1) A falência da Thomas Cook como um teste à Nova Diretiva. Os diferentes níveis de proteção do consumidor consoante os Estados Membros
O colapso da Thomas Cook constitui um bom teste aos diferentes sistemas nacionais de proteção dos consumidores aquando da insolvência dos operadores turísticos, revelando incompleições da transposição da legislação europeia nalguns dos 28 Estados Membros da União.
No essencial, a Directiva 2015/2302, de 25 de Novembro de 2015, relativa às viagens organizadas (uma categoria muito alargada para além da simples brochura) e aos serviços de viagem conexos (uma nova nova categoria), protege fortemente os consumidores, garantindo o célere repatriamento e as despesas de alojamento dos que se encontram em férias e, por outro lado, assegura o rápido e total reembolso do preço da viagem daqueles não viajaram.
A atual diretiva é bem mais exigente comparativamente à de 1990, que substituiu, refletindo as múltiplas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e o sentido de elevada proteção do consumidor constante do TFUE, expressa pelos diferentes órgãos europeus, maxime pelo Parlamento Europeu.
O princípio da efetividade, consagrado no artigo 17º da diretiva, representa um dos avanços mais significativos. No essencial a «efetividade implica que a proteção esteja disponível logo que, em consequência de problemas de liquidez do organizador, os serviços de viagem não sejam ou não venham a ser executados, ou venham a sê-lo apenas parcialmente, ou no caso de os prestadores de serviços exigirem o respetivo pagamento aos viajantes» (considerando 39).
A proteção em caso de insolvência «deverá cobrir os montantes previsíveis dos pagamentos afetados pela insolvência do organizador e, quando aplicável, os custos de repatriamento previsíveis. Tal implica que a proteção deverá ser suficiente para abranger todos os pagamentos previsíveis efetuados pelos viajantes ou por conta destes respeitantes às viagens organizadas na época alta, tendo em conta o período compreendido entre a recepção desses pagamentos e a conclusão da viagem ou das férias, bem como, quando aplicável, os custos de repatriamento previsíveis. Isto significa, de um modo geral, que a garantia tem de abranger uma percentagem suficientemente alta do volume de negócios do organizador no que respeita a viagens organizadas» (considerando 40).
A diretiva não impõe um concreto modelo, podendo cada um dos países optar por diferentes soluções v.g. seguros, garantias bancárias, fundos de garantia (públicos ou privados) ou até combiná-las. Existe, pois, discricionariedade na forma como a proteção em caso de insolvência é implementada Estado a Estado, mas absoluta vinculação quanto à efetividade.
A partir da falência da Thomas Cook, podemos retirar as primeiras ilações do diferentes sistemas de proteção instituídos em cada país.
Uma lição de excelência relativamente ao Reino Unido, que apesar do Brexit já anunciou a manutenção do seu corpo de normas, um sistema caro mas muito garantístico. Tratando-se da maior operação área pós-guerra, poucas horas depois do colapso já estavam anunciados os voos de regresso, assegurados os pagamentos aos hotéis que dificultavam ou impediam o check-out dos turistas, planeados os transferes e demais aspectos envolvidos. Terminando o repatriamento, iniciou-se um expedito mecanismo on line de reembolso dos clientes que não viajaram.
Menos positiva a lição da Alemanha que, em aparente violação da regra da efetividade, instituiu um sistema de seguro com a limitação anual de 110 milhões de euros, os quais foram consumidos nos repatriamentos, debatendo-se atualmente com reembolsos que podem duplicar ou mesmo triplicar aquele valor.
Parece ficção, mas é a preocupante realidade que temos, à vista de todos. O fundo de garantia é insuficiente, não cobrindo sequer um quinto dos gastos de 50 milhões de euros decorrentes da quebra de um operador em época alta.
2) Consequências da falência de um operador no mercado português
Façamos agora um exercício sobre as consequências da falência de um operador turístico, de média ou grande dimensão, relativamente aos consumidores portugueses.
A efetividade traçada pelo legislador europeu não é minimamente observada em Portugal. Com efeito, a garantia não assenta numa percentagem suficientemente alta do volume de negócios do operador, inexistindo qualquer pagamento anual, tem um paradisíaco custo zero, pelo que o fundo não dispõe de uma verba que permitiria fazer face à quebra de um operador que represente em época alta 50 milhões de euros, não cobrindo sequer um quinto desse valor.
Além do mais, os grandes operadores, precisamente os que geram maior risco, pagam proporcionalmente menos que as PMEs e apenas quando o fundo atinge o limite mínimo de 1 milhão de euros, sendo que essas contribuições extraordinárias cessam logo que perfaça 2 milhões de euros.

O sistema é alimentado essencialmente a partir de uma contribuição única de 2500 euros, ou seja, igual para todas as empresas, independentemente do volume de negócios, a qual é prestada no momento da inscrição no RNAVT (art.º 32º/1 LAVT). Deste modo, o fundo é alimentado, na sua quase totalidade, por PMEs, precisamente a maioria das empresas que se inscreve no Registo Nacional de Agentes de Viagens e Turismo (RNAVT).
