Quando a medicina convencional não consegue dar resposta aos problemas de crianças com autismo e pessoas com deficiências diversas, três cadelas especiais de ajuda social entram em ação.
É uma explicação simples para o trabalho da KOKUA, um projeto pioneiro no Algarve que até já conta com o interesse da unidade de Faro do Centro Hospitalar do Algarve (CHA).
«Cada caso é um caso e precisa de uma estratégia diferente para ajudar a resolver os problemas destas pessoas. É fundamental ter muita preparação, mas também criatividade e imaginação», explica Daiana Ferreira, 24 anos, mentora deste projeto fundado em 2014.
Nascida na Argentina, cedo veio para Tavira. Licenciada em Psicologia, decidiu especializar-se em «cães de assistência e em intervenções assistidas com animais», na Fundação Bocalan, em Madrid. Hoje trabalha em diversas unidades de multideficiência, em contexto médico ou educativo.
Ferreira está desenvolver vários programas relacionados com terapias, educação e atividades assistidas por animais. As sessões podem ter lugar em escolas, instituições particulares de solidariedade social, unidades de saúde, e também em contexto privado.
Mas o que leva alguém a encetar uma carreira numa área ainda tão pouco explorada e complexa? Daiana Ferreira foi certamente influenciada pela irmã mais nova, cedo diagnosticada com a síndrome de Rett, uma doença rara.
«Houve um Natal em que os meus pais ofereceram-me uma labrador que me acompanhou durante 12 anos. O apoio emocional deste animal, ao longo de todo o processo de doença da minha irmã, foi muito importante para mim. No final da sua vida, a cadela aprendeu a antecipar e avisar-nos. Sem qualquer tipo de treino, se a minha irmã estivesse prestes a ter uma convulsão, ela ia buscar-nos. Tinha a sensibilidade de nos alertar antes de acontecer a situação. Foi uma experiência inspiradora».
Cães em contextos médicos
Os cães de assistência e terapia requerem um treino e habituação desde cedo ao mundo da deficiência. «Há que expô-los a tudo aquilo que um cão doméstico não está habituado. Desde as cadeiras de rodas aos aparelhos e equipamentos de apoio. E também expô-los à forma como se comportam as pessoas com necessidades especiais. É um contexto diferente que precisa de ser treinado. É preciso que o cão esteja confortável e que desfrute dos momentos de terapia para que todo o processo funcione», explica.
«Também faço atividades assistidas por animais que são momentos de lazer onde se pode trabalhar com objetivos terapêuticos», acrescenta.
Quando terminou os estudos na capital espanhola, Ferreira trouxe consigo a labrador preta «Sueca». Uma experiente cadela de terapia com oito anos que participa em todos os projetos e programas desenvolvidos na KOKUA.
A labrador branca «Luna», com dois anos, é utilizada como uma cadela de terapia e a golden retriever «Cookie» – a terceira e mais recente, está a ser treinada e preparada para integrar uma família com uma criança com necessidades especiais.
Uma ajuda na deficiência
A golden retriever «Cookie» está a ser treinada para ajudar a melhorar a vida de um menino com distrofia muscular congénita. Daqui a poucos meses, quando finalizar o treino, a «Cookie» será um cão de assistência com várias missões. «Abrir as portas para a cadeira de rodas passar, acender e apagar as luzes da casa. Será ainda treinada para chamar os pais e, ensinada a apanhar e devolver objetos que caiam das mãos da criança. Tudo para que o não esteja tão dependente dos pais», além do óbvio «apoio emocional». Todos os cães de assistência «são entregues executando um conjunto de exercícios e competências gerais acordados com a família, bem como uma obediência avançada».
A sua certificação será feita de acordo com «os testes pré-definidos pela ADI (Assistance Dog Internacional) e avaliados pela Fundação Bocalan, em Espanha. Daiana Ferreira sublinha que «a terapia com cães apenas faz sentido quando associada com outros profissionais como terapeutas da fala, fisioterapeutas, professores ou médicos. Os cães são novas ferramentas para atingir um objetivo já estabelecido. É uma intervenção complementar».
