O recente Decreto-Lei nº 17/2018, de 8 de Março, transpôs a Diretiva (UE) 2015/2302, de 25 de Novembro, relativa às Viagens Organizadas (alargando substancialmente este conceito) e criando a categoria dos Serviços de Viagem Conexos.
No presente artigo abordo o impacto que a manifestamente inadequada transposição em Portugal pode acarretar para a hotelaria que combine os seus próprios serviços de alojamento com outros serviços de viagem, designadamente golfe ou rent-a-car, o que é bastante comum na região do Algarve.
Com efeito, o legislador português em vez de operar uma transposição da legislação europeia para todos os prestadores de serviços de viagem, criou uma nova lei das agências de viagens em que os hotéis, empresas de rent-a-car, companhias de aviação, entre outras, não podem combinar serviços mas tão somente vender os próprios.
1) Em 1990 apenas agência organizadora e vendedora, em 2015 uma multiplicidade de operadores dentre os quais hotéis e companhias de aviação, refletindo as profundas mutações introduzidas pela Internet no sector das viagens
A Internet nasce em 1994 e partir daí surgem novas possibilidades para os consumidores adquirirem serviços de viagem diretamente aos seus prestadores, que também os começam a combinar, ultrapassando a estática brochura ou programa elaborada pelos grandes operadores turísticos:
«Esse mercado passou por grandes mutações desde a adoção da Diretiva 90/314/CEE. Para além das cadeias de distribuição tradicionais, a Internet tornou-se um meio cada vez mais importante de propor ou vender serviços de viagem. Os serviços de viagem não se limitam a combinações sob a forma de viagens pré-organizadas tradicionais, sendo muitas vezes combinados de forma personalizada. Muitas dessas combinações de serviços de viagem encontram-se numa «zona cinzenta» no plano jurídico ou estão claramente fora do âmbito de aplicação da Diretiva 90/314/CEE. A presente diretiva visa adaptar o âmbito da proteção de modo a ter em conta essa evolução, a aumentar a transparência e a reforçar a segurança jurídica dos viajantes e dos operadores» (considerando 2).
2) Associação dos Diretores de Hotéis de Portugal (ADHP) alertou para as graves consequências da restrição do âmbito da transposição da Diretiva
A Associação dos Diretores de Hotéis de Portugal (ADHP), referida pelo legislador como uma das associações ouvidas, além da estruturante Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT) e da Associação da Hotelaria de Portugal (AHP), alertou para a importante questão do âmbito da transposição na curta audição sobre o Anteprojeto, que decorreu entre 26 de dezembro e 4 de janeiro de 2018.
Ao considerável alargamento do âmbito de aplicação imposto pelo legislador europeu, abrindo o mercado das viagens organizadas e serviços de vagens conexos a todo o tipo de empresas, responde o anteprojeto com uma fortíssima restrição em que hotéis, companhias de aviação e demais prestadores de serviços veriam regredir fortemente o seu estatuto jurídico comparativamente ao atual.
Não pode pois confinar-se a transposição da New Package Travel Directive (NPTD) às agências de viagens, publicando para o efeito uma nova lei das agências de viagens que subverte completamente o quadro legislativo existente, criando um anacrónico monopólio legal das viagens organizadas e serviços de viagens conexos para aquelas empresas e interditando a combinação de serviços de viagem por outros prestadores de serviços.
À luz da nova diretiva a generalidade das empresas pode legalmente combinar serviços de viagem, aceder a um mercado também ele expandido – porquanto viagem organizada é agora bem mais abrangente que o tradicional pacote turístico constante de um brochura vendida nas instalações da agência ou comercializada online. Com efeito, o legislador europeu ingressa no novo quadro qualquer pessoa singular ou colectiva, privada ou pública, que combine serviços de viagem independentemente de se tratar de uma agência de viagens, um hotel, uma companhia de aviação ou uma rent-a-car.
É o que resulta da muito abrangente definição de operador constante do art.º 3º/7 New Package Travel Directive, abarcando toda a comercialização presencial ou on-line por outras empresas para além das agências de viagens:
«7) Operador, qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, inclusive através de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, para fins relativos à sua atividade comercial, empresarial, artesanal ou profissional, quer atue como organizador, retalhista, operador que facilita serviços de viagem conexos ou como prestador de um serviço de viagem;»
Ora, enquanto o legislador europeu alarga extraordinariamente o conceito de operador, ou seja, todas as pessoas singulares e coletivas, ingressam no novo quadro de proteção do viajante, o anteprojecto português restringe consideravelmente o seu campo de atuação, os prestadores de serviços turísticos só poderiam comercializar os seus próprios serviços – um hotel o alojamento, a companhia aérea o transporte, o rent-a-car o aluguer da viatura -, não podendo combiná-los com os de outros prestadores. Mais, nem sequer contempla o nº 3 do art.º 3º da anterior LAVT que excluía “do disposto no n.º1 [ou seja, não considerava atividades próprias das agências de viagens] a comercialização de serviços que não constituam viagens organizadas, feita através de meios telemáticos ou da Internet, por empreendimentos turísticos e empresas transportadoras.
Vejamos o exemplo de um hotel que combina alojamento e voltas de golfe cujos campos são explorados por outras empresas, criando um package de uma semana no Algarve.
O problema é que a alínea a) do nº 1 do art.º 3º do Decreto-Lei nº 17/2018, de 8 de Março, atribui às agências de viagens o monopólio da organização e venda de viagens organizadas e até, surpreendentemente, a nova categoria dos serviços de viagem conexos:
«Atividades das agências de viagens e turismo
1 – As agências de viagens e turismo desenvolvem, a título principal, as seguintes atividades próprias:
a) A organização e venda de viagens organizadas e a facilitação de serviços de viagem conexos, quando o facilitador receba pagamentos do viajante, respeitantes aos serviços prestados por terceiros;
….
