Combustível inflacionário

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Depois da queda abrupta de atividade económica do ano de 2020, o mundo parece começar a erguer-se do torpor deixado pela pandemia de COVID-19.

O motor da economia voltou a carburar e pouco a pouco, surgem encomendas, as lojas vendem, as empresas faturam.

Se há pouco menos de um ano pairava o espectro da deflação, o perigo agora é o inverso: a inflação desgovernada, ou seja, a cavalgante ascensão de preços dos bens e serviços.

O Banco de Portugal apontou para uma variação do Índice de Preços do Consumidor na ordem dos 2,6 por cento para este novembro, em termos homólogos, acelerando dos 1,8 por cento registados em outubro.

A explicação para esta inversão prende-se com três ordens de razões: por um lado, o facto da economia dos países avançados abrir-se mais rápido do que o esperado: as pessoas começam a retomar os seus velhos hábitos, comprando mais bens e voltando a ir aos restaurantes.

O período da pandemia permitiu a aquisição de algumas poupanças e agora os agentes económicos planeiam gastá-las.

Embora não tenha sido opção em Portugal, os apoios públicos à COVID-19 nos EUA e em vários países europeus revestiram-se de injeções de dinheiro vivo na economia, através da transferência direta de dinheiro para as pessoas.

Em paralelo, as empresas debatem-se com problemas de retoma da atividade para dar resposta a este aumento de procura, nomeadamente na recriação das cadeias de distribuição que foram alvo de disrupção durante a pandemia.

Os custos relacionados com o transporte internacional de mercadorias multiplicaram-se por 4 em relação ao período pré-pandémico, segundo o índice Drewry’s composite World Container, o que dificulta o tráfego de mercadorias entre os continentes. Estes dois efeitos têm resultados inflacionários significativos.

Outro efeito pode ser explicado pelo aumento dos custos energéticos que se fazem sentir; como o combustível e a eletricidade permeiam todo o processo produtivo, desde a energia utilizada nas fábricas e nos escritórios, até ao transporte das mercadorias até às lojas, um aumento destes a montante na cadeia produtiva tem óbvios resultados no preço final dos bens a jusante.

Por fim, a terceira razão é explicada por questões estatísticas; como o cálculo da inflação é feito com base no período homólogo (ou seja, são utilizados os dados do mesmo mês do ano anterior), e dada a redução abrupta da atividade económica (e consequentemente dos preços) verificada em 2020, a diferença será substancialmente elevada. Os economistas chamam a este o «efeito de base» da inflação.

Por enquanto, o efeito inflacionário em Portugal tem sido modesto; embora a inflação verificada em Portugal permaneça ligeiramente acima do objetivo dos 2 por cento do Banco Central Europeu (BCE), no resto da Europa, os dados são mais preocupantes.

Espanha e Alemanha apresentam valores de inflação para o mês de novembro próximos dos 6 por cento; Lituânia e Estónia padecem de valores superiores a 8 por cento de inflação.

Portugal, no entanto, não demorará a «importar» a inflação de outrem, através dos preços dos equipamentos e bens importados, dada a nossa posição enquanto pequena economia aberta.

O risco de uma escalada de inflação desenfreada na União Europeia é algo que o Banco Central Europeu encara com alguma preocupação, não obstante o mesmo considerar que estes efeitos comecem a amainar já no início de 2022.

Antecipo, porém, algumas variáveis que possam ter efeitos perniciosos para a manutenção de efeitos inflacionários significativos: embora o BCE tenha anunciado a retirada do seu programa de compra de ativos de apoio à crise pandémica para março de 2022, a instituição anunciou que reforçaria o seu programa habitual, tendo em vista a manutenção das baixas taxas de juro atuais.

Por outro lado, a UE conta operacionalizar o pacote financeiro «Next Generation EU» já durante o verão de 2022, não só para ajudar os países europeus na recuperação das suas economias no período pós-pandémico, mas também para mudar a estrutura produtiva dos mesmos, especialmente no que toca às questões de alterações climáticas e de transição digital.

Ora este pacote de ajuda, coloquialmente conhecido pelas nossas bandas como a «bazuca», resultará num investimento transversal significativo nas economias europeias e consequentemente, no crescimento da atividade económica.

Como as economias europeias recuperaram mais rápido do que o esperado, este acréscimo de investimento poderá ter o condão de fazer borbulhar o motor económico da UE até ao «sobreaquecimento», escalando ainda mais os preços, e consequentemente a inflação.

Neste cenário, o BCE terá de rever a sua posição sobre as baixas taxas de juro; a escalada de preços requererá que se «arrefeça» a economia através do aumento das taxas de juro.

Para os países do sul da Europa, altamente endividados, o aumento das taxas de juro não constitui boas notícias, dado que forçosamente teriam de pagar mais caro pela sua dívida.

Por outro lado, uma dose superior de inflação constitui uma benesse para estes, no sentido em que esta «comeria» a dívida de forma mais acelerada, pese embora as consequências negativas para os aforradores dessas economias; para estes, a inflação é um imposto escondido.

Paradoxalmente, a forma de reduzir os efeitos inflacionários que poderão advir desta conjugação de fatores é mesmo a expansão da nova variante da COVID-19, a «Omicron», que poderá resultar na redução da procura agregada e da atividade económica na Europa através de novos confinamentos; caso contrário, terá de ser o BCE a subir as taxas de juro para refrear os «espíritos animais» das economias europeias.

António Guerreiro | Economista