Dom Sebastião e o relacionamento com as mulheres

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Sua Majestade, o Rei Sebastião I. Entre o nascimento, a sucessão e o relacionamento com as mulheres.

Introdução

Constituindo um dos reis mais singulares da História de Portugal, o tema do sebastianismo, nas suas mais variadas áreas, tem apaixonando investigadores, estudiosos e público, em geral, há mais de 440 anos, isto é, desde a sua morte (4 de agosto de 1578) até à atualidade.

Conhecidos mais de 4000 textos que abordam a temática sobre a figura do monarca associado à perda da independência de Portugal e à sua autoestima interligada como O Desejado pelo povo e à auto predestinação como cruzado ao serviço de Deus contra os inimigos da Fé Cristã, alvo de intrigas palacianas e de jogos políticos ibéricos, D. Sebastião personificado na famosa estátua de João Cutileiro (falecido este mês) implantada em Lagos desde 1973 é, sem dúvida, um homem que não deixa ninguém indiferente (tal como a citada obra de arte), sobretudo mais pelas características da sua personalidade do que pela sua ação enquanto penúltimo monarca da dinastia de Avis.

A sua ação não é indiferente aos historiadores, sobretudo na forma como conseguiu organizar um conjunto de leis (Leis Extravagantes) e à sua intervenção nos assuntos de Estado (no especto militar, por exemplo) e nas relações com as possessões com a Índia, África e Brasil. No mês em que decidiu elevar uma única vila do seu reino a cidade, Lagos-27 de janeiro de 1573, nela viu o local apropriado para organizar a partida para a fatídica batalha em terras marroquinas e com a sua derrota ter aberto o caminho para uma nova dinastia e inaugurado a denominada Monarquia Dualista.

Convidamos os leitores a acompanharmos numa temática que tanta polémica tem alvitrado nos últimos anos, um sentimento de causa, relacionando-se a mesma com a sua condição de género e a sua descentralizada afetividade com o sexo feminino, quando na verdade, tudo indicia que devido à sua (deficiente) estrutura corporal e saúde frágil se terá direcionado para a luta de conquista em terras marroquinas, qual mensageiro de Deus, em terras lusas, em detrimento de convenções e contratos de matrimónio que, tanto quanto nos é percetível, seriam algo tão diminuto e sem interesse a par da sua vontade de engradecer a Igreja e os desígnios de Deus.

1) O Desejado

Portugal no dia 20 de janeiro de 1554 festejou de alegria o nascimento de uma criança órfão de pai e de uma mãe que ficaria ausente do seu filho a partir do seu quarto mês de vida tendo deixado o País para assumir a regência de Castela, na ausência do seu irmão, D. Filipe II que partira para Inglaterra. O Príncipe de Portugal, D. João Manuel, pai de D. Sebastião, casara-se aos 17 anos com D. Joana de 15 anos de idade (a qual poderá ter sofrido de uma doença transmissível ao filho), vindo a falecer pouco tempo depois, com tuberculose ou diabetes, segundo alguns historiadores.

A grande alegria que se espalhou no reino devido ao nascimento de D. Sebastião relacionou-se com a eventual possibilidade de Castela poder vir a tomar a coroa portuguesa em virtude desse casamento não ter descendência, isto é, se do enlace do Príncipe D. João Manuel com D. Joana não tivesse havido filhos. Eis, pois a razão do tão conhecido epíteto de D. Sebastião, O Desejado.

A propósito do nascimento do rei que mais vezes visitou o Algarve durante o seu reinado (sendo dos poucos a fazê-lo em toda a monarquia, apenas igualando-se D. Carlos I que no século XIX visitou a região, em geral e Lagos, em particular por diversas vezes); que foi batizado no dia em que coincidiria com o dia em que elevou Lagos a cidade (27 de janeiro), e a escolheu como ponto de partida para a sua cruzada a Alcácer Quibir, tentaremos dar a conhecer uma das facetas menos interpretadas da sua vida, o seu relacionamento com mulheres e o facto de não se ter casado o que, eventualmente, poderia ter assegurado a descendência e colocado um rei ou rainha português no trono de Portugal.

