Plano de Gestão Florestal (PGF) submetido pela empresa AM | 48 para um terreno de 47 hectares no Ancão foi aprovado pelo ICNF. Decorrerá até 2039 com o objetivo de criar um projeto ambiental «único».
O alarme foi dado na manhã de dia 11 de maio de 2020 por um grupo de cidadãos surpresos perante «o abate de árvores centenárias saudáveis, com vista a formar planaltos perfeitos para construir as mansões milionárias que nascem aqui mais do que os cogumelos», descreveram na altura.
«A Ria Formosa tem início neste local e a quantidade de animais que estão a procriar nesta altura do ano é assombrosa. Não imaginam o que é ver os animais a não se querem afastar dos ninhos, mesmo com poderosas máquinas a fazes-lhes frente», lia-se num email de alerta enviado à redação do barlavento.
Não admira, portanto, que Vítor Aleixo, presidente da Câmara Municipal de Loulé, tenha «hesitado» em vir ao lançamento simbólico do Plano de Gestão Florestal (PGF) para a propriedade com 47 hectares junto à Praia do Ancão, na manhã de sexta-feira, dia 14 de janeiro.
E explicou ao proprietário. «Digo-lhe que hesitei em vir. O que me fez mudar de ideia foi a leitura do vosso comunicado. Um empresário do sector imobiliário, que valoriza tanto este espaço natural, tenho de ir e estar ao lado deste homem com todo o gosto. A minha presença aqui é apenas para realçar isso», disse Aleixo a Alejandro Martins, CEO da AM | 48, empresa dona do terreno.
Apesar de querer ser «brando na adjetivação», o autarca sublinhou que «fiquei muito desgostoso quando soube de uma ocorrência triste. Na altura, tratei de ver como é que podíamos corrigir o erro e aqui estamos», disse. Até ao momento da reportagem, Aleixo não conhecia o proprietário.
«Estou aqui com o maior gosto, porque acho que a natureza é um grande ativo, até para valorizar esta área de excelência. Mas para continuar a ser uma área de excelência, aqueles que investiram aqui ou pensam vir a investir, é absolutamente crucial mantê-la e preservá-la. O desenvolvimento futuro ou será sustentável ou não será desenvolvimento», deixou claro o edil louletano, que já mandou suspender por duas vezes o Plano Diretor Municipal (PDM) de Loulé, para integrar medidas preventivas de forma a evitar o avanço do betão na orla costeira do concelho (na malha urbana de Quarteira e na zona sensível do Almargem).
Por sua vez, Alejandro Martins, ouvido pelos jornalistas explicou com tudo aconteceu, «ainda durante o contrato de promessa do terreno. Não fomos informados pelo anterior proprietário que tinha solicitado ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) uma limpeza», aliás, devidamente licenciada por aquela entidade.
«Confesso que fomos também, de algum modo, apanhados de surpresa com o que aqui foi feito. Para nós é um processo passado. Agora vamos repor as espécies, os habitats, tudo aquilo que foi destruído, ou seja, a biodiversidade e a sustentabilidade de todo este espaço», garantiu.
Ouvido pelos jornalistas, António Miranda, diretor regional adjunto do ICNF, recordou o incidente da deflorestação que indignou populares, ambientalistas e até o município.
«Podemos dizer que, desde logo, o ICNF foi contactado pelos responsáveis no sentido de perceber o que tinha acontecido, porque atribuía [a responsabilidade] ao empreiteiro pela limpeza, que se tinha excedido nos trabalhos. Desde logo, o proprietário fez várias reuniões connosco no sentido de repor e de melhorar» os estragos.
«O ICNF sempre enquadrou as medidas necessárias de restabelecimento da área com a obrigatoriedade de se elaborar um PGF. É o único instrumento que nos garante que, não só fariam a recuperação daquilo que se tinha perdido com a intervenção anterior, mas também a sustentabilidade» de novas iniciativas na propriedade.
O plano «mereceu a nossa concordância porque tem um conjunto de garantias de que o crescimento das árvores, que estão agora a ser plantadas, será acompanhado, tal como o controle das infestantes que vão surgindo, além de um conjunto de outras ações para fomento da fauna e das espécies que são protegidas», pelo menos, até 2039.
