Pandemia também se faz sentir nos maus-tratos a menores

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Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) do Hospital de Faro já ultrapassou a centena de casos de maus-tratos este ano.

É uma equipa de linha da frente, que faz a triagem entre os casos de perigo. Existe na unidade de Faro do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) há 26 anos e, segundo os membros, continua a fazer um trabalho cada vez mais relevante. O atual núcleo é formado por Raul Coelho, médico pediatra e responsável do serviço de Urgências de Pediatria do Hospital de Faro, Maria José Afonso, enfermeira e Vera Rodrigues, a assistente social e Helga Nunes, psicóloga.

«O início de funções foi em janeiro de 1996. Decorreu da necessidade que já existia na altura. Presumo que tenhamos sido o terceiro a nível nacional», recorda o médico.

«A nossa atividade, na prática, é intervir quando há suspeita de maus-tratos que podem ser físicos, por negligência, abuso sexual ou abuso psicológico», embora este último seja «mais difícil de detetar».

«Muitos casos que temos são de grávidas, algumas já referenciadas, por toxicodependência, por falta de competências parentais ou por terem outros filhos institucionalizados. Por vezes são já acompanhadas pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) das várias comarcas da região. Apanhamos um pouco de tudo: alcoolismo, dependências, doenças psiquiátricas da mãe ou do pai e violência doméstica», detalha Raul Coelho.

Quando isso acontece, «o núcleo vai inteirar-se da situação» para decidir o que fazer. Explicando de uma forma simples, «quando há uma situação que julgamos menos grave, que não põe em risco a vida da criança», o caso é referenciado ao núcleo congénere do Centro de Saúde da área de residência do menor, e «ao respetivo médico e enfermeiro de família» que, até podem ter um melhor conhecimento de todo o contexto.

No entanto, se a equipa se encontrar perante algo mais complicado, é contactada a CPCJ competente.

«Imaginemos que surge na Urgência uma suspeita muito concreta de abuso sexual, que são as situações mais complicadas. Chamamos diretamente a Polícia Judiciária (PJ) que toma conta da ocorrência. As colheitas necessárias são feitas pela Ginecologia, ou pela Medicina Legal», descreve o pediatra.

E nesses casos, o que acontece às vítimas? Responde a enfermeira Maria José: «se por acaso o abusador ou suspeito estiver em casa, então temos de retirar a criança da situação de perigo. Muitas vezes é esse o procedimento de urgência. Pedimos autorização ao tribunal para internar a criança que passa para a nossa responsabilidade, enquanto decorre o processo legal. Depois, terá de se avaliar se a criança volta para a família ou se pode ser institucionalizada».

O médico complementa: «se for uma situação em que o presumível abusador seja de fora do núcleo familiar, e se a família inspirar confiança, claro que não vamos retirar-lhe a criança ou jovem. Aí, dar-lhe-emos alta e o processo» correrá nas instâncias legais.
Os casos chegam ao NHACJR de várias proveniências. Segundo a enfermeira Maria José, «pode ser através das escolas, dos Centros de Saúde, ou dos tribunais. Também podem vir através do hospital, de todos os serviços que estão afetos às crianças», embora «muitos vêm diretamente da rua».

«Às vezes, pode acontecer ser a própria família a pedir ajuda, mas é muito raro. Pensam logo que lhes vão retirar os bebés ou as crianças. Não fazemos nada disso. Nem temos esse poder. Somos a primeira linha, a segunda é a CPCJ e a terceira é o tribunal, que é a única entidade com poder de decisão. A CPCJ só tem esse poder se houver concordância dos tutores do menor. Se não tiver, remete o caso para tribunal», explica o médico.

E desde 1996, a sociedade melhorou ao ponto de haver menos casos? A resposta é unânime e em uníssono.

«Não, pelo contrário». Segundo as estatísticas, em 2020, o NHACJR do Hospital de Faro teve 98 casos. Este ano, «já ultrapassámos os 100», contabiliza Raul Coelho. Em 2019, a equipa lidou com pouco mais de 70 episódios.

«Quando iniciei funções neste núcleo, em 2012, tínhamos cerca de 120 casos. É um número variável, mas claro que há uma sentida necessidade deste serviço», sublinha a enfermeira que, na altura desta entrevista, tinha acabado um turno de 16 horas. Esta profissional também conta com 10 anos de experiência como membro da CPCJ de Faro, «o que ajudou muito a fazer a ponte».

Para o médico pediatra, a pandemia também é um fator a ter em conta. «É natural pelo facto de as pessoas passarem mais tempo juntas, sobretudo pessoas que já de si são violentas e têm propensão a cometer atos violentos. E a isso junta-se o desemprego, a parte psicológica».

