«Hamster Clown» é a nova megaprodução do Teatro do Elétrico que vai estar em cena no Cineteatro Louletano, entre hoje e domingo. O encenador Ricardo Neves-Neves e intérprete Rui Paixão revelam como nasceu esta criação.
Não se conheciam antes deste projeto, como surgiu a vossa colaboração?
Ricardo Neves-Neves: Quando comecei a fazer leituras e a procurar textos que pudesse encenar, lembrei-me que, já há algum tempo, gostava de fazer uma coisa na qual não tenho muita experiência: teatro sem texto. Em vez de seguir o caminho do costume de escrever textos para encenar ou de procurar textos de outros, decidi explorar esta possibilidade de fazer um espetáculo sem texto. Ia vendo aquilo que o Rui Paixão colocava online e aquele universo que ele tem do monstro… eu também tenho feito uns monstros, talvez uns monstrinhos mais meigos, mas senti ali uma cumplicidade e achei que o Rui era a pessoa certa para trazer essa experiência do espetáculo sem texto. Também gostava daquela vertente de transformação dele, que também tenho nos meus espetáculos. Pensei que ele seria a pessoa certa para arriscar nesta possibilidade nova de avançarmos para um espetáculo que acaba por ser o oposto daquilo que tenho andado a fazer, sempre com base num texto. Desta vez, o espetáculo é aquilo que se conta sem texto.
Rui Paixão: Já tinha uma admiração sincera pelo trabalho do Ricardo Neves-Neves e do Teatro do Elétrico, pelo universo fantástico que traziam para os espetáculos e a abordagem estética que faziam, que me agradava muito. Nunca tive oportunidade de ver nenhum espetáculo dele ao vivo, porque vivi fora, mas via as fotografias e aquilo atraía-me. Quando começámos a conversar um com o outro, parecia óbvio que os nossos caminhos se cruzassem.
O vosso ponto de partida foi essa ideia do teatro sem texto ou já havia alguma coisa mais?
Ricardo Neves-Neves: No início, havia algumas imagens, que já não sei se surgiram antes ou depois de falar a primeira vez com o Rui: era uma figura perdida na floresta, que tinha de caçar um coelho ou um veado e que o comia. Andámos atrás da ficção e da fábula, do universo infantil e daquela zona dos contos infantis trágicos.
… tal como em Banda Sonora, também estreado no São Luiz.
Ricardo Neves-Neves: Sim, essa é uma imagem que me vem recorrentemente. Mas aqui comecei a ver isso feito por um género de rato ou de hamster e foi essa a proposta que fiz ao Rui. Começámos a pensar num animal, que depois se foi transformando. Temos muitas maneiras diferentes de falar deste espetáculo, o Rui e eu. O meu discurso também foi mudando ao longo do tempo. Já não vemos esta personagem como um animal, mas antes como um homem ou uma mulher, não fechamos o género, e olhamos para ela pensando que, em vez de ter havido uma evolução darwiniana do homem a partir do macaco, houve a partir de um hamster. Penso que qualquer espectador verá ali uma pessoa, com características diferentes e um desvio genético. Depois, a partir desta figura começámos a falar de tudo, do universo de terror, de questões ligadas ao drag queen… aprendi há pouco tempo que drag vem do Shakespeare, Dressed As Girl… e é isso que fazemos aqui, temos um rapaz vestido de rapariga. Depois, em cima disso, o Rui mostrou-me alguns vídeos de uma artista britânica, a Juno Birch, que tem um universo muito divertido e, ao mesmo tempo, um rasgo que queima e é ácido. Esse humor atraiu-nos, essa possibilidade de termos uma coisa azeda em cima do espetáculo. A peça ficou com muito disso, esse verde do podre, do pesadelo, do pântano, uma treva com bactérias. Ao mesmo tempo, é uma coisa meio alienígena, que identificamos mas que não é do nosso planeta. O processo de trabalho foi muito de palavra puxa palavra, ideia puxa ideia, com muitas conversas, indecisões, avanços e recuos.
Foram juntando as ideias e referências dos dois.
Ricardo Neves-Neves: O Rui mostrou-me coisas de que nunca tinha ouvido falar. Tem uma licenciatura em YouTube, sabe o YouTube todo de cor! Não há nada que lhe diga que ele não vá logo buscar um vídeo. Vi imagens extraordinárias e artistas extraordinários que o Rui me mostrou e nem sabia que existiam. Falámos muito de teatro físico, claro, do James Thiérrée, neto de Chaplin, de todas essas expressões artísticas.