O referido monopólio da combinação de serviços de viagem decorre do nº 1 do art.º 4º, o denominado princípio da exclusividade:
Artigo 4.º
Exclusividade
1 -1 – Só as pessoas singulares ou coletivas inscritas no Registo Nacional das Agências de Viagens e Turismo (RNAVT) ou que operem nos termos do artigo 10.o podem exercer em território nacional as atividades previstas no n.o 1 do artigo anterior, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 – Não estão abrangidos pelo exclusivo reservado às agências de viagens e turismo:
a) A comercialização direta dos seus serviços pelos empreendimentos turísticos, pelos estabelecimentos de alojamento local, pelos agentes de animação turística, pelas empresas transportadoras e pelas empresas de aluguer de carros ou de outros veículos a motor, bem como por qualquer outro prestador de serviços;
b) O transporte de clientes pelos empreendimentos turísticos, pelos estabelecimentos de alojamento local e agentes de animação turística, com meios de transporte próprios;
c) A venda de serviços de empresas transportadoras feita pelos seus agentes ou por outras empresas transportadoras com as quais tenham serviços combinados;
d) A facilitação de serviços conexos quando o facilitador não receba pagamentos do viajante, respeitantes a serviços prestados por terceiros;
e) A mera intermediação na venda ou reserva de serviços de viagem avulsos solicitados pelo cliente, sem prejuízo do disposto no número anterior».
Assim sendo, de harmonia com o nº 2 alínea a) um hotel pode comercializar diretamente os «seus serviços» mas já não lhe é permitido combinar alojamento e golfe, ou alojamento e rent-a-car, precisamente dois exemplos do alargado conceito de viagens organizadas.
As plataformas como a AirBnb também são afectadas pela alínea c) do nº 1 do art.º 3º.
De harmonia com a alínea d) a um rent a car ficaria interdito um fly drive, outro exemplo do alargado conceito de viagem organizada.
Poderiam multiplicar-se os exemplos.
Enquanto o legislador europeu pressupõe a perfeita licitude destas e muitas outras combinações de serviços de viagem pelos hotéis, plataformas de alojamento ou outras ditas colaborativas, companhias aéreas, rent a cars e inúmeras outras empresas, o legislador português veda-lhes tal possibilidade apenas lhe permitindo venderem os seus próprios serviços.
Punindo-as severamente, como flui do correspondente preceito do Anteprojecto:
«Artigo 46.º
Contraordenações
1 – Constituem contraordenações muito graves:
a) A infração ao disposto no n.º 1 do artigo 4.º;
……….
4- As contraordenações cometidas nos termos do número anterior, são punidas com as seguintes coimas:
a) Contraordenação muito grave:
i) Tratando-se de pessoa singular, de € 2.500,00 a € 3.740,00;
ii) Tratando-se de micro, pequena ou média empresa, de € 7.500,00 a € 22.000,00;
iii) Tratando-se de grande empresa, de € 15.000,00 a € 44.000,00».
3) Autores estrangeiros sustentam o parecer da ADHP
Um conjunto de especialistas tem alertado para esta situação de total abertura ao mercado, como sucede com o professor italiano Gianluca Rossoni no seu artigo sugestivamente intitulado «La nuova direttiva sui viaggi a pacchetto apre definitivamente al trader in concorrenza con le agenzie».
O novo papel, decorrente da realidade digital, atribuído às companhias aéreas, ao alojamento hoteleiro e extra-hoteleiro, ao rent-a-car e ao marketplace em geral, é destacado à luz da ampla definição de operador constante do art.º 3º/7, contrastando com o dueto agência organizadora, agência vendedora prevista na Diretiva de 1990:
«In altri termini la direttiva prende atto della realtà digitale nella quale compagnie aeree, attività ricettive alberghiere ed extralberghiere, rent a car nonché altri soggetti appartenenti alla generale categoria del marketplace già agiscono nell’ambito dei contratti di viaggio proposti in via dinamica attraverso processi collegati di prenotazione online in concorrenza con le agenzie di viaggio; si prevede infatti all’art. 3 punto 7 della norma europea una nozione ampia di professionista (trader nel testo inglese) definito come “qualsiasi persona fisica o giuridica che, indipendentemente dal fatto che si tratti di un soggetto pubblico o privato, agisca nel quadro della sua attività commerciale, industriale, artigianale o professionale nei contratti oggetto della direttiva».
Destaca igualmente que os legisladores nacionais têm muito pouca margem de manobra em razão do art.º 4º da Diretiva:
«Tra l’altro, la scelta di un forte livello di armonizzazione stabilita dall’art. 4 della direttiva non permetterà agli stati membri d’introdurre nel proprio diritto nazionale disposizioni divergenti dalla norma europea, lasciando poco spazio a norme interne tese a limitare l’attività del trader nei contratti relativi ai pacchetti turistici e ai servizi turistici collegati rispetto ai tradizionali agenti di viaggio».
4) Congresso da ADHP no Algarve, em 15 e 16 de Março, debate várias questões relacionadas com a transposição da Directiva das Viagens Organizadas
Um dos temas do XIV Congresso Nacional da Associação dos Diretores de Hotéis de Portugal, que se realiza no Nau Salgados Palace Hotel, nos próximos dias 15 e 16 de março de 2018, é precisamente «A transposição da Diretiva Europeia sobre as viagens organizadas – que consequências para a hotelaria». Uma oportunidade para abordar e desenvolver esta e outras candentes matérias relacionadas com a transposição do mais importante diploma europeu do turismo publicado neste século.
Carlos Torres | Advogado, Professor da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE) e Católica Porto Business School