Teatro de Palha em Aljezur desafia a viver o «espírito do momento». Lavrar o Mar voltou a montar um palco efémero para mais um ciclo de música, cinema e novo circo.
Muda o local, da várzea da aldeia da Vilarinha para o Parque Industrial da Feiteirinha, e evolui o projeto do talvez mais único teatro em território algarvio, que segundo Madalena Victorino, este ano já incorpora muitas das lições aprendidas no ano passado.
«É aprendendo que se caminha. A montagem foi mais fácil e ágil. Estamos mesmo muito contentes com este novo Teatro de Palha que se vira para dentro de si próprio, como uma Medina marroquina, tal como as vilas e aldeias do norte de África que estão viradas para dentro de um centro que neste caso é o palco. Temos também um bar, temos uma zona expositiva, onde vamos mostrar as fotografias do João Mariano (Ensaio sobre a Osmose Visual), e também temos uma instalação e um projeto que vem de Espanha, de José António Portilho, que é uma exposição que se chama Biblioteca de Cordas e Nós, que é uma coisa para usufruir em família. É uma escultura linda sobre livros que não foram publicados e que estão guardados nesta biblioteca como se fossem livros que não existem, mas que estão cheios de histórias», descreve Madalena Victorino, coreógrafa e diretora artística do Lavar o Mar.
O novo Teatro de Palha estreia no sábado, dia 24 de junho, com um concerto especial de Martín Sued & Orquestra Assintomática. Criado em 2020, este sexteto liderado por bandoneonista Martín Sued, tem uma formação que inclui os instrumentos característicos do tango tradicional, mas que usa essas raízes para ir além das fronteiras do género. E mais: distingue-se pela dimensão cénica e performativa, que faz o público mergulhar em sonoridades de cores contemporâneas, iluminadas pela tradição popular argentina.
«Temos uma programação que vai de quinta-feira a domingo, com exceção da abertura. Cada fim de semana é um ponto alto da programação. Vamos ter cinema e muita música também para dançar e novo circo, num ambiente muito especial. Cada fardo tem 400 quilos, e um metro de altura por dois de cumprimentos. São retangulares de facto porque também se arrumam melhor nos armazéns, dizem os homens. Então fica muito alto e muito bonito», descreve.

À conversa com o barlavento juntou-se também o arquiteto Pedro Quintela, que explicou como foi fazer, de novo, uma obra com material tão efémero e tão improvável, mas ao mesmo tempo tão orgânico como a palha.
«Sim foi um desafio. Já tinha tido alguma experiência em colaborar com o mundo da cultura e das artes performativas, portanto, só não fiquei surpreendido» devido ao facto de o desafio ter partido de Madalena Victorino e de Giacomo Scalisi, também ele diretor artístico do Lavrar o Mar.
«Mas, com respeito ao trabalho em si, eu estava à espera que isto acontecesse, com certeza, no percurso da minha vida. Com certeza não sabia quando nem com quem», diz.
Formado no Edinburgh College of Art, «a minha arquitetura sempre foi muito relacionada com a arte, em geral. Neste caso, temos aquilo a que chamamos uma escultura habitável» devido à escala.
«Com respeito ao teatro, aprendi muito em termos de construção. Porque no ano passado foi muito um salto de fé. Estávamos com um pouco de receio, porque não conhecíamos o material. Mas pouco depois de estar pronto, anotei todas as potenciais melhorias para fazer numa próxima vez, embora, ainda nem sequer sabia se isso iria acontecer ou não! Agora, já estamos à vontade e daí que até as formas se tornam ainda mais interessantes, porque não há medo. De repente isto tornou-se quase uma plasticina para nós», explica o arquiteto, que também está habituado a trabalhar no restauro de ruínas e até já passou pela construção de esculturas em areia.
«Este ano, o teatro tem uma particularidade. No ano passado era no meio da Várzea, estava numa zona muito ampla, e como tal era muito aberto para fora. Este ano, virámo-nos mais para dentro e fomos mesmo buscar a ideia de um útero, de colo, uma coisa muito materna. Só pontualmente é que temos vistas exteriores, para uma árvore ou algo assim. E temos três espaços completamente diferentes dentro da mesma peça» que atingiu um equilíbrio entre a funcionalidade e a forma.
«Certíssimo. Todas as paredes que estão aqui fazem sentido. Como aqui não temos pontos de referência que nos interessem para criar a nossa arte, vamos muito buscar as forças da natureza para o resultado», diz Pedro Quintela, do atelier lisboeta O Espírito do Lugar.
As paredes do teatro de palha estão orientadas para tirar o melhor partido da luz natural e captar a melhor exposição solar certa durante o tempo em que for utilizado. Tem ainda aberturas transversais «para passar a brisa que evitam que fique abafado» e uma preocupação com a acústica.
«Tudo está baseado numa elipse de 22 por 12 metros. Metade é plateia e a outra metade tem a parede de cena ao fundo. Como isto já tem alguma escala, se fosse circular, ficávamos muito longe uns dos outros e não ficávamos de frente. Aqui qualquer lugar é topo de gama. Não há os lugares melhores nem piores», descreve o arquiteto. Outra diferença é que «o acabamento das bancadas é em ângulo reto, um trabalho muito limpo».
E seria possível fazer isto com alvenaria? «Não queremos. A filosofia aqui é disfrutar do momento. Valorizar o efémero. Quando as pessoas dizem que é pena que o teatro vai desaparecer, respondemos, então, aproveite bem o momento». Claro, até Quintela admite que esta é uma ideia que nem parece de arquiteto. «Pois não, eles são bastante afirmativos»…
No entanto, diz Giacomo Scalisi, «ainda não será este ano, mas a ideia é um dia cobrirmos este teatro de palha com terra crua e fazer uma construção que fique por algum tempo. Um efémero duradouro. É um meio termo. Cobre-se com rede de galinheiro e depois cobre-se com taipa».
E se no ano passado foi complicado arranjar a palha necessária, agora «aconteceu um milagre. Este ano, as pessoas vieram à nossa procura. No fundo, estão a alugar-nos a palha que depois voltará aos donos para alimentar o gado. Ou seja, há aqui toda uma economia circular e que ajuda os agricultores e produtores. Claro que quando a palha é devolvida, vale mais, pois está impregnada de arte. É uma palha com duas vidas», brinca Scalisi.

Os responsáveis do Lavrar o Mar – As Artes no Alto da Serra e na Costa Vicentina fazem questão de deixar um agradecimento a Armindo Branco, «o homem da palha que tem sido incansável na construção do teatro de palha».
O primeiro filme a ser exibido no cinema a céu aberto será «Lobo e Cão», de Cláudia Varejão, no domingo, dia 25 de junho, às 21h30.
Nas noites de cinema, o DJ residente será Marco Bocci AKA Big Lebowski, também ele «um apaixonado cinéfilo». Com base na sua pesquisa, irá prolongar as emoções e as sonoridades do filme que o público acabou de ver com um DJ set inédito e eclético.