Rui Paixão: Neste trabalho não partimos da Literatura, não houve um texto, existiam imagens e isso permitiu seguirmos ideias radicalmente diferentes. Isso tornou este processo muito experimental, porque é impossível fazer-se teatro físico conceptualizando, a 100%, o que vai acontecer. Tem de se fazer, tem de se ir para o espaço de trabalho, precisamos de estar no terreno, com o fato de treino a experimentar. Todo esse processo é mágico. Nenhum dos dois chegou com ideias definidas do que queria falar, fomos cavando e fomos descobrindo.
O Ricardo há pouco disse que tinham visões diferentes deste espetáculo, mas parecem bastante em sintonia…
Ricardo Neves-Neves: Uma das coisas que me ajudou aqui no início – o Rui não precisava dessa muleta, mas eu sim, por tudo isto ser uma novidade – foi pensar: não há texto, porque a personagem ainda não precisou de falar. Para o Rui, a primeira expressão é o corpo, por isso, não precisou disto. Também lhe disse que podia colocar no espetáculo coisas que fossem segredos dele, que não precisava de me explicar, porque não temos de ter tudo combinado entre nós. O espectador também não vai receber tudo da mesma maneira. Essa amplitude de interpretações é boa.
Rui Paixão: Para mim, o teatro físico não é a substituição da palavra. O que as pessoas vão ver em palco não é um texto que não está a ser dito ou que está a ser mimado. O teatro físico existe como uma escrita radicalmente diferente. Se aqui as imagens são as palavras, é normal que elas sejam diferentes para os diferentes criadores e para os espectadores. E ainda bem. O método que o Ricardo tinha para comunicar comigo eram as palavras e o método que eu tinha para comunicar com ele era o meu corpo em movimento. E encontrarmo-nos neste cruzamento foi o desafio deste processo. Aqui estamos a dar imagens que depois quem vê pode ampliar para vários significados. É como a poesia oriental, em que tudo é dito mais por imagens do que por palavras concretas.
Ricardo Neves-Neves: É essa coisa de ler nas entrelinhas, que já se começa a perder um pouco. Há uns anos, o Demarcy-Mota encenou Victor ou as Crianças no Poder, de Roger Vitrac, e disse que aquele texto tem muitas coisas nas entrelinhas e foi mais facilmente entendido quando foram em digressão para o Japão do que quando estrearam em França. Isso é muito engraçado. Estamos com uma zona de pensamento cada vez mais direto e imediato e parece que não nos damos ao trabalho de ler nas entrelinhas e de fazer a interpretação do símbolo. Não é que este espetáculo seja uma incógnita, em que temos de estar sempre a fazer um exercício de descodificação, mas é nesse ler nas entrelinhas que vamos encontrar alguns segredos. O ler nas entrelinhas foi também um trabalho grande que fizemos na sala de ensaios. É aí que existe um néctar qualquer do espetáculo.
Para o Rui, o que foi mais diferente neste processo de colaboração com o Ricardo, relativamente ao que já costumava fazer?
Rui Paixão: Foi diferente para melhor, no sentido em que não tenho muitas certezas e poder pensar nas minhas propostas em conjunto com outra cabeça também me coloca numa espécie de corda bamba. As incertezas tornam-se mais claras, as certezas vacilam frequentemente. Foi diferente, claro, mas, ao mesmo tempo, houve espaço para ser igual, porque houve abertura do Ricardo para lhe mostrar coisas e pensarmos em conjunto. Este espetáculo é mesmo dos dois, seria impossível ser replicado por outras pessoas ou se cada um de nós trabalhasse com outra pessoa. Trouxe o meu corpo para o palco e o Ricardo trouxe um olhar mais exterior que vê como todos os elementos se juntam. Sou muito novo, ainda estou a tentar perceber como é tudo e foi um desafio muito generoso, este que o Ricardo me lançou: poder criar uma obra para um teatro grande na cidade de Lisboa. A busca constante entre nós os dois tem sido fantástica.
Ricardo, foi difícil resistir à tentação da palavra?