Casos de sucesso
Afonso (nome fictício), de nove anos, é uma criança com uma doença rara. Não tolerava certas texturas de alimentos. Comia apenas sopa, donuts e pão. «Introduzimos interações com a Luna e jogos de competição. Ora comia ele, ora dava de comer à cadela. Na primeira sessão comeu imediatamente iogurte e bolachas, algo inédito. Após algumas sessões, passámos ao sistema de recompensa: se comesse na cantina, e depois em casa, ganhava um crachá que equivalia tempo semanal de atividades com a cadela. Assim conseguiu ultrapassar os problemas sensoriais e comportamentais».
A pequena Ana (nome fictício) sofria de uma patologia não diagnosticada. Demonstrava muita resistência às sessões de terapia ocupacional e dificuldade de imaginação. A cadela foi o estímulo que precisava e começou a interessar-se por corridas de obstáculos e jogos terapêuticos
Lia (nome fictício) tem uma doença rara que lhe cria uma tenção muscular muito forte, até que a cadela «Sueca» começou a assistir as sessões de fisioterapia. Atua como fator de relaxamento da criança, facilitando o trabalho do técnico e tornando os alongamentos menos dolorosos para a menina.
Parceria com o Hospital de Faro
A KOKUA desenvolveu um conjunto de sessões voluntárias intitulada «Uma pegada na reabilitação pediátrica», com crianças da secção de deficiência e de neuropediatria de desenvolvimento do Hospital de Faro. Após a sua conclusão propôs então um projeto-piloto de seis meses, composto por duas sessões semanais, junto da equipa de diagnóstico e reabilitação do mesmo hospital, que faz o acompanhamento nos primeiros anos destas crianças. O projeto aguarda luz verde muito em breve.
O preço de uma vida ao serviço da deficiência
Os cães de assistência são entregues com um ano e meio ou dois, e de acordo com as entidades internacionais, o custo de seleção, treino e a entrega ronda os 15 mil euros (onde se incluem os 10 anos de contrato com a família). No entanto, a KOKUA quer fazer a entrega dos cães de assistência totalmente gratuita para os usuários, contrapondo que, em troca, estes devam encontrar em conjunto formas de patrocínio que financie o custo – mais baixo que o standard internacional – de todo o processo.
Lado humano é fundamental
A jovem psicóloga considera que «mais do que certificar o cão de terapia é importante certificar a pessoa que o conduz». Depois de se licenciar, frequentou três especializações na área de cães de ajuda social: treinadora de cães de assistência (6 meses), instrutora de cães de assistência (5 meses) e ainda o curso de intervenções assistidas por animais (4 meses), em Espanha.
É procurada, com frequência por pessoas que «querem certificar os seus cães, mas não querem formação para si. Não é assim que funciona. É no binómio de trabalho que se consegue o equilíbrio», evidencia. «Acho que é fácil entender a complexidade de colocar um cão num meio delicado geralmente associado ou à deficiência ou a idosos. É ridículo pensar-se que se fica certificado por um workshop de alguns dias». Ferreira refere que em Portugal existem entidades que ministram «cursos por módulos» que são claramente «insuficientes».
Extensão do amor
KOKUA é uma palavra hawaiava que descreve a assistência como uma extensão amorosa, uma ajuda para o benefício dos outros que deve ser feita sem procurar qualquer ganho pessoal. «Existem melhor palavra para descrever o que fazem os nossos parceiros de quatro patas por aqueles com quem convivem?», questiona Daiana.
Conheça as tipologias dos cães de assistência
Cão-guia, treinado para auxiliar invisuais;
Cão-sinal, treinado para auxiliar pessoas com deficiência auditiva;
Cão de serviço, treinado para auxiliar pessoas com deficiência motora;
Cão de serviço para Crianças com Autismo;
Cão de Alerta Médica, ou cães de biodeteção treinado para auxiliar pessoas com diabetes ou prever convulsões;
Cães de apoio emocional, usados para casos de agorofobia e outros transtornos semelhantes.
Existem formações específicas para cada tipologia de cão. A KOKUA especializou-se concretamente no treino de «cães de serviço» para pessoas com deficiência motora e para crianças com autismo.