Lais de Guia – Associação Cultural do Património Marítimo, ao serviço do município de Tavira está a recolher as memórias dos antigos companheiros da armação do atum do Barril. Objetivo é as salvar este património imaterial antes que se perca e, também, fazer um retrato contemporâneo da pesca do polvo de Santa Luzia. Aclamado fotógrafo Pepe Brix é o homem por detrás da objetiva.
São seis as embarcações de Santa Luzia em que o fotógrafo Pepe Brix tem estado, desde setembro, a embarcar, entre locais e costeiros, da pesca do polvo. Algumas foram escolhidas devido à questão da herança familiar do ofício, e outras porque têm novas gerações a bordo na arte.
No fundo, a ideia é diversificar a amostra do que hoje ali existe. A história remonta a 2014, aquando da conclusão do mestrado da arqueóloga santaluziense Brígida Baptista, fundadora da Lais de Guia – Associação Cultural do Património Marítimo, em conjunto com o biólogo Carlos Sonderblhom, que pensou em organizar duas rotas, uma dedicada ao polvo, e outra dedicada ao atum e à herança do Barril.
Desde então, centenas de pessoas tiveram a curiosidade de conhecer aquela faceta do concelho de Tavira que está agora, por fim, a ser registada. Em novembro de 2019, o município de Tavira celebrou com a Lais de Guia um contrato de aquisição de serviços de investigação e produção de conteúdos, pelo valor de 61400,00 euros (mais IVA), financiado pelo fundo comunitário do GAL (Grupo de Ação Local) Sotavento.
«Depois de muito trabalho de preparação e de um voto de confiança por parte da autarquia, estamos na fase da implementação no terreno, que ajudará na salvaguarda, valorização e preservação das memórias e da história de uma pequena vila piscatória que tanto tem para mostrar e contar», conta a investigadora.
As rotas chegaram a fazer parte do programa de verão do Centro de Ciência Viva de Tavira. «Os interessado podem ver a chegada do polvo à lota, conhecer as artes, ver a triagem e a pesagem, culminando nos apoios de pesca», onde os pescadores ainda fazem os seus covos.
Já a «rota do Barril, percorre as casas dos patrões, a casa dos camaradas, o cemitério de âncoras, com visitas ao pequeno museu para explicar como a armação era colocada no mar» e explorada.
Hoje, contudo, já quase se perdeu a memória «do quotidiano de sol a sol, dos milhares de quilómetros de cabos, de boias de cortiça, do conhecimento dos mestres para que tudo funcionasse» e esta é a «última oportunidade para registar tudo isso».
Agora, «o objetivo é fazer não só uma recolha da memória dos pescadores. Das centenas de pessoas que viviam na armação, menos de 10 estão vivos, na casa dos 80 anos. Vamos também entrevistar os filhos e outros familiares próximos, que viveram lá até 1966, e fazer a ligação entre o que era a vida no Barril e em Santa Luzia, onde no inverno faziam a arte da sacada ou outras artes, ligadas à pesca do polvo. Estamos a tentar fazer essa reconstrução nos embarques, com o Pepe Brix, e recuperar um pouco essa linha familiar de pais e avós, em alguns casos, que estiveram na armação do atum e cujos descendentes hoje continuam a pescar», explica a arqueóloga.
O trabalho de Pepe Brix com a Lais de Guia dará origem a uma exposição itinerante com fotografias e um filme de cinco a 10 minutos que promove a pesca do polvo.
«Há toda uma parte etnográfica, antropológica, e histórica da rota que queremos mostrar», diz.
Brígida Baptista já conhecia Pepe Brix, no âmbito de uma escavação na Ilha de Santa Maria, há cerca de 10 anos e mantiveram contacto até hoje.
«Queremos captar a alma das pessoas e penso que ele é o fotógrafo indicado para este trabalho», aponta.
Para o Pepe Brix, «esta é uma oportunidade fundamental para fazer um levantamento fotográfico sobre o que está a acontecer atualmente na faina do polvo, que impacto ambiental tem, como é que pode ser minimizado e como é que se pode intervir a esse nível», explica.
«Queremos também perceber como é a logística desta fileira, quem são os compradores do polvo de Santa Luzia e por que motivo tem um valor acrescentado, e, também como é que ainda pode ser mais valorizado».
«Pessoalmente, tenho uma opinião sobre isso. Acho que há um consumidor cada vez mais exigente e informado. A questão ambiental pode ser diferenciadora na valorização do polvo de Santa Luzia. Neste momento há milhares de covos de plástico e ferro que são largados no mar do país todo e há muitas perdas. É um tema atual e extremamente preocupante. Os alcatruzes de plástico do Algarve já estão a chegar à Flórida. São questões que podem ser levantadas. Voltar aos alcatruzes de cerâmica é uma possibilidade, sei que seria muito difícil, mas que valor tem a nossa preocupação ambiental? Em que patamar está? Tenho feito essa pergunta, quão importante é a nossa perspetiva e quão difícil é esse retrocesso», questiona o fotógrafo.
Em Santa Luzia, «há muitos mestres que dizem que a pesca no tempo dos alcatruzes de barro era mais seletiva, havia mais espaço para o ciclo reprodutivo do polvo, ao nível da gestão de stocks poderia evoluir bastante, mas teria um custo de produção maior», dada a sua fragilidade.
