Em entrevista ao barlavento, Nuno Marques, responsável pelo ABC – Algarve Biomedical Center, fala em «extrema dificuldade de relacionamento» institucional com o CHUA e que em breve o Hospital Garcia da Orta, em Almada, entrará para o consórcio.
barlavento: Porquê este diferendo institucional?
Nuno Marques: Essa pergunta não pode ser para mim porque não fomos nós, ABC, a desencadear qualquer conflito. Até como ficou óbvio na audição na Assembleia da República, houve vários pontos ao longo destes dois anos, de extrema dificuldade de relacionamento, apesar de querermos avançar com o passo em frente que estava a ser dado inicialmente com o anterior conselho de administração do CHUA, para o desenvolvimento de um hospital universitário, e que foram impossíveis de implementar nestes últimos dois anos. Estamos a falar, por exemplo, de apoios que os serviços hospitalares nos pedem para apoiarmos, desenvolvermos e captarmos para podermos disponibilizar, e até de equipamentos para que as unidades hospitalares possam desenvolver as suas investigações. A verdade é que foi dado parecer negativo para que isso fosse implementado. Faz parte das competências do ABC apoiar o Centro de Referência do Cancro do Reto, por exemplo, no desenvolvimento das suas iniciativas de investigação e inovação. Ora, para isto, o ABC criou a hipótese de atribuir uma bolsa de 50 mil euros por ano. A bolsa não foi aceite pelo CHUA. O que esperamos é que de futuro e muito rapidamente haja uma mudança de postura e de política que leve à implementação de um hospital com esta visão universitária.
Tem faltado visão universitária ao CHUA?
Atualmente, e nestes últimos dois anos, não existiu visão universitária no CHUA. Um hospital universitário tem de ter certificação para garantir a qualidade e a segurança aos seus utentes. Isso está no decreto-lei da criação dos hospitais universitários, que saiu em 2018, e foi também uma das questões postas em cima da mesa pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) como chave para ser mantido o curso de Medicina no Algarve, referindo que os alunos teriam de estagiar em serviços hospitalares devidamente certificados.
E há essa certificação?
O CHUA não tem essa certificação. Tinha nalguns serviços usados em estágio hospitalar, como a Ginecologia de Faro, que perdeu essa certificação no ano passado. Houve um plano acordado pela anterior administração do CHUA e com a A3ES que previa a implementação da certificação em três anos, pois sabemos que este processo demora, no mínimo, dois anos. Há uma tentativa de atirar areia ao ar quando se diz que o CHUA está certificado pela Ordem dos Médicos. A Ordem dos Médicos avalia a capacidade do hospital para formar especialistas, avaliando sobretudo o número de médicos e de procedimentos. Portanto, não é nenhuma entidade certificadora de qualidade e segurança com foco nos doentes. Foca-se na formação dos internos de especialidade apenas. Não estamos a falar da mesma coisa. Só há três entidades certificadoras que são aceites no país da área da saúde. Uma delas é a que é adotada pela nossa Direção-Geral da Saúde, uma agência chamada Andalusian Agency for Healthcare Quality (ACSA), dos nossos vizinhos espanhóis. Há outra que é a The Joint Commission, que nos últimos anos certificou o Hospital Particular do Algarve (HPA). Há ainda a britânica CHKS (Healthcare Accreditation and Quality Unit) que certificou vários hospitais públicos do país, como por exemplo o de Almada e o de Setúbal. Portanto, é possível fazê-lo nos hospitais públicos e nos privados. Tem é de haver visão para que isto seja feito e implementado. Acima de tudo, o que me preocupa não é o passado. O que me preocupa é que de futuro possa existir uma relação saudável entre a Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve e o ABC, com o hospital da região que neste momento é inexistente…
Estão de costas voltadas?
Não há nenhuma relação.
Na sua opinião, e por causa deste desentendimento, alguma vez chegou a estar em causa o Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do Algarve (MIM-UAlg) ?
Se nada fosse feito e se não tivessem sido tomadas medidas pela direção da Faculdade e pelo ABC, estaria em causa e poderia muito bem encerrar agora, em 2022, uma vez que estamos a ser avaliados. Nós e todos os cursos da área da saúde.
Terá sido devido à pandemia que a certificação do CHUA não avançou?
Não há nenhuma justificação aceitável relacionada com a pandemia porque os outros hospitais estão certificados e conseguiram-na, nalguns casos, até nessa altura. A solução que encontrámos foi ver quais são os hospitais certificados do país. Primeiro, não queremos retirar alunos, ou melhor, queremos tirar o mínimo possível, da região do Algarve. O Hospital Particular do Algarve (HPA), neste período, certificou-se. Fomos ver que estágios têm condições para receber estudantes e mantivemos o máximo de alunos possível no HPA. Fomos ver que hospitais públicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) estão certificados no sul. O Hospital Garcia de Orta, em Almada, tem todos os seus serviços certificados pelo Caspe Healthcare Knowledge Systems (CHKS) desde há vários anos. O Hospital de Setúbal a mesma coisa, Loures igual e Évora também tem alguns certificados. Portanto, estamos a usar esses hospitais onde já tínhamos alunos antes, apenas reforçámos o número.