Tendo como base o cronista João Cascão e a sua «Relação da Jornada de El-Rei Dom Sebastião quando partiu da cidade de Évora…» datada de 1573, publicada em 1984 por Francisco sales Loureiro, para além de outra documentação impressa (e referenciada no final deste artigo), relacionada com a vivência do rei, tentaremos abordar o seu relacionamento com as mulheres e tentar desmitificar a sua tendência que, alguma historiografia, o centra na adesão ao relacionamento masculino em detrimento da aproximação ao sexo feminino.

Figura apaixonante da historiografia portuguesa, D. Sebastião, único deste nome ao longo de mais de 800 anos da História de Portugal foi também o rei que, pelas suas peculiaridades, comportamentos e atos, muitas vezes irrefletidos, capitalizou o interesse de tantos estudiosos, numa transversalidade temporal e governativa que ultrapassou o período monárquico continuando a ser tema de discussão e estudo tanto em Portugal como no estrangeiro.

2) O nascimento e a sucessão

Um menino que não conheceu o pai e cuja mãe, D. Joana, nunca o viu crescer (apenas durante os seus primeiros quatro meses) a não ser por retratos, nem o próprio filho teve vontade de a conhecer, D. Sebastião viveu numa encruzilhada de uma criança a tornar-se homem, ladeado pela sua avó, a rainha viúva de D. João III e regente, D. Catarina de Áustria e pelo seu tio-avô, o cardeal D. Henrique. Com uma educação norteada entre as diretrizes da Igreja e a paixão militar, sabia que teria de assumir o reino de Portugal, tendo como principal conselheiro o seu ego e de um grupo de amigos fiéis, que não o contrariavam nos seus desígnios, os quais foram, efetivamente, a sua família.

Os conselhos, os avisos da avó, do tio cardeal e dos seus fiéis preceptores sempre constituíram algo que pouco lhe importou e ao assumir em pleno a coroa e o cetro reais, parece tomar consciência de que tudo podia fazer e o seu poder ser absoluto.
No seu itinerário régio importa realçar o tempo em que esteve pela primeira vez no Reino do Algarve, sobretudo nos finais de janeiro de 1573, com especial enfase na vila de Lagos, a qual, pela especificidade socioeconómica e sobretudo estratégica «… havendo que por vila notável, podia seguir a ordem das cidades…», a considerou tão importante para os seus desígnios a conquista de possessões no norte de África que decidiu elevar a cidade no dia 27 de janeiro de 1573.

Acresce referir que foi no reinado de D. Sebastião que o Reino do Algarve conheceu o seu primeiro Governador Capitão General (titularidade inédita no seu reinado) nomeando D. Diogo de Sousa como primeiro Governador.

A posição geográfica de Lagos, aliada à sua faustosa baía seria triplamente reforçada, atendendo que passou a ser cidade e assumiu o estatuto de capital do reino pela existência de um Governador Capitão General cuja titularidade perdurou até ao Terramoto de 1 de novembro de 1755.

Na verdade, Silves a grande cidade algarvia que assumia até ao momento o estatuto de cidade capital do Reino do Algarve, aos poucos foi debilitada pelo assoreamento do rio Arade, continuamente despovoada, apenas detendo a centralidade da diocese do Reino que no contexto da governação de D. Sebastião pouco lhe interessava na conjuntura do seu sonho de guerrear os inimigos da Fé Cristã em Marrocos, culminado com a sua deslocação a Alcácer-Quibir e na derrota de Portugal na batalha dos Três Reis acometida no dia 4 de agosto de 1578.

Audaz, temerário, corajoso, sonhador, autoritário, vaidoso entre outros atributos tantas vezes replicados na historiografia nacional e estrangeira, mas sobretudo amigo dos seus fiéis companheiros, são algumas das características deste homem que aos 3 anos de idade assume o papel de rei, pela morte de D. João III, embora tivesse de esperar pela maioridade (que é descrita como sendo a dos 14 anos) para verdadeiramente conduzir o seu destino e o do País.

Quando o rei chegou a Lagos em janeiro de 1573 foi recebido num ambiente de festa (como em outras localidades já visitadas), estando a então vila, a mando das Vereações da Câmara, decorada com os melhores adereços que se puderam adquirir e para que o povo visse sua Majestade, titularidade que D. Sebastião passou a usar a partir de 11 de junho de 1557 e até à sua morte, aquando da sua deslocação a Guadalupe para uma reunião com o seu tio Filipe I de Espanha.