Um projeto «aliciante» diz Pepe Brix
Pepe Brix teve um primeiro contacto com a pesca do polvo em 2015, quando fez um retrato geral da pesca em Quarteira.
«Para mim é muito aliciante fazer um retrato contemporâneo desta comunidade, com toda a relação histórica que está muito associada à questão do Barril, possivelmente uma das indústrias mais fortes da vila. Perguntam-me porque me centro nos assuntos do mar. Primeiro porque sou açoriano, nasci numa ilha em que a pesca tem um grande peso numa economia que é delicada. Isso fez-me perceber que há muitas comunidades piscatórias espalhadas por Portugal inteiro que são zonas que têm micro-economias muito delicadas e por vezes são acusadas, de forma pouco sustentada, de exploração de recursos naturais selvagens, e nesse discurso ambientalista, perde-se um pouco a empatia com quem está na linha da frente, isto é, o pescador», considera.
«Acho que há muito pensamento a explorar nesta relação entre o homem e o mar e que passa também pela parte do consumidor», refere.
No caso da recolha de Santa Luzia, «um trabalho destes é sempre uma oportunidade para levantar uma série de questões».
No que toca ao atum, «nada está a acontecer e portanto não se pode retratar. Mas estamos a recolher as memórias e toda a questão logística de como tudo se processava durante aqueles seis meses no Barril. Estamos a fazer uma recolha oral do máximo de informação possível, para que com isso se consiga uma caracterização o mais fiel».
Mas será que ainda se consegue acrescentar algo de novo ao que já é conhecido?
Responde Brígida Baptista: «sou de uma família em que o meu bisavô e avô trabalharam na armação do Barril. A minha mãe esteve lá até aos 15 anos. Toda a minha vida, em termos familiares, sempre ouvi falar dela. Acho que esta questão do legado familiar ajuda em muito e quando fazemos as rotas, as pessoas gostam muito dessa referência muito pessoal. Por tudo o que estudei tive sempre em mente que Santa Luzia é um caso único, não só por ser o único posto pesqueiro português que só pesca polvo, mas também pela herança do Barril que tem todo o interesse para ser um sítio classificado. Com este projeto quero valorizar não só as pessoas mas também o espaço que ainda existe».
«É bom reiterar que o Barril é o único sítio em Portugal onde ainda existem vestígios em quantidade das antigas armações do atum. Ainda temos as estruturas habitacionais, de trabalho e restos das artes que eram montadas no mar», explica.
O conjunto edificado está concessionado a um privado, embora no entender de Brígida Baptista, «o património seja de usufruto geral, de uma comunidade, de um país».
«Das centenas de pessoas que já aqui trouxe, quase ninguém tem noção do que aqui acontecia. Pensam que as casas são para restaurantes e bares e perguntam porque é que não há informação disponível».
Já no que toca à pesca do polvo, «temos duas vertentes. Perceber quando é que este recurso começou a ser explorado, porque é que ganhou mais expressão aqui em Santa Luzia e relacionar isso com a questão das sacadas».
O antigo arraial do Barril (ou dos Três Irmãos) foi fundado em 1867 por José Pires Padinha (importante comerciante, armador e industrial de Tavira) e dois sócios. O recorde da pesca foi em 1881, quando foram pescados 46825 atuns de direito e revés. Funcionava de abril a setembro, tendo encerrado em 1966.
«Penso que é importante o município de Tavira, enquanto entidade pública ter ao seu dispor informação para quando for preciso consultar. É para isto que servem as entrevistas que estamos a fazer. São depoimentos na primeira pessoa», descreve Pepe Brix.
Até porque segundo a arqueóloga, «o que se escreve muitas vezes é o repetir de fontes. O que estamos a tentar fazer é ir diretamente à fonte, à parte humana, às vivências, é o que nos distingue».
O fotógrafo concorda. «Há pormenores como o que vestiam, onde punham as crianças, todas essas memórias são postas para trás nas publicações mais académicas. É isso que estamos a tentar fazer de forma estruturada para quando estas pessoas já não estiverem cá». Por outro lado, «a história é sempre escrita pelos mais letrados. Desta vez será diferente», conclui Brígida Baptista.
Pepe Brix, o fotógrafo do mar
Pepe Brix nasceu em 1984, na de Ilha de Santa Maria nos Açores, no seio de uma família de fotógrafos. Aos 12 anos de idade começa a fotografar e entrega-se em simultâneo ao laboratório. Mais tarde vai viver para a cidade do Porto onde realiza o curso profissional de fotografia no Instituto Português de Fotografia. Durante a sua passagem pela cidade desenvolve alguns projetos na área do fotojornalismo num dos quais resulta o projeto final de curso, valsas do mundo.
Em maio de 2005 começa a desenvolver um projeto de fotografia de rua em viagem que visa, por via do registo documental, a exploração sensorial do mundo e do autoconhecimento. Desde então o projeto já percorreu a Europa, os Estados Unidos da América, Peru, Equador e Índia e Nepal. Ganhou o Prémio Gazeta Fotojornalismo 2015 e tem várias reportagens publicadas nos principais órgãos de comunicação social nacionais. Colabora também com a National Geographic. Neste projeto em Santa Luzia, Pepe Brix está ao serviço da Nerve Atelier de Design.