A Cidadania tramada

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1. «Em Ersília, para estabelecer as relações que governam a vida das cidades, os habitantes estendem fios entre as esquinas das casas, brancos ou pretos ou cinzentos ou pretos e brancos, conforme assinalem relações de parentesco, permuta, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que já não se pode passar por meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas; só restam os fios e os suportes dos fios.» Vão reedificar Ersília noutro lugar, diz o autor, e tecer «com os fios uma figura semelhante que desejariam mais complicada». Sem a cidade de Ersília, os seus refugiados «não são nada». Provavelmente, alguns leitores já terão identificado a origem das citações e o autor: trata-se de «As Cidades Invíveis», de Italo Calvino, para muitos uma das obras-primas da literatura do século XX. Os fios, ou a trama, que entretecem as relações entre os habitantes da cidade desafiam-nos a reler a sua simbologia: para mim, é da vida na cidade, ou do modo como se vive na cidade, não do lugar físico, que se trata aqui. É o modo como habitamos o edificado, e as expetativas dos cidadãos, que afetam a felicidade das pessoas e, também, as escolhas dos valores. Podemos ler aqui a cidade como o lugar de uma educação para a cidadania no sistema dos saberes que a escola acolhe e transmite: mais uma prática do que soma de conteúdos, mais um agir com os outros, mais uma vontade de complexidade do que uma resignada repetição do mesmo. E, assim, podemos falar de cidades abertas e fechadas.

2. No interior da trama que entretece as relações entre os cidadãos, é desejável que a indispensável competição político-partidária não esqueça que uma educação integral é um bem a promover por toda a sociedade. Daí a exigência: a procura de consensos, suportada por diálogos vigorosos, em busca de soluções possíveis, em cada situação e em cada momento. Dispensa-se, portanto, as tentativas apostadas em criar um clima social manipulado, de crispação crescente e generalizada. A maledicência é um vírus pior do que a COVID-19 (Papa Francisco). Neste contexto, os recentes abaixo-assinados, em torno do direito à objeção de consciência dos pais que rejeitem, para os seus filhos, as aulas de Educação para a Cidadania, não me parecem inteiramente inúteis. Não consegui, no entanto, descortinar a maldade que possa existir nas Linhas de Orientação para a Educação da Cidadania. Em minha opinião, as escolas têm o direito e o dever de oferecer a todos uma proposta educacional que vise o desenvolvimento integral da pessoa e que corresponda ao direito de todos de aceder ao saber e ao conhecimento, não deixando ninguém para trás.

3. No caso que suscitou o abaixo-assinado «Em defesa das liberdades de educação», a invocação da condição de objetor de consciência pelo pai das crianças de Famalicão, ocorrem-me algumas perguntas que podem dar origem a uma boa conversa:

a) Já foi feita a demonstração de que, naquela escola e no quadro da concretização da respetiva estratégia de educação para a cidadania, os alunos são expostos a um discurso que viola direitos fundamentais, o que permitiria acolher a invocada objeção?

b) Caso tenha sido feita a demonstração de violação de direitos fundamentais pela escola, por quem e em que instância foi feita essa demonstração?

c) Ou as crianças ou os seus pais são objetores porque simplesmente «gostam/ não gostam» das tarefas, noções ou problemas que são propostos nas aulas?

d) Em que ponto da discussão sobre o papel da família é que se torna possível defender, tutelar e tratar separadamente, o interesse e o direito de uma criança ou de um adolescente em nome de uma educação democrática, o que deveria implicar a abertura desperta e crítica à pluralidade de discursos (da ciência, das artes, da política, da ética, da moral e do religioso) que atravessam a escola e a sociedade?

e) Está a família em condições de assegurar essa educação democrática ou, simplesmente, prefere que o seu educando fique em casa (correndo o risco de ficar para trás)?

f) Se alguns temas da Educação para a Cidadania, (como a igualdade de género, questões relativas à sexualidade, ou outras) incomodam até à rejeição, o que nos é lícito esperar um dia destes, quando certos pais se aperceberem de que em «Os Maias», de Eça de Queirós, se conta uma história de incesto assumido ou de que «O Crime do Padre Amaro», do mesmo autor, narra-nos a paixão de um padre por uma jovem paroquiana que vai até à gravidez e à sua morte?

Manuel da Luz | Cidadão algarvio