Quando o monarca entrou na vila, que de acordo com o cronista, esta estava pronta para ser cidade, foram abertas as Portas de Portugal, caminhando o rei pela rua Nova, um amplo espaço de moradias e vivência socioeconómica que jamais sairiam da mente do monarca, sendo sobretudo a sua baía que o faria voltar a Lagos por mais três vezes.

A música e as simulações de lutas acompanharam-no até aos seus aposentos, as casas do Alcaide-mor situadas junto ao castelo de Lagos, local que também serviu de pousada para D. João I antes de partir para a conquista de Ceuta em 1415. Junto ao rei sempre o ladearam um número restrito de companheiros que nunca o desampararam desde a sua juventude.

O ânimo e o regozijo do monarca foram tais que festejou os seus 19 anos nesta terra e como prenda de aniversário as autoridades de Lagos presentearam-no com uma corrida de touros, divertimento que associado à música, constituíram praticamente os seus únicos prazeres pessoais.

D. Sebastião tinha uma predileção muito especial pelas corridas de touros, aliás retomadas em Portugal no seu reinado, tendo as mesmas sido autorizadas, a seu pedido, pelo Papa Gregório XIII, com a condição das mesmas serem realizadas apenas com a presença do rei (touradas reais), proibindo aos clérigos regulares a sua participação, devendo os animais estarem embolados (com as hastes  cortadas, para evitar o derramamento de sangue dos homens nas arenas), mas sobretudo pela música, que sempre o acompanhava, tanto nas horas das refeições, como nos momentos em que tinha de despachar documentos, assim como nas suas deslocações ou momentos de lazer, como aconteceu em Lagos quando se deslocou, para orações, à capela de Nossa Senhora da Piedade ou, na fatídica Batalha de Alcácer Quibir, onde em campo de batalha se ouviram soar trompetas e outros instrumentos musicais utilizados por elementos da Capela Real.

Seduzido pelos jogos de cartas e pelas danças, tantas vezes improvisadas por homens vestidos de mulheres (quando estas não estavam presentes), outras das suas paixões era a destreza física, tantas vezes colocada à prova nos curros onde se tentava pegar os touros pelos cornos, tendo o rei, inúmeras vezes, acudido àqueles que não conseguiam dominar os animais e colocavam a sua vida em perigo.

A questão do seu não relacionamento com mulheres, melhor dizendo, o seu afastamento em relação ao sexo feminino, deverá ser equacionado em função de vários fatores, como adiante veremos, sendo um, o relacionado com a sua aparência física escondida pela indumentária que à época é tudo menos reveladora da verdadeira estrutura de um corpo, tanto fosse feminino ou masculino.

Se as fragilidades físicas estruturais do corpo do rei estariam escondidas pela roupa que vestia, como se mostrar na integridade corporal a uma mulher, sobretudo uma nobre com a qual iria casar?

Vergonha mais que timidez, assim o entendemos e sobretudo indiciadora de que um rei com o potencial físico moldado pelas artes desportivas se mostraria com tantas deformações não espectáveis para que quem tinha tanta habilidade motora, potencial para uma virilidade acrescida, de acordo com os parâmetros da época.

De certeza, ao olhar os corpos dos seus companheiros, menos enquadrados nos ditames do protocolo de Estado que um rei deveria ter em conta, faria a comparação com o dele. Não se conhecem muitos documentos que nos revelem as características físicas do monarca, mas com base num manuscrito anónimo do século XVIII, poderemos tirar algumas ilações.

«A mão direita maior que a esquerda; o braço direito mais comprido que o esquerdo; o corpo, dos ombros à cintura mui dobrado; e curto, de sorte que o seu gibão não servia a ninguém. Da cinta aos joelhos mais comprido. A perna direita mais comprida que a esquerda. O pé direito maior que o esquerdo. Os dedos dos pés quase iguais. Tem no dedo pequeno do pé direito, digo dedo pequeno do pé direito um calo que lhe cresce. O peito do pé muito alto. No ombro esquerdo, junto do fio do lombo um sinal pardo, com cabelos, como um vintém. No ombro direito, ao pé do pescoço, outro sinal preto, do tamanho de uma unha pequena. Tem lentilhas no rosto, e mãos, mas não se enxergam bem. Falta-lhe um dente na queixada direita de baixo, que lhe tirou Sebastião Neto. Tem contínuo fluxo de semente. Outro sinal se dirá quando importou, digo importar. Tem os dedos longos, e as unhas compridas. O beiço grosso da parte direita; como seu Avô Carlos 5º. Os pés pequenos; e as pernas encurtadas».

