Em nome de um vírus, ou a arte de mal comunicar

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Levei algum tempo a pensar de mim para comigo se escrevia ou não este artigo. Cada um tem a sua opinião, é certo. Mas também é certo que hoje em dia, as opiniões como que perderam a sua «validade», pois todos se sentem à vontade para as oferecer (tal como eu, sem que ninguém a tenha pedido), sem pejo, e muitas vezes sem reflexão, nesse oceano que são as redes sociais.

Já disse em artigos anteriores que não sou negacionista (até porque não sou cientista e, como tal não disponho das ferramentas de análise necessárias, deixando isso para os especialistas). Mas em nome da clareza (e para melhor comunicar) deixem-me reforçá-lo: não nego a existência de um novo coronavírus, de seu nome completo SARS-CoV-2, causador de infeção respiratória (que pode ir de ligeira a grave), e que há gente a morrer por sua causa, um pouco por todo o mundo, não sendo Portugal exceção.

Estou, como a grande maioria da população deste país, cansada, farta, frustrada, enraivecida. Quero que isto acabe, quero poder voltar a viver a minha vida como eu quero, e não como me obrigam, como «tem de ser». E, também como a grande maioria de nós, sei que isso não vai ser possível nos tempos mais próximos (daí o enraivecida). A forma como cada um lida com esta (ou outra) frustração é algo muito pessoal e não me cabe a mim tecer críticas ou juízos de valor sobre o indivíduo em particular, pois tenho telhados de vidro, como os restantes seres humanos, e nenhuma queda para a magistratura.

Mas se cada indivíduo, naquilo que é a sua liberdade de pensamento, de expressão, dos seus direitos civis, e no respeito pelo civismo e pela vida em sociedade, é livre de fazer o que lhe aprouver, sem que isso lhe seja julgado; há um grupo de pessoas, uma «instituição», a quem todos temos, devemos, exigir nada menos do que a regência pelos mais elevados padrões em tudo o que fazem. Essas pessoas são aquelas que elegemos e em quem delegamos a gestão do país. Essa instituição é o governo português. E estes sim estão, e devem ser sempre, sujeitos a análise e a um escrutínio apertado em tudo o que fazem, em nome de uma democracia saudável, como a que quero (queremos) para o meu país. E são esses, que na minha humilde (e não solicitada) opinião, nos têm agora falhado.

Não haja qualquer dúvida que temos em mãos uma crise de saúde pública, desde o início do ano passado. E não gabo a sorte daqueles que a têm que gerir. Deve ser absolutamente desesperante (dilacerante até) para qualquer ser humano (digno desse nome) ter que decidir entre quantas vidas se perdem e quantas se destroem. Mas foi justamente para isto também que aquelas pessoas foram eleitas, nomeadas, empossadas. E é também para isto que se rodeiam (ou deviam rodear-se) dos melhores assessores, especialistas e técnicos, cujos ordenados (juntamente com os deles) todos nós pagamos. E, não sendo cientista, e deixando pois de lado as «táticas ou conjeturas de investigador de bancada» que vemos arremessadas sem qualquer pudor, a torto e a direito (muitas vezes por quem nem português correto sabe escrever) nos Facebooks e Instagrams desta vida, há algo que faço a título profissional há já algum tempo e onde quero acreditar que me especializei o suficiente para poder «botar palavra»: comunicação. E meus caros governantes, aí estão a falhar redondamente: o que estão a fazer não tem ponta por onde se lhe pegue ou, como se diz na minha terra, não tem jeito nem trambelho.

É que, para além de toda esta situação já ser por si obtusa, com muitas dúvidas, incertezas e pontos de vista diferentes (até mesmo da comunidade científica) a maneira como no-la comunicam, torna-a ainda mais confusa. É certo que têm que lidar com dados que mudam diariamente e que obrigam ao ajustar também quase diário de estratégias, mas têm um povo que vos olha em busca de um caminho, de indicações. No meio das vossas dúvidas (que imagino são muitas, tantas quanto as nossas) há que ser claro, assertivo, há que conseguir dar-nos alguma (por muito pouca que seja) noção real (com muito ênfase em real) de segurança. De que sabem (dentro do possível) o que estão a fazer; de que não estão a chutar medidas cá para fora só «para inglês ver», só para dizerem que fazem alguma coisa e criar uma falsa sensação de segurança, ao mesmo tempo que protegem os vossos preciosos rabiosques (não vá a coisa dar para o torto). Porque honestamente, daqui de onde vos vejo, é isso que parece…