Miranda sublinhou que «uma atuação errada que motivou uma contraordenação, tem nesta recuperação aquilo que gostamos que aconteça quando sucede algum atentado à natureza». Poderá não ser ainda um final feliz, mas «é o primeiro passo», concluiu.
Para Alejandro Martins, o prazo (2020 – 2039) justifica-se porque «se trata de um processo sempre contínuo».
Questionado sobre o insólito de uma empresa imobiliária fazer um investimento inicial de 100 mil euros num projeto de conservação ambiental, o CEO defendeu-se, explicando que tem outros negócios com base na fileira agroflorestal.
«Há mais de 30 anos que tenho empresas. Sempre fui muito ligado à sustentabilidade e à recuperação das florestas», e encontrou sucesso no ramo das limpezas de matos e reaproveitamento de solos. «Esta iniciativa tem de facto muito a ver com o nosso ADN», acrescentou.
Ainda assim, como rentabilizará este ativo? «O que pudermos utilizar além desta biodiversidade e da natureza, tudo o que nos for permitido na parte urbanística, em meios legais e que seja de acordo com todos os regulamentos, pois certamente que iremos fazer», esclareceu.
No entanto, «está visto que a intervenção nunca será aqui nesta propriedade. Poderá ser nas pré-existências. Portanto, a nossa ideia é criar aqui observatórios para o birdwatching, passagens e trilhos que estão previstos no PGF. E estamos abertos a investir mais, dentro da propriedade em infraestruturas para criar aqui algo que seja uma referência. Sempre acompanhados pelo ICNF, pela Câmara Municipal de Loulé e outras entidades que sejam necessárias», concluiu o empresário.
No final, Vítor Aleixo acabou por reforçar os elogios ao «investidor que tem a sensibilidade ambiental de apresentar um PGF para esta área que, como sabemos, foi objeto recente de uma intervenção absolutamente infeliz».
Portanto, «ver uma resposta tão rápida, tão ambiciosa, tão bem pensada, é até um momento exemplar para a atividade turística no Algarve que precisa de olhar para a intervenção que está aqui a ser feita». Dá o pontapé de saída no Ancão mas, para o autarca louletano, é «possível replicá-la na região».
«Este é o único caminho para podermos ter o Algarve a um nível de excelência e de importância mundial enquanto destino turístico», concluiu.
A iniciativa contou ainda com a presença do vereador municipal Carlos Carmo, de Pedro Pimpão, presidente do conselho de administração da empresa Infraquinta e de Luís Coelho, ex-autarca de Faro.
Recuperação de espécies
No âmbito do PGF serão plantadas nas encostas 3000 novas árvores. Um terço já está no solo, entre pinheiros-mansos, sobreiros e alfarrobeiras.
O terreno, no sítio do Ancão, integra a área protegida do Parque Natural da Ria Formosa, em área da Rede Natura 2000 e considerado no Plano Regional de Ordenamento do Algarve (PROF Algarve) como espaço florestal sensível.
Segundo o biólogo João Pinto, estão a ser colocadas caixas-ninho em pontos estratégicos. «A ideia dos abrigos é transformar esta numa floresta de mosaico. O facto de não haver árvores muito antigas com cavidades, onde as aves e os mamíferos, no caso do morcego-anão (Pipistrellus pipistrellus), se possam abrigar, implica que nós, para os atrair, temos de construir algumas infraestruturas. Vamos também fazer tocas de coelho, que por incrível que possa parecer, entrou recentemente no estatuto de espécies em perigo de extinção, já que a população decresceu cerca de 70 por cento nos últimos anos. Houve um decréscimo muito acentuado, embora os coelhos sejam fundamentais para os ecossistemas ibéricos», explicou.
As caixas-ninho são para espécies como o Chapim-azul (Cyanistes caeruleus), que «em certa medida controla a processionária ou lagarta do pinheiro», entre outras espécies noturnas e diurnas. O PGF prevê ainda a limpeza de matos, desbastes seletivos, criação de faixas de gestão combustível, remoção de eucaliptos e invasoras, assim como programas de monitorização da erosão e da regeneração do espaço e dos valores ambientais, entre outras iniciativas.