Pela descrição referida, o corpo do monarca não seria bem estruturado. Contudo, não ficamos a saber a idade do rei para apresentar as características corporais descritas, mas pela minuciosidade do relato, já seria uma jovem adulto.

Num quadro descoberto num castelo na Áustria, em 2010 da autoria de Alonso Sánchez Coello, datado de 1562, tendo sido o monarca identificado, erradamente, como sendo um nobre austríaco, é possível observar um rapaz de 8 anos vestindo uma indumentária de expressão guerreira (uma armadura) de feição adulta, indiciando uma maior maturidade para a sua idade.

O que ressalta à nossa observação do retrato do rei, trata-se de um jovem com o cabelo ruivo, olhos azuis, com pernas curtas e as mãos apresentam dedos finos e longos. A quase totalidade do corpo revestido com a armadura não nos deixa observar pormenores como os descritos no manuscrito anonimo do século XVIII.

Um corpo que praticamente ninguém viu, enquanto ser vivo (e mesmo quando morreu) e o facto de se vestir à moda do século XVI (longos e encorpados gibões, por exemplo), onde a sua figuração aparece quase sempre envolta de armaduras, não nos dá elementos que possam caracterizar o corpo do rei, nem mesmo na fase adulta, eventualmente descrito por quem com ele convivesse e, sobretudo, pelos seus companheiros inseparáveis de juventude.

Numa pintura datada entre 1571 e 1574, tendo o rei 16 anos, podemos visualizar sobretudo as mãos bojudas com os dedos finos, não se descortinando outras particularidades do corpo do monarca, para além das já referidas.

Teremos, pois, que nos apoiar na descrição do manuscrito anónimo para termos uma noção do corpo do rei, que associado ao seu afastamento, deliberado, do convívio com a maior parte das mulheres, sobretudo portuguesas, poderá justificar o seu não interesse, de forma esclarecedora, no casamento.

Em nossa opinião, contudo, não se justifica, como tem sido veiculado, as suas orientações adversas ao amor feminino e sobretudo ao relacionamento com mulheres.

3) D. Sebastião e as mulheres

Se a grande preocupação de Portugal seria ter um herdeiro português que assegurasse a monarquia portuguesa, com o nascimento de D. Sebastião, a situação estava resolvida.

O vizinho castelhano já não tinha a possibilidade de se assegurar da coroa portuguesa, pois pelo contrato estabelecido, caso não existisse herdeiro do casamento entre D. João Manuel e D. Joana, o sucessor seria castelhano. Curiosamente, mesmo se D. Sebastião tivesse casado com a primeira noiva que lhe foi sugerida, Margarida de Valois, irmã do rei Carlos IX, tendo este contrato o acordo do seu tio o cardeal D. Henrique e do próprio Papa Pio V, e como sabemos, tal não se concretizou, existem duvidas na eventual descendência do casal, atendendo a uma suposta doença de infertilidade da própria Maria de Valois, imortalizada por Alexandre Dumas, pai, no seu romance datado de 1845, apelidada de «A Rainha Margot».

Como sabemos, Margarida de Valois casou-se com o rei protestante Henrique de Navarra em 1572 e não tiveram descendência.

Apenas com o enlace de Henrique com Maria de Medici, se conhece a existência, pelo menos, de seis filhos.

Os casos amorosos de Maria de Valois fora do casamento, a sua postura na sociedade da época, criaram o mito de uma mulher muito independente, considerada uma das mais bonitas, cultas e elegantes do seu tempo.

Caso se descobrisse a sua infertilidade durante o decorrer da vida conjugal dos esposos (e sabemos que Maria de Valois era estéril), o rei poderia, como era hábito na época, repudiá-la e tentar novo matrimónio.

Também poderia ter ligações amorosas extraconjungais e daí ser pai de bastardos, acontecimento tão vulgar ao longo das sucessões dinásticas portuguesas.

Contudo, não sendo esta a preferida pelo rei poderia haver outras, tendo o próprio monarca sugerido ao rei Filipe II, seu tio e irmão de sua mãe, quando o mesmo se deslocou a Guadalupe, em 1576, para pedir ajuda para a sua empresa marroquina, que estava disposto a casar-se com a infanta D. Isabel, primogénita do rei castelhano, de oito anos de idade.

