Conforme as circunstâncias

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Salazar negava o voto aos portugueses a pretexto destes serem analfabetos e, consequentemente, não se mostrarem em condições de determinar a sua vida coletiva, necessitando, para o efeito, dum qualificado «tutor», ele próprio, Salazar.

Conquistada, entretanto, a Democracia, a coisa apresentar-se-á mais refinada: se a correlação de forças no parlamento for favorável à votação de matéria que se subscreve, o mesmo parlamento terá toda a legitimidade para se pronunciar sobre ela, denunciando-se o referendo como veículo de manipulação do (ignaro) eleitorado (por exemplo, Manuel Alegre, a propósito de se referendar ou não a eutanásia, clama «Vejam o que aconteceu com o «Brexit»!).

Se, ao invés, não for favorável, faz-se apelo ao referendo como forma suprema de democracia, procurando-se conseguir através dele os objetivos que, por via parlamentar, estariam condenados ao fracasso (como Cavaco Silva ou o Bispo do Porto agora fazem a propósito da mesma eutanásia, depois de não questionarem a legitimidade do parlamento quando este, em maio de 2018, contra ela votou, antes pelo contrário, elogiando a decisão aí tomada, sem necessidade do recurso referendário).

Em suma:

Os portugueses, umas vezes, serão inteligentes sabendo aquilo que querem, outras não. Os portugueses mostrarão saber na escolha dos seus representantes, mas não o suficiente para decidirem o seu destino sem ser por intermédio do saber maior desses mesmos representantes ou vice-versa, ou seja, os portugueses os seus representantes não saberão escolher, mas saberão decidir por si próprios, sem necessidade deles.

Finalmente, a questão da democracia representativa (via parlamento) versus democracia direta (via referendo), em vez de uma questão de ordem prática, jurídica ou filosófica, é reduzida a mero instrumento de oportunismo político, dando jeito uma vezes, outras não, conforme as circunstâncias.

PS – Razões dos prós e contras eutanásia à parte: tempos atrás, tínhamos as pobres a terem de abortar em insalubres vãos de escadas, com risco da própria vida, enquanto as ricas o faziam em seguras clínicas no estrangeiro. Ultrapassada que, entretanto, foi essa diferenciação, tem-se agora a dos pobres terem de morrer em agonia cá, enquanto os ricos poderão fazê-lo de forma suave e assistida lá fora.