Ricardo Neves-Neves: Não, porque a regra do jogo era esta. Nem sequer foi uma luta ou uma coisa imposta. Na verdade, o trabalho do Rui fez com que a palavra não fosse necessária porque ele comunica comigo na cena sem precisar de falar. No teatro físico, sei reagir mas não sei criar, por isso, muitas vezes, o primeiro passo foi do Rui e, nesse passo, ele fazia com que a coisa existisse logo.
A narrativa foi-se construindo ao longo dos ensaios?
Ricardo Neves-Neves: No início criámos uma ideia de percurso da personagem, mas com influências novas, nossas e de toda a equipa criativa, as coisas foram mudando. O conjunto de ideias que todos recolhemos aqui e ali, mesmo que não tivessem ficado, fazem parte do espetáculo. As coisas vão-se transformando e acho que isso vai acontecer sempre até ao fim. Mesmo que o movimento seja igual, a interpretação da dramaturgia pode continuar a ser descoberta até ao final. Se isso acontece com textos escritos e até com textos que escrevo, aqui é ainda mais forte.
As ideias de cenografia e dos efeitos visuais e sonoros, que são tão presentes no espetáculo, também foram aparecendo na sala de ensaios?
Rui Paixão: Aqui tudo se foca naquilo que estamos a ver e a ouvir. Tudo o que se vê é enorme, porque, sem a palavra, tudo o que queremos dizer tem de ser colocado em cena. Não podemos falar disso e esperar que as pessoas imaginem, temos de mostrar. Por isso, toda a parte estética tem uma importância enorme, e também o que se sugere pelo que se ouve. E é uma importância pensada ao detalhe. Acreditamos que todos os pormenores têm leitura, todos os movimentos do corpo, a inclinação da cabeça, o lugar para onde olho, tudo. Quanto mais tudo for eficiente mais o público estará em comunicação connosco. E, por isso, os adereços também são parte essencial do espetáculo.
Ricardo Neves-Neves: Há coisas que estão lá, mas apenas sugeridas. Por exemplo, no início, quando falávamos de um ratinho, pensámos numa gaiola. Agora não existe gaiola, existe um pequeno jardim, mas ele nunca sai daquele jardim e, por isso, essa ideia de gaiola continua presente. A roda do hamster, de que falámos ao princípio, não existe, mas precisámos de ter uma janela e ela tem a forma e a dimensão da roda. As coisas foram sempre sendo transformadas ao longo do trabalho na sala de ensaios, mas houve sempre qualquer coisa que foi ficando. E o movimento do Rui foi-se construindo em função de tudo isso – por exemplo, em função de uma saia comprida e de saltos altos. Naquele jardim barroco, aquelas estátuas são quase outras personagens e começámos a incluir na nossa narrativa certas cumplicidades e sentimentos em relação a elas, que foram objetos propostos pela cenografia. Outra coisa em que o meu discurso mudou – e foi o Rui que me fez ver isto – é que isto não é bem um solo, porque ele não está ali sozinho. Há um ator, mas também há estátuas e há abelhas, em enxames… tem visitas e isso, no espetáculo, é dado pelas outras áreas de criação.
Rui, é um desafio manter a expressividade, escondido por tantas camadas de caracterização e figurinos?
Rui Paixão: É um desafio, do qual gosto muito. Mas no meu trabalho é quase obrigatória essa transfiguração. O Ricardo disse-me muitas vezes, nos ensaios, “não faças tantas expressões com a cara, porque não vais precisar delas, arranja outras soluções”. Essa transformação estava decidida desde o início. Uma das coisas que foi mais aliciante quando o Ricardo falou comigo pela primeira vez foi essa ideia de recuperar a teatralidade do ator que tenta um exercício quase circense de se transformar numa outra pessoa. O que sinto quando ponho aquelas camadas todas em cima de mim é que elas passam a ser uma marioneta que posso controlar e que elas ampliam tudo aquilo que estou a fazer. Não escondem, ampliam, por serem tão estranhas e fora do comum. Acredito nessa magia do teatro. Quando tem à sua frente uma personagem assim, a fazer o que faz, o espectador fica a pensar quem é aquela figura e como é que o ator faz aquilo, se é ou não o cabelo dele, como consegue saltar com uns saltos daquele tamanho… Numa altura em que as pessoas raramente se surpreendem porque têm acesso a tudo, essa atenção e curiosidade é incrível. Essa transfiguração dá-me arrepios, porque quando fui estudar teatro era isso que ambicionava, essa transformação dos artistas do Teatro Nô, que usavam máscaras, que iam para as ruas comunicar com as pessoas, foram essas histórias que me fizeram vir para o teatro. A transfiguração, para mim, é essencial. No palco quero ser esse corpo que fica atrás de uma marioneta que é maior do que eu. Por isso, nada daquilo é entulho, antes pelo contrário. Gosto dessa ideia de ser uma coisa fora do comum, estranha, de não ter medo do teatral, de ir ao teatro ver uma coisa que é excecional, fora do quotidiano, que não vejo se não for a uma sala de espetáculos. É para isso que pago bilhete para ir ao teatro, para ver algo que não veria na rua.