O rei castelhano não anuiu à ideia do casamento, pela idade da infanta, embora ficasse decidido que após a vinda de D. Sebastião de Alcácer Quibir a questão seria retomada. Contudo, como se sabe, tal não aconteceria.

Na problemática centrada no seu não relacionamento com a maior parte das mulheres devemos ter em conta, sobretudo, fatores associados à sua saúde e estrutura física.

Desde cedo que a saúde de D. Sebastião se apresentou frágil. Entre os nove e os dez anos de idade terão começado os seus problemas de saúde com indícios de perturbações renais e passados três anos, surgem febres, tonturas e desmaios, para além de expelir regularmente fluidos seminais, que segundo alguns investigadores, quanto maior fossem os esforços físicos de natureza desportiva de que tanto o monarca apreciava, maiores seriam esses fluidos, podendo tratar-se de uma uretrite, espermatorreia ou até de gonorreia.

O seu pai era um homem doente e a sua mãe poderá ter-lhe transmitido uma doença de cariz sexual – a gonorreia – eventualmente já patente no sangue do seu progenitor, considerando que se dizia que a paixão do casal era tão notória e o seu relacionamento tão ofegoso que se teve de separar ambos para não haver escândalos na corte.

Perante esta situação, nada poderá contrariar uma eventual aventura amorosa de D. João Manuel com mulheres publicas, sendo Alfama, na época, um dos locais muito procurados por homens aventureiros, que, ao que sabemos, o próprio D. Sebastião também conhecia, se não em consumação de atos considerados impróprios para a sociedade lisboeta do seu tempo, pelo menos teria tido contatos ou sabia da existência de mulheres relacionadas com essa função.

Uma outra explicação para as doenças do rei, enquanto menor, terá sido motivada pela aproximação, de cariz sexual, do seu mestre precetor o padre Luís Gonçalves da Câmara que teria ficado cego no fim da sua vida devido à gonorreia, embora já estivesse cego de um olho quando foi chamado a educar o jovem rei.

Dentro do universo cortesão onde se inseria o jovem monarca, a sua avó teria sido alertada por um aio que lhe teria comunicado um conjunto de situações menos apropriadas para quem tinha a responsabilidade da educação do monarca.

Este, de acordo com a carta enviada à regente, o padre jesuíta já teria conhecido a «natureza» do monarca, o que lhe daria a possibilidade, segundo se afirmava, de o «controlar os seus atos».

Como resposta, mas sem termos a certeza de que se tratou de uma consequência do ato infame, a regente terá afastado o padre jesuíta, não só da responsabilidade da sua educação, como o baniu da corte.

Estamos em crer que esse afastamento de traduziu pelas influências que este padre jesuíta detinha na educação do rei, sobretudo ao nível do foro religioso, onde a nobreza fora, continuadamente, descentrada da sua ação influenciadora junto do monarca, uma vez que sabemos que o afastamento dos irmãos Câmara teve reflexos nos desígnios da Corte, tanto no período em que D. Sebastião fez a sua itinerância no Alentejo e Algarve, mas sobretudo na sua ausência em Marrocos nos três meses em que deixou os assuntos do Estado.

No entanto, e como é referido, se assim aconteceu, no que se relaciona com o conhecimento da «natureza» do monarca, será que não devemos ter uma leitura baseada no crescimento do seu corpo e das evidências próprias desse crescimento, no seu todo, onde um menino a transformar-se num homem adulto, e considerando as deficiências marcadas no seu corpo desde a infância, deram um novo alento à família real, através do seu perceptor, de que o jovem rei já teria ultrapassado algumas vicissitudes físicas e deste modo já se poderia pensar em encontrar uma noiva para assegurar o trono português?

Seja como for, não nos podemos esquecer que Portugal vivia num período de ascensão da Inquisição onde os pecados nefandos (relações entre dois sexos iguais) não eram tolerados e tratando-se de um preceptor jesuíta da confiança da regente, tal teria acontecido?

Não terá havido intrigas políticas e religiosas de ascensão do poderio jesuíta sobre a educação do jovem rei? Um jovem que aos poucos parece interiorizar as características de um autêntico cruzado, ao serviço de Deus e que tem uma missão na Terra consubstanciada na ampliação da Cristandade em terras marroquinas?