Arranjem um plano, um plano a sério, pensado e ponderado com base em factos, análises e uma estratégia de ação a curto, médio e longo prazo. Pode não ser perfeito, mas tem que ser um plano e tem de ser comunicado como um plano, com princípio, meio e fim (e sim, alternativas para quando for necessário, que nada nesta vida é imutável, muito menos os planos). Não podem ser medidas avulso, tomadas no rescaldo dos números de ontem ou dos dias anteriores, porque num plano é mais fácil acreditar; um plano é mais fácil «vender» e não se iludam: têm mesmo que vender esse plano ao povo, e ele tem que o comprar, sob pena de se verem a braços com uma situação social descontrolada, e de terem cada vez mais pessoas em incumprimentos vários, por razões também várias, com mais ou menos fundamentos, mais ou menos validade (e não haverá polícia, nem coimas suficientes que vos valha, para nem sequer falar do dano que isto causará à sociedade).

Desde o final do verão que saltitam entre os discursos paternalistas, o apontar de dedo (e da culpa), e o ralhete (com um tom mais ou menos sério, mais ou menos irritado). E a culpa não é do povo, porque o povo não é a imagem ou as ações de uma(s) minoria(s). O grosso do povo português tem-se comportado de forma exemplar, acima de qualquer crítica, com um estoicismo e uma resiliência de fazer inveja. Sim, somos latinos, com uma herança árabe considerável, e gostamos de nos queixar e de procurar a exceção na regra (ou na lei) onde nos «podemos encaixar», por onde podemos «escapar». Mas somos plásticos, altamente adaptáveis e temos aguentado algo próximo da loucura há já quase um ano, jogando mão à nossa capacidade incrível de «desenrascar qualquer coisa» e de sobreviver. Mesmo quando, quer a título individual, quer como entidades corporativas, somos atirados de um lado para o outro, quais bolas de ping pong (obrigada pela imagem Vanessa!): hoje podem fazer isto, amanhã não podem, depois voltam a poder mas de maneira diferente. E repete.

Sejam claros, e honestos, porque isso sente-se e quando sentimos gera-se empatia, que ajuda e empurra o querer fazer, o querer seguir, o querer consentir, o querer colaborar. Olhem para os exemplos que a história nos dá e lembrem-se que não é pelo discurso do medo, pelo temor, que se leva uma nação a fazer seja o que for. Esse é o caminho fácil, que resulta momentaneamente mas que está, a longo prazo, destinado ao fracasso. Os povos inspiram-se. As pessoas inspiram-se. Por isso inspirem-nos e seguimo-vos «até ao fim do mundo» – veja-se o exemplo do confinamento de Março do ano passado, e não me venham dizer que só aconteceu como aconteceu (coeso, solidário, cumpridor) porque sabíamos todos menos do que sabemos agora, porque tínhamos mais medo e porque não estávamos tão cansados deste vírus, em nome de quem hoje se permite, se faz, e se diz, muitas vezes, o impensável (que isso só explica uma pequena parte daquela história). Confesso que tenho muito mais medo deste «a bem da nação» que se esgueira subtilmente pelos vossos discursos, do que de qualquer vírus.

Mas se o governo nos tem falhado, que dizer de nós, sociedade? Estamos a ficar preguiçosos, pobres de espírito. Não lemos, que o texto é muito grande e alguém há de nos dar uma infografia com o resultado final. Tomamos como dogma tudo o que vemos no Facebook (ou qualquer outra rede social do momento) ou em qualquer órgão de comunicação, seja ele meritório desse nome ou não. Os media entopem-nos, atordoam-nos e entorpecem-nos diariamente com números de casos, de mortos, de camas de hospital que há ou que não há, de mais um (e são muitos…) pobre velho que morreu (sozinho) num qualquer lar, de onde se faz um direto de quinze minutos (quanto mais «sangue» melhor, que assim aumentam as audiências, os cliques e as vendas) e nós comemos tudo, porque somos bem-mandados e já vem tudo mastigado, pronto a digerir.

