Esquecidos da chuva

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«Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra
– o céu limpo, a terra húmida e espelhenta – a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu próprio nas almas, uma frescura sua nos corações».

Bernardo Soares/Fernando Pessoa
in O Livro do Desassossego

Os vizinhos italianos dizem deste buon tempo que é o outono português. Estão felizes e banham-se deliciados na pequena piscina que abriram no jardim. No sábado, manhã de café e mercado municipal, ao comentar este calor desmarcado, com quem me cruzo, invariavelmente respondem-me: o Sol está mais baixo. Fico a refletir. Sim, o outubro algarvio é ameno, sempre foi prazenteiro e o sol baixa a guarda nesta altura do ano, ou baixava, mas não explica estes dias tão quentes e soalheiros. Preocupante é que raros são os interlocutores, desta banal e gostosa troca de palavras, que aludem à mudança do clima. Como se estas altas temperaturas fossem normais. Às vezes digo – O tempo anda marado! Ou – está tudo alterado. Mas a correspondência é fraca…

Vivemos esquecidos da chuva e quem vem de fora vive feliz. Está um belo dia! – dizemos. Dia solar em que a luminosidade faz resplandecer a vida com as esplanadas cheias de turistas, de gente falando animadamente feliz ao sol que os aquece.

Apesar do que leio e do que sinto, esta crescente ardência do sol nestes outonos cada vez mais prolongamentos do verão, quase chego a pensar que sou eu quem está errado e, pessimista, vivo demasiado preocupado.

E a chuva no Algarve virou chuvinha. Tímida mal cai. É uma nevrinha – diz a vizinha Maria. Mais velha ainda se lembra do tempo em que chovia. Refresca os jardins mas não alimenta campos e barragens. Passo os olhos nas aplicações meteorológicas do telemóvel, mas até quando se prevê chuva a realidade apenas esboça um céu nublado. Curioso é constatar entre colegas, gente da minha geração e, sobretudo, entre os mais novos que a chuva é um aborrecimento e, chovendo pouco, acham que já choveu o suficiente. Para quem vive do turismo, então esses abominam a chuva e o sol é dádiva para todo o ano, qual maná iluminando a região.

A sul, no outono, sempre deu para ir à praia; posso até recuar mais atrás no tempo e recordar as férias grandes com a escola a começar no início de outubro, tomávamos banho, apesar do mar de fora, mais bravo e subido. Mas o ar era mais fresco e húmido e à noite já vestíamos um blusão de ganga ou até uma camisola de malha leve. Não este calor exagerado, desmarcado, que cedo se faz sentir e mantém uma intensidade inusitada até tarde.

Gomes Teixeira gostava da mudança, da mudança de estações. Desejava o tempo mais frio e a chuva. Nascido em janeiro, em Portimão, em dia muito chuvoso (como a mãe sempre fazia questão de sublinhar). Talvez por isso, de feição melancólica, transportava em si a nostalgia da chuva e dos beijos molhados da memória. Amante da liberdade e libertino, também adorava o verão, estação jovem e sensual, e tinha na praia o seu passatempo favorito. Contudo, apesar de algarvio de gema, mostrava-se inconformado com esta monotonia solarenga. Desatinado, chegava a afirmar – fosse eu milionário e mudava-me para Porto, cidade de que muito gostava e achava mais compatível com o futuro climático que se avizinhava.

Sentiu saudades do cheiro da terra molhada depois de uma boa chuvada. Mas o sol teimava e, caminhando ao sabor do acaso, deu por si a dirigir-se para a orla marítima. Não há volta a dar – pensou – sempre este apelo do mar como um vício do olhar. Do alto do miradouro, contemplando o horizonte e o recorte de costa tão opressivamente urbanizado, deu por si a evocar Nori.

Os seus cabelos negros, mais ondulados pela chuva, despreocupadamente sacudidos, com o tirar da gabardina, à entrada do café. E o sorriso aberto, claro como a água límpida fustigando as vidraças, abriram a transparência do coração antes da voz. Como se a chuva aproximasse as pessoas. E os sentimentos não se embrenhassem pelos mesmos caminhos quando chove ou faz bom tempo.

Foto: João Mariano