Mas, se salienta que o seu perceptor terá cegado devido a uma doença do foro sexual, não terá sido oportuno afastar um homem que aos poucos estava a moldar psicologicamente um jovem cujo destino seria tomar decisões coletivas, estando nas suas mãos o futuro de um país?

Se tal verdadeiramente aconteceu, as consequências para o padre jesuíta foram o seu afastamento como perceptor e a sua saída da corte, algo pouco consentâneo com a natureza do ato.

Caso tivesse acontecido, o jovem rei, não se teria queixado, junto da sua avó e tio avô, dos supostos abusos, mesmo que fosse na sua linguagem infantil e sem se aperceber da gravidade do ato?

Não excluindo nenhumas das hipóteses, a verdade é que a figura física do jovem monarca não seria tão padronizada como a da maioria dos jovens da sua idade.

Se o jovem rei era acometido de várias doenças, tantas vezes atribuídas à consanguinidade dos vários casamentos das famílias reais europeias (casamentos entre primos, entre tios e sobrinhas e vice-versa) ao longo dos séculos, a sua fragilidade física poderá ter sido uma consequência desse cruzamento sanguíneo entre gerações da realeza europeia.

Por outro lado, poderá ter mesmo nascido com as suas próprias particularidades e o próprio rei teria consciência disso, conforme ia crescendo, o que lhe perturbaria, sobretudo psicologicamente, e no que respeita com o relacionamento com mulheres, sendo uma delas uma futura noiva que num contacto mais íntimo poderia dificultar o seu relacionamento entre ambos e os eventuais ecos que poderiam desencadear na sociedade, em geral, e na corte, em particular.

Como vimos não existem muitas referências ao corpo do monarca, onde pudessem sobressair alguns testemunhos de quem estivesse mais próximo dele, nomeadamente quando do momento em que se vestia. Sabemos que esse ato era demorado e tinha alguns intervenientes, mas o contacto visual com o corpo do rei apenas seria no momento de o calçarem.

No texto central em que nos baseamos para a elaboração deste artigo, a «Relação da Jornada de El-Rei Dom Sebastião quando partiu da cidade de Évora…» da autoria de João Cascão datada de 1573, muitas são as referências às mulheres durante a visita do rei, sobretudo quando da sua estadia no Reino do Algarve.

Não existiu localidade por onde passasse onde não houvesse grupos de mulheres que o desejassem vê-lo e até tocá-lo.

Com raras exceções, tanto no Alentejo como no Algarve, somos informados pelo cronista que as mulheres eram todas feias, sendo as que se habitavam na zona da fronteira com o Guadiana, as castelhanas, todas muito formosas e lustrosas. Curiosamente, as adjetivações referidas às mulheres, sobretudo as de Lagos e as de Tavira, não são conhecidas como tendo sido emanadas por D. Sebastião, mas pelo cronista, João Cascão.

O que nos centra a atenção sobre o comportamento do rei em relação às mulheres que o aguardavam na sua chegada às localidades é o não interesse do monarca em vê-las ou que elas não o vissem, pois seguia sempre por ruas onde elas não o pudessem observar.

O rei fugia dos seus olhares para não ser visto, sobretudo se fossem portuguesas, pois em Aiamonte e em Alcoutim elas aparecem, as castelhanas, e até as recebe e convive com algumas, sendo, no entanto, casos raros durante a sua itinerância ao Algarve. Sem dúvida, a sua preferência parece incidir nas jovens castelhanas.

Na recente historiografia, a visão que nos é dada por alguns dos seus autores da personalidade de D. Sebastião é que estamos em presença de um homem que gostava de se relacionar intimamente com outros homens.

O episodio de que gostaria de se ausentar para longe dos olhares dos outros e ter uma afetividade masculina, traduz-nos num episódio de uma aventura ocorrida em certo dia nas matas de Almeirim em que é visto por populares abraçado a um negro que fugira do seu dono, tendo salientado, quando é abordado, que teria confundido com um javali. Harold Johnson no seu estudo A Pedophile in the Palace: or The Sexual Abuse of King Sebastian of Portugal (1554-1578) and its Consequences (2004) defende o relacionamento de jovens nobres num ambiente paradigmático do universo feminino, sem contudo expressar de forma contundente as inclinações sexuais de D. Sebastião perante a adesão ao gosto pelo mesmo género.

Entre um rei agarrado a um escravo negro, ora a um rei escondido nas dunas da praia a praticar atos sexuais com o seu pajem, diremos que subjazem dúvidas sobre estas situações ocorridas, uma vez que, para além de nos transmitir um devaneio, diríamos irresponsável, do rei, por outro lado, dá-nos a conhecer uma faceta de um jovem monarca sem pudor nos seus atos, quando afinal, se assim o entendesse teria outros locais, como os aposentos reais; casas nobres ou mesmo o seu próprio quarto, que como salientámos anteriormente, apenas era possível ver o seu corpo, mesmo que parcial, no momento de o calcarem.

Nesse local reservado apenas para si, poderia, se o entendesse, consumar os seus desejos mais íntimos. Para além do episódio do javali, e do mencionado ato cometido com um pajem nas dunas, existe um outro onde terá sido visto na procura de parceiros nas matas de Sintra, dando-nos a ideia de um homem tresloucado â mercê dos seus ímpetos e sem o mínimo de coordenação comportamental, qual paradigma de animal que desejava satisfazer os seus instintos de espécie.

Não descurando a historiografia temática associada à intimidade de reis e rainhas ao longo dos séculos, o que por vezes poderia ser algo que fosse praticado pela nobreza masculina, no que se refere a este caso concreto, entendemos que estes três episódios pretendem indicar uma tendência associada a pecados nefandos praticados pelo rei, não esquecendo que constituindo um crime grave, precedido do maior por parte da Inquisição Portuguesa – a heresia -, apenas quem cometesse atos irrefletidos dessa natureza poderia não pensar nas consequências daí advindas, tanto mais sendo o seu tio avô, Inquisidor geral, nomeado por D. João III, avô de D. Sebastião, no ano de 1539.

No que se conhece à sua atuação régia em relação aos escravos, nas suas Leis Extravagantes, compilação de legislação publicada no seu reinado, foi muito acutilante com esta minoria da população portuguesa, tendo sido bastante contundente na aplicação de penas e coimas, sempre que os escravos fugissem do círculo de influência dos seus senhores.

O escravo fugido de Almeirim saberia que o seu dono o procuraria e apanhado nos braços do rei, imagine-se o que pensaria o povo dessa atitude, para não mencionar o que se passaria no seu círculo de amigos mais próximos.

Quanto ao episódio da barca com o seu pajem e a sua fuga para as dunas, não existem mais ecos dessa situação.

Por fim, a procura de parceiros nas matas de Sintra (sugere-se a leitura do livro de Fernando Bruquetas de Castro, Reis que Amaram como Rainhas,2010), parece-nos que se trata de uma intriga palaciana, onde a possível confusão com outro homem, poderá estar na origem da situação.

Para confirmar essa não hipotética tendência de afetividade masculina, basta ler algumas passagens do texto do cronista João Cascão, pois o rei se assim o entendesse e desejasse consumar alguns dos seus ímpetos mais íntimos, teve oportunidade quando se deslocou a Lagos, por exemplo, em que se assiste a uma troca de aposentos entre ele (que estava nas casas do Alcaide-mor) e o preferido amigo, o primo D. Duarte (o qual se aposentou nas casas mais importantes da vila, junto ao mar), durante a noite, não se conhecendo nenhuma notícia de aproximação do rei com outros homens, tanto da sua comitiva (caso houvessem contactos físicos mais íntimos ficariam bem mais bem guardados, mas não totalmente desconhecidos), como até com marmanjos (homens do povo), onde, de certeza, o convívio mais intimo com o monarca seria objeto de conversa entre a população.

Aliás, se tal acontecesse, poderia ter havido testemunhas, que espreitando pelas janelas danificadas (mais tarde concertadas) dos aposentos do primo, poderiam ter visto ou ouvido alguma situação menos padronizada.

Isto é, estando ausente da corte e sem ninguém que o pudesse controlar, poderia fazer o que entendesse quando esteve no Alentejo e no Algarve.

A notoriedade dos seus atos na região e o itinerário da sua Jornada teriam de ter eco, como tiveram, mas os de natureza mais íntima, esses seriam objeto de notícia mais escandalosa, não só pelo grupo que o circundava (maioritariamente homens), mas também pelo tempo que esteve na região.

