Bairrismo ou Regionalismo?

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Nos últimos suspiros de cada ciclo político é comum assistirmos a uma disputa de protagonismo mediático.

Por um lado, constatamos um aumento da pressão por parte dos grupos profissionais para alcançar condições mais vantajosas (facto comprovado pelo elevado número de greves neste período) e, por outro, assistimos à tentativa de desacreditação das suas reivindicações junto da opinião pública.

No caso particular da saúde, como forma de «controlar» a agenda política, coincidentemente ou não, temos vindo a assistir ao surgimento, nos meios de comunicação e nas redes sociais, de notícias que colocam em causa os respetivos profissionais.

Se a este facto associarmos a chegada do verão, e se a região em causa for o Algarve, estamos perante uma situação altamente explosiva.

Não é de agora que existem constrangimentos na saúde no Algarve. Logo, não é justo atribuir todas as culpas a este ou àquele conselho de administração que se limita a gerir as suas instituições com as poucas ferramentas de que dispõe, muita vez na dependência de orientações superiores «castradoras».

Igualmente, não é justo atribuir culpas aos profissionais da área que já trabalham para além dos limites legalmente exigidos.

A escassez de profissionais no Serviço Nacional de Saúde é crónica e é um problema nacional. Só alguma criatividade estatística o pode negar.

Os meios de saúde da região do Algarve estão teoricamente dimensionados para 450 mil habitantes, mas calcula-se que, neste momento, a população ultrapasse largamente os 500 mil, incluindo os estrangeiros residentes. Na época turística esta população facilmente atinge e ultrapassa a barreira do milhão.

Se a esta sazonalidade e ao défice de profissionais de saúde acrescentarmos os tempos investidos em formação e investigação e o inalienável direito ao gozo de férias dos profissionais de saúde, mesmo nas épocas altas, não será difícil compreender que, em alturas críticas, os serviços de saúde diminuam a sua capacidade de resposta e possam mesmo entrar em colapso.

Os casos da Ginecologia/Obstetrícia e da Pediatria vindos a público não são casos isolados.

Outras áreas na saúde, nestas alturas, só não entram em ruptura porque os seus profissionais assumem o compromisso de realizarem horas extraordinárias, que vão além das exigidas por lei.

Naturalmente que com essa estratégia, ao deslocar recursos para os serviços de urgência, os tempos de espera para as consultas externas, para a realização de exames complementares de diagnóstico e para as intervenções cirúrgicas são altamente afetados.

Assim, a aparente sazonalidade do problema de saúde no Algarve acaba por ter repercussões nos cuidados de saúde a uma população de 500 mil habitantes durante todo o ano.


Não obstante, infelizmente, os problemas da saúde no Algarve, vão muito mais além dos anteriormente referidos. Senão vejamos: a necessidade de transferência de doentes para a região de Lisboa, de forma eletiva ou de urgência, por ausência de uma especialidade no Algarve, constitui só por si uma desigualdade inaceitável no acesso aos cuidados de saúde dos residentes nesta região.

Em situações de urgência, as transferências dependem da disponibilidade de meios (aéreos ou terrestres) e de condições meteorológicas que podem colocar em risco a saúde dos doentes.

Deslocações para tratamentos programados (muitas vezes prolongados) causam transtornos pessoais e económicos aos doentes e seus familiares, podendo constituir uma das causas da não adesão ao tratamento com os riscos que daí advêm.

Por tudo isto, é imperativo o reforço e a diferenciação técnica das especialidades já existentes, bem como a aquisição de competências ainda não existentes na região (cirurgia cardiotorácica, cirurgia vascular, cirurgia pediátrica, transplantação, unidade de queimados, radioterapia, etc.) no sector público da nossa região.

Só com a existência destas especialidades podemos garantir uma verdadeira equidade no acesso à saúde das nossas populações, assegurando os mesmos padrões de qualidade de saúde que outras regiões já têm.

Sendo o Algarve uma região promotora de eventos com dimensão mundial, quais seriam os impactos para a economia regional e nacional se, num destes acontecimentos, ocorresse uma tragédia por ausência de assistência médica adequada na região?

O Algarve, por si só, pela dimensão da população residente (independentemente da sazonalidade) e pela sua periferia geográfica no país, deve ser autónomo em quase todas as áreas da saúde, assim haja vontade política!

No entanto, desengane-se quem pensa que esta será uma tarefa fácil. Desengane-se quem achar que esta tarefa hercúlea depende apenas do empenho de um conselho de administração, ou deste ou daquele autarca.

É minha profunda convicção que apenas com união e vontade regional, sem populismos ou demagogias, tal será possível. Esta verdadeira revolução nos cuidados de saúde irá certamente enfrentar a inércia dos poderes instalados e exigirá o envolvimento de vários ministérios, nomeadamente, da saúde, das finanças e do ensino superior.

Neste particular, a reorganização de vários serviços ao nível da Administração Regional de Saúde (ARS) Lisboa e Vale do Tejo, que constituem na verdade uma oferta excedentária e que atualmente só existem porque respondem a uma procura por parte da população de um sul do país com oferta deficitária, será fundamental.

Posto isto, quanto a mim colocam-se dois cenários para o serviço público hospitalar no Algarve:

Cenário A – A realização de uma separação abrupta dos hospitais, situação que agravará a assimetria existente entre Barlavento e Sotavento, nomeadamente em termos de diferenciação clínica e peso político.

Este cenário pouco contribuirá para a unidade regional tão necessária com vista à concretização deste projeto de autonomia da saúde na região;

Cenário B – A criação de um novo modelo que permita maior equilíbrio nos cuidados de saúde hospitalares na região. Como hipótese, a criação de um hospital central autónomo, que garanta uma medicina diferenciada para toda a população algarvia e do Baixo Alentejo.

Esta unidade, com uma localização geográfica central estratégica relativamente às principais vias de comunicação do Algarve e do Baixo Alentejo, seria apoiada por duas unidades simétricas no Algarve, uma no Barlavento (Hospital de Portimão) e outra no Sotavento (Hospital de Faro), e outras duas unidades no Alentejo (Litoral Alentejano e Beja), cada uma delas com gestões autónomas.

Certo é que o modelo atual está esgotado.

Apesar de não se conhecerem os estudos que levaram à criação do Centro Hospitalar (agora Universitário) do Algarve, parece que o prometido aumento de eficácia/eficiência não foi conseguido.

A manutenção deste modelo não é desejada por uma grande parte da população, pelos próprios profissionais de saúde nem pelo poder político que agora reclama de novo a autonomia para as suas unidades hospitalares.

Qualquer alteração nas políticas de saúde poderá levar anos até que sejam visíveis os seus resultados (positivos ou negativos). É importante conhecer a nossa história para não voltarmos a repetir os mesmos erros.

É tempo de estudar, de forma séria e rigorosa, as futuras alternativas.

É tempo de ter uma estratégia comum para a saúde no Algarve.

É tempo de o Algarve se transformar, tal como já acontece na região do Porto, Coimbra e Lisboa, numa verdadeira referência na saúde.

É tempo de decidir o que queremos para a saúde do Algarve: uma política de bairrismo ou de regionalismo.

Edgar Amorim | Cirurgião na Unidade de Portimão do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve (CHUA)