidonvilles nos arredores de Paris.

Vivemos um tempo tramado.

Uma trama narrativa noticiosa que nos traz uma realidade bem amarga, servida entre duas garfadas, à hora do jantar, no meio do prato principal televisivo das peripécias estéreis da enfadonha vida política nacional.

Aliás, os nossos governantes e a esmagadora maioria dos deputados nem se pronunciam sobre a problemática dos migrantes e refugiados tão ocupados estão com as querelas partidárias.

E que fazemos nó, adultos acomodados? Bebemos, comemos e nada mais.
Por isso admiro a filha dos meus amigos Mané e João Paulo, que em Lesbos usa a sua licenciatura em

Direito e o seu saber jurídico na defesa dos direitos dos que chegam à ilha desamparados.
Mas, ao menos, não passemos falsas ideias e meias verdades à mesa do café ou no conforto escondido das redes sociais.

Comando-local da Polícia Marítima de Faro e a Guarda Nacional Republicana intercetaram hoje 28 migrantes marroquinos que chegaram à ilha Deserta, em Faro, a bordo de uma embarcação sobrelotada.

Será que não nos apercebemos que estamos todos no mesmo barco e na fronteira da mesma realidade? Uma realidade sempre distante e entrevista em flashes noticiosos; é tão real que não nos toca e apenas nos faz pensar em abraçar e reconfortar os nossos filhos e desejar que não nos aconteça o mesmo na segurança do sofá.

– Tu não sentes o frio que eu sinto, meu irmão.
– Tu és o guarda da fronteira, eu sou o estrangeiro.

Se pensarmos que o aumento da população e os desequilíbrios demográficos, assim como as desigualdades crescentes, são outras tantas razões para sabermos que haverá mais gente a tentar mudar de região e continente.

Um simples exemplo, a faixa etária dos jovens entre os 20-30 anos é a mais numerosa em Marrocos e em todo o Magrebe (a mesma geração sem horizonte e revoltada que esteve na origem da Primavera árabe), enquanto em Portugal temos o grupo etário dos 60 ou mais anos cada vez mais numeroso.

Em demografia fala-se numa Europa de cabelos brancos como expressão do envelhecimento.

A minha aluna Yacemine, marroquina, diz-me que na pequena cidade de onde vem todos os dias nasce um bebé.

Vem-me à mente, por comparação, a ala de obstetrícia do hospital de Faro com os quartos quase todos desocupados quando a minha filha nasceu.

Há anos que os especialistas em migrações nos avisam que as alterações climáticas e, indiretamente, a poluição vão estar na origem de fluxos mais complicados de gerir do que as vagas de pessoas em fuga de guerras, perseguições e pobreza.

Então não há solução no erguer de barreiras, na exclusão do outro, na ignorância do não querer saber. Fiquemos com as palavras de Hannah Arendt em «Nós, Refugiados», ela própria uma refugiada, que passou por Lisboa em janeiro de 1941, em fuga à perseguição nazi e a caminho dos Estados Unidos.

«A Europa estilhaçou a sua alma quando deixou que os mais vulneráveis fossem perseguidos e escorraçados».