Como salientámos no início, por onde passava o rei, este não desejava ser visto, sobretudo se nas ruas estivessem mulheres… portuguesas. O seu contacto com mulheres da raia onde sobressaem as castelhanas de Aiamonte, por exemplo, são indícios de que não sendo um grande entusiasta de mulheres e um galanteador, não descurava que o procurassem.

Alguns momentos de lazer são descritos pelo cronista João Cascão quando o rei se encontra em Alcoutim ou em Mértola e nesses breves dias de estadia ou passagem pelo Algarve fronteiriço a Espanha, muitas são as mulheres (novas e menos jovens) que pretendem vê-lo e beijar a mão.

Umas metem-se na barca onde o rei subiu o Guadiana sem que o monarca repudiasse a sua presença. Outras, agarrara-lhe a mão e de forma perentória, beijaram o anel do rei. Parece não ter gostado, mas não houve castigo para a mulher castelhana.

Diríamos, que as mulheres castelhanas seriam do agrado do rei. D. Sebastião pareceu gostar do que viu e quando chegou a Vila Viçosa, já quase a finalizar o seu itinerário, tem uma expressão que consubstancia aquilo que temos vindo a referir: um rei que embora tivesse vergonha da sua aparência física, despedido de roupagens (e lembremo-nos das passagens do citado manuscrito anónimo do século XVIII) não evita que o contatem e que o alegrem sobretudo se fossem mulheres formosas e lustrosas.

Eis o caso ocorrido em Vila Viçosa, e citado por João Cascão: «… Por onde El-Rei passou havia muitas moças da Câmara, muito formosas e lustrosas; deviam de parecer bem a El-Rei, porque depois disse ao Couto que bem se podia ali fazer outra Alfama».

Eis, neste comentário algo que podemos afirmar como as mulheres não lhe eram totalmente indiferentes.

O afastamento do rei em relação às mulheres, sobretudo com as portuguesas que o cronista repetidamente refere, serem feias (não apenas as de Lagos ou Tavira), deverá ser encarado como uma forma de se salvaguardar de comentários maliciosos e intriguistas uma vez que reconhece as suas fragilidades ao nível da sua estrutura física (ofuscada pela pesada e adornada indumentária) e da sua saúde, que o apoquentava desde terra idade.

Se o relacionamento com o sexo feminino poderia ser um embaraço como esposo e sem poder gerar, eventualmente, um descendente, ao centrar a sua autoestima numa interpretação como um guerreiro de Deus, um cruzado contra os inimigos da Fé Cristã, tudo o resto seria diminuto, mesmo a hipotética situação de matrimónio, que ao realizar-se ou por conveniência política, estratégica ou mesmo para que não fosse importunado e que dava pouco importância.

Se analisarmos o propósito do rei ao pedir a mão da filha de Filipe II, contrato que seria reavaliado após a sua vinda, supostamente vitoriosa, de Alcácer Quibir, (Para uma leitura mais aprofundada sobre esta temática, sugere-se a consulta da obra Alcácer Quibir, Visão ou delírio de um rei, 2009, da autoria de Luís Costa e Sousa) estamos, pois, perante uma habilidade régia em ganhar tempo para o derradeiro compromisso de se entrelaçar com uma mulher, a qual teria de esperar alguns anos para que viesse a ter filhos, enquanto o rei se preocuparia com as lutas e conquistas em terrenos dos mouros, sossegando os seus compatriotas de que haveria sucessão e os seus inimigos, internos e externos, que tinha cumprido uma diretriz divina de Deus, como seu representante na nação portuguesa.

Como sabemos, nem Alcácer-Quibir foi conquistada, nem, por via da derrota, o rei não casou. Restava ao país o Cardeal D. Henrique, homem idoso e ligado à Igreja. Ao renunciar à vida clerical para assumir o trono deixado vago pelo seu sobrinho neto, tentou encontrar uma pretendente para contrair matrimónio que assegurasse um descendente.

O pedido foi feito no sentido de se poder casar, mas a autorização que teria de ser outorgada pelo Papa Gregório XIII não foi concedida, pois este, sendo familiar da Família dos Habsburgos, também conhecida como a Casa da Áustria, sabia que um dos seus membros era pretendente ao trono português e tinha o nome de Filipe II de Espanha.