Por outro lado, uma família que esteja a ser acompanhada por uma CPCJ, não tem obrigatoriamente de passar pelo núcleo. Mas os profissionais acabam por saber. «Imagine que vem ao hospital pela suspeita de qualquer tipo de mau-trato, vamos ver e comunicamos com a CPCJ que, muitas vezes, já tem um processo aberto. E relatamos o que aconteceu», explica o médico.

Vera Rodrigues corrobora. «Em situações de violência doméstica, por norma, é a polícia que vai ao local e tem de sinalizar. Com a pandemia há um agravamento brutal destas situações, com muitas sinalizações semanais. O facto de uma criança ser sinalizada neste contexto, contudo, não quer dizer que seja agredida. Mas estão expostas ao que acontece entre os progenitores».

A principal carência da equipa é a falta de um secretariado. Há quase uma década que trabalha sem esse apoio. Na prática, significa que além do trabalho clínico e social, ainda têm de lidar com toda a burocracia.

Mas isso também não os desmotiva. «Acho que a mais-valia deste grupo é conseguirmos trabalhar em equipa. As coisas fluem bem», diz a assistente social. «Somos todos tranquilos, calmos e respeitamo-nos e isso é muito importante», conclui o médico.

Problemática também é cultural

Segundo Raul Coelho, «olhando para a estatística de 2020, o tipo mais frequente de maus-tratos que tivemos são os casos de negligência com 75 por cento. Segue-se o mau-trato físico com 11 por cento e logo o abuso/suspeita de abuso sexual com 10 por cento», sintetiza. «As crianças que sofreram de violência física, por vezes, está um pouco relacionado com a cultura dos pais. No Brasil é permitido uma boa lambada. Em alguns Países de Leste, a educação também passa pelo corretivo físico. São um bocadinho mais secos e frios», descreve.

Ainda assim, também não é possível estabelecer um padrão através da nacionalidade. Maria José explica que, «no geral, a maioria dos casos são de portugueses, sobretudo as negligências. Isto é, pais saberem que estão a fazer mal, mas que não querem mudar porque precisam de consumir [drogas ou álcool]. Depois, há aqueles que nem têm consciência» e continuam as dependências durante a gravidez.

Um trabalho difícil

Nem todos os profissionais de saúde têm perfil para integrar um Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR). O pediatra Raul Coelho concorda. «Claro, é preciso apetência e formação. Lidamos com crianças, com jovens, com as suas famílias e com situações frágeis» e problemáticas.

Para a assistente social Vera Rodrigues, a mais recente na equipa, integrando-a há cerca de dois anos, o sistema tem respostas para as crianças. «Nós, dependendo da situação, se é de perigo, de risco, ou se é necessário apenas monitorizar, consoante o risco, reencaminhamos as situações. Para as crianças, ao contrário dos idosos, temos respostas».

O Despacho n.º 31292/ 2008 veio a determinar que «os centros de saúde e hospitais com atendimento pediátrico devem dispor de equipas pluridisciplinares, designadas por Núcleos de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NACJR), no primeiro caso, e por Núcleos Hospitalares de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR), no segundo, que apoiem os profissionais nas intervenções neste domínio, articulando-se e cooperando com outros serviços e instituições».

Segundo a enfermeira Maria José Afonso, o trabalho é feito «com caráter de sigilo e todo o respeito pela identidade de cada um. No que toca à confidencialidade, quando enviamos informações, temos o cuidado de nos cingir apenas ao essencial, ao que nos preocupa a nível de sinalização, porque estamos a expor a vida das pessoas».

Maus-tratos nem sempre são evidentes ou fáceis de provar

A assistente social Vera Rodrigues ficou marcada pelo seu primeiro caso no Hospital de Faro.

«Foi uma situação muito complexa e que nunca se chegou a uma certeza ou a uma conclusão. Foi uma situação de Shaken Baby Syndrome, um tipo de caso de maus-tratos em que o bebé é abanado com violência. Só se consegue comprovar quando há danos muito graves. Este caso aconteceu com uma menina com nove ou 10 meses. Foi em janeiro de 2019. Estes pais juravam por tudo que não o fizeram. E eram, aparentemente, muito zelosos. Aquilo mexeu muito connosco. A menina tinha os olhos todos para dentro, estrabismo. Não via».

O pediatra Raul Coelho recorda: «tinha hemorragia retiniana, mas não tinha hematoma subdural. Entretanto, essa criança foi a tribunal e foi vista por vários especialistas: neurocirurgia, oftalmologia, pediatria. Esteve internada mais de um mês, porque não podemos entregar de volta a criança à família sem termos a certeza. Foi uma situação de grande embrulhada».