Em Portugal, uma vez ocorrido o colapso do operador é responsável o retalhista (art.º 29º/2 LAVT), pelo que terão de ser pequenas empresas que auferem uma reduzida comissão pela comercialização do package a suportar as despesas de repatriamento dos turistas que se encontram em férias e o reembolso dos que não viajaram.
Como tenho referido, trata-se de uma questionável opção do legislador português (art.º 13º/1 Diretiva), com o apoio ou mesmo induzida pela associação empresarial das agências de viagens, pois a Diretiva 2015/2302 permite que os retalhistas não sejam responsabilizados, como sucede na Alemanha ou no Reino Unido.
Imagine-se um grupo de 10 turistas portugueses retidos num hotel da Tunísia, os portões fechados impedindo a sua saída, com o hoteleiro reclamando ao retalhista facturas em atraso do operador, condicionando o check-out dos casais e respetivos filhos.
Os retalhistas constituem uma espécie de infantaria, de carne para canhão desta absurda solução, respondendo pelo operador até ao limite das suas capacidades. Quando soçobram, os viajantes ficam entregues a si próprios, ninguém providencia o seu repatriamento, devendo reclamar a restituição das verbas que despenderam a um fundo manifestamente insuficiente.
Uma vez negociada a verba com o hoteleiro e abertos os portões do hotel ou permitido o acesso aos quartos para irem buscar os seus haveres maxime os passaportes, o retalhista terá ainda de assegurar o transfer para o aeroporto. E adquirir uma nova viagem de regresso dos 10 turistas na mesma companhia aérea ou noutra, consoante as circunstâncias.
Ora o retalhista, em regra uma pequena empresa familiar, já tinha pago ao operador a totalidade do preço dos packages, recebendo em contrapartida uma inexpressiva comissão.
Mesmo que consiga enfrentar com sucesso o repatriamentos dos 10 viajantes, suportando integralmente os custos do hotel, transfers e passagens aéreas, ainda terá provavelmente de enfrentar mais despesas. Na localidade onde desenvolve a sua atividade terá vendido packages a outros clientes, reservado e pago antecipadamente os mesmos ao operador. Ora estas pessoas terão de ser reembolsadas na totalidade e num curto prazo das viagens que pagaram mas não realizaram.
A generalidade dos retalhistas enfrentará situações semelhantes e só quando os retalhistas não cumprem é que intervém o fundo de garantia.
É claramente um sistema que beneficia grandes organizações, colocando, em primeira linha, os retalhistas a resolver os problemas decorrentes do colapso dos operadores. Se for um pequeno problema os retalhistas conseguem enfrentá-lo, de maior dimensão colapsam também, gerando-se o típico efeito dominó.
Para além desta iniquidade, ou seja arrastando para a falência um significativo conjunto de pequenas empresas, com consequências muito negativas no emprego, o sistema português é de um total alheamento relativamente aos viajantes que se encontram no destino.
O viajante terá de encontrar, por si próprio, as soluções para o pagamento da conta do hotel – ocorre-me uma situação recente da Thomas Cook em que o hoteleiro exigiu 8000 libras a cada cliente – transporte para o aeroporto e passagem aérea de regresso. Apresenta depois as despesas num prazo supletivo de 30 dias.
Também quando os viajantes adquirem um fly drive ou voo e hotel deveriam beneficiar de um sistema de proteção em caso de insolvência da companhia aérea.
O legislador português ignora grosseiramente esta imposição europeia, as profundas mudanças introduzidas na forma de adquirir viagens induzidas pela internet.
Mesmo pensando em falências de valores muito inferiores ao da Thomas Cook, por exemplo 30 milhões de euros dum só operador, em época alta, o nosso fundo de garantia não cobre sequer um terço desse valor.
Para cúmulo, o nosso sistema é um verdadeiro paraíso para os denominados operadores tóxicos, designadamente doutros Estados membros. Com um contribuição única de 2500 euros podem comercializar packages no montante global de dezenas ou mesmo centenas milhões de euros. Podendo gerar 50, 100 milhões de euros de repatriamentos e reembolsos a suportar pelo fundo de garantia solidário.
Parece ficção, mas é a preocupante realidade que temos, à vista de todos. O fundo de garantia é insuficiente, não cobrindo sequer um quinto dos gastos de 50 milhões de euros decorrentes da quebra de um operador em época alta. Os retalhistas constituem uma espécie de infantaria, de carne para canhão desta absurda solução, respondendo pelo operador até ao limite das suas capacidades. Quando soçobram, os viajantes ficam entregues a si próprios, ninguém providencia o seu repatriamento, devendo reclamar a restituição das verbas que despenderam a um fundo manifestamente insuficiente.
Carlos Torres | Advogado e professor da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE)