Estão a decorrer, desde o início do mês, escavações arqueológicas em Loulé Velho, Quarteira. Os trabalhos permitiram já identificar parte de um cemitério tardo romano que ainda se conserva no local.
Os trabalhos começaram há duas semanas e até ao momento, os investigadores identificaram várias sepulturas, que remontam aos séculos III/IV e VI. De forma retangular, foram construídas com materiais reaproveitados (fragmentos de telhas e tijolos) nas paredes. Foram ainda identificados um enterramento infantil e um adulto.
Uma das sepulturas apresenta características atípicas, pois foi construída com alvenaria de pedra e argamassa bastante resistente. O porquê desta diversidade no mesmo local é um enigma que está a intrigar a equipa.
«O que nos apareceu não são paredes, nem casas. São realmente construções porque são sepulturas, uma espécie de caixa que não é feita em pedra, mas sim em alvenaria argamassada. Não conhecemos aqui na região nada com estas características. São coisas novas para nós»,explica ao «barlavento» Rui de Almeida, investigador do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ) e arqueólogo da Câmara Municipal de Loulé.
Em setembro de 2018 realizou-se uma campanha de prospeção geofísica pela empresa Eastern Atlas (Cornelius Meyer) tendo em vista identificar eventuais estruturas arqueológicas na área. Um dos objetivos desta campanha é a de verificar os resultados das sondagens.
«No fundo, é como se tivesse sido feita uma radiografia ao chão. Trabalharam numa área definida, de domínio público, com autorizações devidas. Depois com a ecografia obtivemos algumas anomalias», explica o arqueólogo municipal.
Durante a prospeção geofísica identificaram-se áreas com eventuais vestígios ainda conservados (paredes, fundações, derrubes, enchimentos de fossas e valas).
«Pensávamos que iria aparecer uma parede. Mas o que temos aqui são várias sepulturas, diferentes enterramentos e diferentes momentos. Estavam cobertas com grandes lajes que guardámos para depois tentar reconstituir. Uma das quais é muito estreita, com paredes muito bem feitas, o que não é normal. E mais à frente está a surgir uma pedra que não sabemos o que é», afirma.
No entanto, nestas novas descobertas «estávamos à espera de um enterramento com espólio e afinal só temos ossário, o que é esquisito. Ou seja, os ossos estão todos desarticulados. Chego à conclusão que se trata de um adulto, talvez um homem devido ao tamanho do crânio, da bacia e do fémur», detalha Daniela Anselmo, 29 anos, antropóloga da Universidade de Évora.
Ainda segundo Daniela Anselmo, nas escavações anteriores, «conseguiu-se perceber, e isso é muito importante, que as ossadas pertencem a uma população local. Por exemplo, descobriu-se uma mulher com uma fratura na perna, que conseguiu sobreviver a isso e recuperar, apesar de ter ficado com a coluna afetada. Este ano apareceu uma criança». Infelizmente, as ossadas estavam em muito mau estado de conservação devido às condições do solo e à ação das raízes dos pinheiros.
Os trabalhos, que decorrem até final desta semana, têm por objetivo caracterizar o que resta do sítio romano de Loulé Velho que teve ocupação desde meados do séc. I até à antiguidade tardia (séc. VI) e que se encontra quase desaparecido pela destruição do mar e pela erosão costeira.
Fica situado num enclave entre a ribeira de Carcavai, o estuário e a ribeira da Almargem. «Era uma posição privilegiada para a exploração de recursos piscícolas e um terreno muito fértil para produção agrícola», descreve Catarina Viegas, professora do Centro Universitário da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Os investigadores pensam que ali existiu «o que seria uma vila romana típica, com qualidade, bons materiais, uma casa que podemos chamar de senhorial. Depois, várias instalações de produção, fabris, fábrica de sal e um lagar. Sabemos disso porque foram encontrados partes de mosaicos, colunas, mármores de revestimento de paredes e frisos. São só fragmentos, mas se existem é porque haveria algo maior. Na praia, por exemplo, esteve, muitos anos, um contrapeso cilíndrico de um lagar. Só não sabemos se de azeite ou vinho», explica Rui de Almeida.
Esta investigação enquadra-se no projeto «LORIVAI: Loulé Velho e o paleoestuário da Ribeira de Carcavai: povoamento, interação e dinâmicas desde a época romana», uma parceria do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa/ Faculdade de Letras (UNIARQ) e da Câmara Municipal de Loulé e começou em 2018.
«Quando a exposição Loulé – Território, Memórias e Identidades ainda estava em Lisboa, nós já tínhamos interesse em estudar Loulé Velho. Quando se fez a investigação para a exposição, objetivamente, que o conhecimento que temos sobre este sítio não é grande. Além disso, é um local em risco. Está, pelas forças da natureza, irremediavelmente condenado a desaparecer. Por isso, estudá-lo tornou-se prioritário», recorda Rui de Almeida.
O ponto de partida, contudo, não foi no terreno, mas sim no Museu Municipal de Loulé, cuja reserva guarda um abundante conjunto de materiais, fruto de recolhas feitas ao longo das últimas décadas.
«Mergulhámos, literalmente, nos depósitos do Museu. Eram quase 40 contentores cheios de material. Começámos a inventariar, classificar, catalogar, ou seja, todo um trabalho normal numa investigação arqueológica. Atualmente ainda não temos a coleção terminada, mas levamos quase 4000 registos de fragmentos de cerâmicas, metais, vidros, mármore, estuques emosaicos. No outro dia estiveram cá uns colegas a estudar os fragmentos de vidro e disseram que só os tinham visto antes em Braga e que foi de lá que vieram», revela Rui de Almeida.
«As peças mais antigas são cerâmicas finas de mesa vermelhas, que vieram de Itália para cá, e que datam das décadas 30/40 d.C (século I). As mais recentes são do séc. VI/VII d.C. Isto não quer dizer que o sítio tenha sido ocupado continuadamente ao longo de 600 anos», diz o arqueólogo municipal.
Neste estudo, «colaboramos com várias entidades. Hoje em dia, o conhecimento dos materiais arqueológicos é tão vasto e especializado que não conseguimos trabalhar sozinhos. Tomámos a iniciativa de pedir o contribuo de especialistas. Por exemplo, para o estudo dos vidros, temos uma equipa formada por investigadores de uma Universidade espanhola e outra de New Castle, Reino Unido», detalha.
O objetivo será perceber o papel de Loulé Velho na rede de povoamento do sul da Lusitânia e enquadrá-lo nas trocas comerciais à escala do império.
«Há coisas como cerâmicas finas, ânforas romanas, sobretudo materiais de grande circulação e importação. São coisas muito estudadas em todos os sítios do império romano, somos capazes de datar uma peça de há 2000 mil anos com certa de 50 anos de precisão», acrescenta.
Uma história ainda por contar
Os trabalhos de campo contam com a participação de técnicos da Câmara Municipal de Loulé, de estudantes da licenciatura e mestrado daquela Faculdade e da antropóloga Daniela Anselmo (Universidade de Évora), sob coordenação de investigadores da UNIARQ / Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Câmara Municipal de Loulé.
Apesar de Loulé Velho ser conhecido desde o século XVIII, nunca foi objeto de investigação sistemática, tendo-se realizado escavações pontuais em 1970, 1986, posteriormente em 1996 (por Mario Varela Gomes) e em 2006 (por João Pedro Bernardes).
A informação disponível sobre o sítio foi ainda sistematizada por Isabel Luzia numa publicação que realça a importância do sítio na antiguidade (Luzia, 2004).
Já neste século realizaram-se intervenções de emergência em 2010, suscitadas pelo aparecimento de uma sepultura na arriba, possivelmente relacionada com o cemitério tardo romano que ainda se conserva no local (sob coordenação de Cidália Duarte e Alexandra Pires).
No ano seguinte teve lugar nova intervenção, na sequência da obra de construção do apoio de praia existente no local.