Mas ainda assim, ficaram alunos no CHUA?
Sim. É preciso que se perceba isto: temos uma ótima relação com todos os clínicos da instituição e com quem tem estado sempre a dar formação. Não quisemos cortar completamente o facto de os alunos estarem lá, mas sabemos que agora, na avaliação da A3ES, vamos ter de justificar individualmente cada aluno que está no CHUA porque não estamos a cumprir a exigência de estagiarem numa entidade hospitalar certificada. Portanto, nunca poderia ter a maioria dos alunos, mas não quisemos quebrar completamente por causa deste tipo de relacionamento.
Mas numa altura em que tanto importa defender o SNS, temos alunos do MIM-UAlg a estagiar em unidades de saúde privadas?
Sempre defendemos e queremos ter um hospital público na região com toda a capacidade e que tenha toda a certificação necessária e todas as condições para que desenvolvam todas estas atividades. Não tendo, temos que minimizar os danos para manter o curso aberto. Ou seja, neste momento o curso não está em risco porque houve estas soluções. Não queremos que os alunos que vão ser médicos daqui a pouco tempo, saiam da região. Como tal, para que não tenham de mudar a sua residência para fora do Algarve, a Faculdade e o ABC estão a suportar na íntegra os custos do alojamento enquanto estão a estagiar fora. Assim, podem manter as suas habitações e em breve, se desejarem, podem ficar aqui pelo Algarve.
Isso não é um pesadelo logístico?
É, mas é um pesadelo logístico necessário Depois do que se passou no verão e com este corte de relações, conseguimos chegar a uma solução com o governo de forma a manter-se o ABC. Apesar de ainda não ter saído a portaria, temos o compromisso da tutela, e por isso vai avançar a inclusão do Hospital Garcia da Orta no Centro Académico ABC, de forma a solucionar esta carência. Foi a única solução possível, porque senão o ABC e todo este esforço seria extinto. Já estamos a trabalhar com eles e a desenvolver as ações para o transformar num hospital universitário, o que até à data de hoje não foi possível implementar no Algarve. Mas que esperamos que seja.
É uma solução temporária?
A inclusão do Hospital Garcia da Orta no consórcio nunca será temporária. A partir do momento em que assuma este compromisso connosco, vai ter todo o nosso apoio. Espero que seja temporária a falta de visão universitária no Algarve. É por isso que, tendo nós o respeito que temos pelo CHUA, pelas suas equipas, pelos profissionais e pela região, nem nunca passou pela nossa cabeça retirar pura e simplesmente o CHUA do ABC. Não faria qualquer sentido. A inclusão de um outro hospital público, que tem todas as condições para ser um hospital universitário, permite não colocar em causa o Centro Académico ABC nem o curso de Medicina.
Estamos a falar de que alunos?
Estamos a falar nos alunos de 5º e 6º ano. Os do 5º ano fazem oito meses de estágio hospitalar, sendo que há uma parte desse tempo que é feita aqui no Algarve. Os do 6º ano fazem metade da formação, seis meses em estágios hospitalares. Temos também acompanhado os números e a fixação dos alunos na região manteve-se sempre à volta de 50 por cento, isto é, mais ou menos, metade dos alunos formados cá, fossem originários do Algarve ou não. Vimos que cerca de metade destes vão para os cuidados de saúde primários, o que é ótimo, e outra metade para os cuidados hospitalares. Em 2021 tivemos uma quebra na fixação pela primeira vez. Tínhamos vindo a subir e a manter o saldo, e depois caímos. E caímos como? Não tivemos qualquer quebra na fixação nos cuidados de saúde primários, mas tivemos uma quebra nos cuidados hospitalares. E isso é preocupante.
É um problema específico, portanto…
Sim, é uma questão específica em termos hospitalares. O feedback que nos chega é que após estarem em estágio no CHUA, os alunos optam por não ficar nos hospitais da região. Haverá razões para isso, sendo que os motivos são certamente das condições que temos hoje, pois nos cuidados de saúde primários não houve diminuição da fixação. Portanto, não é uma questão da região em si. E por isso é tão urgente que haja visão e o desenvolvimento de um hospital verdadeiramente universitário, com uma aposta na inovação, na investigação, na diferenciação dos cuidados prestados. Estamos dispostos a identificar as necessidades dos clínicos para as desenvolvermos no Algarve. Não podemos ter a visão de um hospital de como era há 20 anos. O que está em causa é o caminho que estamos, ou não, a trilhar, e que tem de ser feito para o bem do desenvolvimento da região.