A pandemia e o confinamento tiveram reflexo no espetáculo que criaram?
Ricardo Neves-Neves: Esta pandemia trouxe-nos outra ideia de solidão. E isso, mesmo que de forma diferente, aconteceu a toda a gente. É muito difícil avançar para um espetáculo depois disto sem que tenha tido influência. E, ainda por cima, voltamos disto e começamos a trabalhar um solo – e nem sequer foi a pensar nisso. Às vezes, vejo o Rui a fazer coisas ali sozinho e lembro-me das semanas que passei sozinho em casa e em que já falava com as plantas. O espetáculo não é sobre isso, mas se alguém quiser que seja, também pode ser.
Rui Paixão: O último espetáculo do Teatro do Elétrico, que estreou no São Luiz, tinha mais de cem pessoas na equipa, não era? E quando o Ricardo me ligou, eu tinha regressado há dois meses da China, a trabalhar com 50 pessoas em palco, no Cirque du Soleil… e de repente somos só nós os dois no início deste projeto. Sentia muita falta desse lado humano, dessa proximidade. Houve um mês de trabalho, em pleno confinamento, em que éramos só mesmo os dois, porque não se podia juntar mais ninguém. E vejo o lado positivo disso, de nos podermos focar naquilo, de não termos de dar atenção a centenas de pessoas, de termos tempo. Este espetáculo não fala sobre o confinamento, no entanto isso está lá implícito e é sobre esse cuidado do humano, da simplicidade, do trabalho de um encenador para um ator. É um trabalho mais pessoal e acho que essa é uma parte bonita de tudo isto.
Os figurinos
Rafaela Mapril
São três, as camadas de figurino com que se veste o ator Rui Paixão em «Hamster Clown». A primeira, em tons arroxeados a lembrar um rato esfolado, cria-lhe a pele, dá-lhe três pares de mamas e ainda uma cauda. É assim esta figura entre o hamster e o ser humano, entre o homem e a mulher. Depois, a segunda descreve-se como uma espécie de lingerie que muda a forma deste corpo híbrido e lhe dá contornos mais femininos, com apenas duas mamas, mais cintura e mais ancas. Por último, um vestido comprido, digno de uma senhora do século XIX, pronta para passear num jardim barroco. «Cada uma destas camadas vai modificando o corpo do ator. Na verdade, existem ali três corpos: o do Rui, o do hamster e o da personagem inventada pelo hamster», diz Rafaela Mapril, responsável pelos figurinos. O vestido, conta, foi buscar a silhueta a um desenho feito por Rui Paixão logo no início do projeto. Depois, não faltaram ideias e, mesmo que muitas tenham ficado pelo caminho, todas deixaram um rasto que se reflete em cada uma destas três camadas de figurinos.
A cenografia
José Manuel Castanheira
Inventar um lugar onde possa acontecer alguma coisa que ainda não se sabe o que é nem sempre é fácil – foi assim que começou o processo de criação da cenografia de Hamster Clown. Atrás da ideia de hamster, veio a ideia de uma gaiola que aprisionasse tudo e todos (público incluído). «Podia ser uma metáfora sobre uma qualquer metamorfose, das muitas que se passam à nossa volta. Algo que, embora diluído no quotidiano, nos pudesse inquietar e, ao espelho, mostrar que, de facto, algo muito estranho está a acontecer», conta José Manuel Castanheira, responsável pela cenografia. As ideias foram evoluindo – «em sucessivos e incríveis diálogos com o Ricardo Neves-Neves e o Rui Paixão, num processo intenso, muito rico e aberto» – e passaram, entre outros, por um Gabinete de Curiosidades sobre o mundo animal ou um museu de figuras estranhas, desaguando numa «fantasia orientada pela ironia dos gestos quotidianos e pelas situações absurdas com que lidamos diariamente sem sequer já nos apercebermos», continua. Das atmosferas áridas e desoladoras, avançou-se para a imagem de um jardim barroco (sem pretensão de rigor histórico, sublinhe-se) e foi assim que nasceu a ideia central do cenário, inspirado também no imaginário de Castanheira, que, em criança, brincava num jardim em Castelo Branco, cheio de estátuas, de labirintos, túneis e jogos de água. «É também um lugar habitado por fantasmas», nota. Ao fundo, no palco, um ecrã como ponto de fuga – «roda do circo, que pode ser também a roda do hamster ou até um olho gigante que nos observa. Talvez a hipótese de fuga para outros mundos, derradeira possibilidade para novos voos».