Os nossos jornalistas, que sempre entendi como o último bastião da liberdade (aquele que se cair… bem, estamos mesmo todos fodidos), dão-nos agora a sua opinião… e não em crónicas ou artigos destes, onde teriam todo o direito de o fazer, mas servida como acompanhamento da informação que nos passam, qual bacalhau com grão, com a maior naturalidade, como se sempre assim tivesse sido, ou devesse ser. As perguntas difíceis ficam por fazer, a investigação pela rama, o consenso (ou a concertação) é geral e não há espaço para qualquer narrativa diferente, para nada alternativo, que isso não tem qualquer interesse e pode abrir espaço ao pensamento crítico (e todos sabemos o quão perigoso isso pode ser). Lá está, tudo mastigado e pronto a digerir. Ao fim e ao cabo, é mais fácil controlar uma nação pelo medo do que pelo respeito (ainda que seja sol de pouca dura, como já disse antes); é mais fácil vendermos-lhe o que queremos, porque com medo, não se pensa se é preciso, compra-se só para acabar com o medo, para ficarmos em segurança (mesmo que não fiquemos). Não exigimos mais aos nossos jornalistas (e também eles se deveriam reger pelos mais altos padrões de isenção, ética e qualidade); não exigimos mais aos nossos governantes; não exigimos mais a nós próprios.

Cada vez pensamos menos, que isso dá muito trabalho e obriga a ir buscar informação fidedigna e ainda por cima a várias fontes, de preferência, para que tenhamos factos verificados e não banha da cobra. E depois tem que se analisá-la, e de forma crítica (pobre pensamento crítico, essa espécie em vias de extinção), chegar a uma conclusão sobre ela e tomar uma posição, e isso (como já dizia o meu querido Furtado, professor de filosofia que nunca esquecerei e que me marcou para sempre) «é uma chatice, porque põe-nos na berlinda, sujeitos à crítica e ao «julgamento» dos outros» (razão pela qual ele aconselhava sempre, a rir claro está, «a nunca ter opinião, por ser mais seguro»!). Estamos cada vez mais intolerantes. Cada um de nós é o centro do mundo e temos uma dificuldade imensa em perceber e aceitar que a realidade (e aqui tome-se aqui o sentido o mais lato possível da palavra) do outro pode ser diferente da nossa. E criticamos e julgamos, sem conhecer, sem dados, sem saber mais nada, em praça pública, tão alto quanto possível e para quem nos quiser ouvir. Não sei bem o que isto diz sobre nós enquanto espécie social que somos, mas tenho a certeza que não augura nada de bom.

Hoje, o marketing digital ficou na gaveta (ou talvez não, porque comunicar é base para quase tudo). As minhas desculpas, mas tinha o peito pesado, com uma série de coisas para dizer. Estejam à vontade para discordar, mas obrigada por me ouvirem (se mais ninguém, pelo menos a minha família sei que o fará… espero eu).

E, por favor, comuniquemos, mas com a alma aberta de quem diz o que sente e está ao mesmo tempo disponível para o ouvir o lado de lá. Cultivemos a tolerância, o respeito e a humanidade, e não nos esqueçamos nunca que viver em sociedade implica sempre ter de pesar o «eu» vs. o «nós» (e às vezes, se calhar até muitas vezes, favorecer o nós em «detrimento» do eu, justamente porque é de solidariedade[i] que falamos). Porque quando a Covid «for embora», ainda teremos que ser capazes de viver aqui, uns com os outros.

Adriana Silva | Especialista em Comunicação e Marketing Digital
yourdigitalclarity.com

[i] Solidariedade: so·li·da·ri·e·da·de (solidário + -edade), nome feminino. 1. Qualidade do que é solidário. 2. Sentimento que leva alguém a tentar ajudar outro ou outros ou a compartilhar o seu infortúnio. 3. Reciprocidade ou consonância de ideias, de obrigações ou de interesses entre os membros de grupo, comunidade ou entidade (ex.: solidariedade institucional). 4. Dependência mútua. 5. [Direito] Direito ou obrigação de exigir ou assumir o que se deve a todos.
«Solidariedade», in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/solidariedade [consultado em 20-01-2021]