A caracterização e os adereços
Cristóvão Neto
Do hamster ao homem, a personagem de «Hamster Clown» foi ganhando formas diferentes, cada vez mais alienígena e andrógena, descreve Cristóvão Neto, que concebeu a caracterização de Rui Paixão e os adereços do espetáculo. Aos poucos, esta figura foi ganhando cor, absorvendo uma certa cultura pop e adotando os tons pastéis de pastilha elástica, numa miscelânea de épocas e referências. Cristóvão Neto criou uma prótese em silicone, que transforma a cara do ator, tapando-lhe o nariz, as bochechas e o lábio superior. A isso se junta, na caracterização, a pintura da cara e do pescoço de roxo e ainda uma peruca bem amarela – um processo de caracterização que dificilmente demora menos de uma hora e meia… Para os adereços, teve de pensar em objetos que se relacionassem bem com os movimentos em palco e que trouxessem magia à cena: uma estátua a quem sai um braço, outra a quem sai a cabeça, tentáculos de polvo (com mais de dois metros de altura), um bicho de estimação, umas mãos de lagosta, um carrinho de compras… «Ir ao encontro deste universo surreal que tem muitas linguagens e muitas épocas diferentes – dos gregos ao futuro – e conseguir uma estética coerente foi o desafio maior», diz Cristóvão Neto. O segredo esteve no jogo de cores, acrescenta – e benditos anos 1970, a dar mote.
A sonoplastia
Sérgio Delgado
Ossos a estalar, pios de corujas, aspiradores em ação, terras pantanosas… «Hamster Clown» anda entre o humor e o terror e os sons que ouvimos na sala, mais do que criarem o ambiente certo, contribuem para a ação. «Os espetáculos do Ricardo Neves-Neves têm sempre uma paisagem sonora forte, mas desta vez, não havendo palavras, essa proximidade entre a sonoplastia e a personagem e a ação é ainda maior», considera Sérgio Delgado, que compôs os registos sonoros ao longo do espetáculo sempre combinando vários sons e várias texturas diferentes. «É uma espécie de partitura musical, uma narrativa sonora que vai dando um ambiente psicológico ao espetáculo, como se tudo se passasse na cabeça daquela personagem», descreve. Um trabalho feito ao milésimo de segundo para acompanhar os movimentos do ator no palco e que exige uma sintonia constante – é que quase tudo o que se ouve ali é lançado em tempo real durante o espetáculo e nada se pode atrasar ou antecipar.
O vídeo
Oskar&Gaspar
Foram muitas conversas, muitos pormenores técnicos e estéticos até se chegar aos conteúdos de vídeo de «Hamster Clown». Para a equipa do coletivo Oskar&Gaspar, este não foi o primeiro contributo para um espetáculo de teatro, mas o universo de trabalho revelou-se uma novidade. «O equilíbrio entre o que se passa no palco e as projeções que fazemos foi o nosso maior desafio. Tivemos a preocupação de não roubar o protagonismo à personagem – só mesmo quando necessário…», explica Eduardo Cunha. «As projeções são imersivas, mas não invasivas», reforça. Com o videomapping, a narrativa ganha novos elementos, seja pelas projeções feitas sobre o círculo de cinco metros de diâmetro ao fundo do cenário, que ganha contornos de janela e ponto de fuga, seja pelos vários elementos que vão surgindo ao longo do espetáculo. Tudo feito através da ilusão, refletindo «as viagens mentais desta personagem» e até interagindo com ela. É uma «trip», conclui Eduardo Cunha.
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Textos de Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz gentilmente cedidos ao barlavento. Fotografia de Bruno Filipe Pires no ensaio de imprensa no Cineteatro Louletano.