Pode então concluir-se, na sua perspectiva, que o problema não é apenas a falta do tão falado novo Hospital Central?
Não. Está muito longe de ser isso. Se não for resolvida esta questão até lá, o novo Hospital Central, construído de raiz, não vem resolver nada. O que precisamos, repito, é de ter um verdadeiro hospital universitário. E isso é possível fazer desde já.
Com o que já existe?
Sim e se não é feito já, chegamos rapidamente a um nível de hospital do antigamente, estaremos a ir para a época pré-curso de MIM-UAlg, pré-Centro Académico, pré-despacho dos hospitais universitários. Sei que o governo tem outra visão, porque se não a tivesse, não teria apostado no ABC nem tinha agora encontrado uma solução para isto não morrer. É porque funciona, resulta, já se provou que deve continuar. O ABC e a Faculdade já mostraram que têm impacto não só na região, mas em termos nacionais, e que é chave para o desenvolvimento do Algarve. Portanto, acreditamos e resta ter esperança que haja uma resolução.
Mesmo com todas as carências que tem o hospital de Faro?
Não é uma questão de paredes. Falta espaço, não há dúvidas. Vamos aumentar o número de vagas no MIM-UAlg e é fundamental, em breve, virmos a ter um novo hospital para conseguirmos expandir a atividade. Mas até lá, há muita coisa que tem de ser feita em termos organizacionais, de cultura, de qualidade, e em termos de disponibilizar aos profissionais os projetos complementares que os captam e fixam. Temos de maximizar o que estamos a desenvolver e a oferecer à região para que esta tenha direito à inovação e não haja a questão de desigualdade no acesso aos cuidados de saúde que temos hoje em dia.
Évora vai ter um novo centro hospitalar. Será um hospital universitário?
Acabaram de criar um Centro Académico Clínico, estão ainda no início e não têm curso de Medicina. Não é o facto da construção de paredes que vai criar uma cultura, ela tem de estar a ser instituída. Aqui estamos numa fase onde já temos uma Faculdade de Medicina, um centro de investigação e um centro académico constituído, ou seja, já estamos um passo à frente. Isto prova, mais uma vez que, tal como muitas vezes é dito (apenas para o ar) que são as equipas, as pessoas e a sua organização que fazem, ou não, com que as regiões se desenvolvam.
Conselho de administração do CHUA refuta críticas
Contactada pelo barlavento, Ana Varges Gomes, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve (CHUA), esclarece que «os processos de certificação têm continuado, sendo que neste momento temos o Centro de Referência do Cancro do Reto recertificado. O serviço de Ginecologia de Faro tem certificação válida até 2024. Na verdade, está em curso uma certificação de todo o departamento e não apenas do serviço de Faro, que estará concluída em breve. A Imunohemoterapia também tem certificação. Os serviços de Medicina Física e Reabilitação estão a concluir um processo de certificação que é único a nível nacional, e todos os nossos procedimentos clínicos são monitorizados pelo Sistema Nacional de Avaliação em Saúde (SINAS) e reportados em tempo útil, estando neste momento o CHUA classificado com grau intermédio. Temos outros serviços que, à semelhança do Hospital Garcia de Orta, estão igualmente certificados pela Direção-Geral da Saúde» e normas ISO.
Questionada sobre as relações institucionais «difíceis», a responsável garante que o CHUA «mantém a abertura para continuar a trabalhar com a Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas, desde que a sua direção queira, dado que já tentámos marcar três reuniões da Comissão Mista e ninguém nos respondeu. A relação institucional com a Universidade do Algarve (UAlg) está ótima e continuamos a colaborar e a implementar projetos inovadores que permitem colocar à disposição da população uma série de serviços importantes. Em relação ao ABC (Algarve Biomedical Center), o CHUA é representado na direção pelos nossos elementos. Sempre que há reuniões, os mesmos participam. Nem sempre a direção reúne antes de serem tomadas decisões pelo seu presidente» Nuno Marques.
Já sobre o facto de o ABC ter de explicar ao A3ES o caso individual de cada um dos alunos do MIM-UAlg que estão a estagiar na instituição, Ana Varges Gomes desdramatiza. «Não creio, até porque o Hospital de Évora e o de Setúbal não estão certificados, nem o Garcia de Orta tem certificação de serviços clínicos, têm dos laboratórios. E se isso fosse imprescindível, não haveria nenhuma faculdade de medicina a funcionar em pleno» no país.
Por fim, a presidente do conselho de administração do CHUA diz «desconhecer» a entrada do Hospital Garcia de Orta no consórcio ABC e «não nos parece fazer muito sentido um hospital de Almada fazer parte de um consórcio do Algarve. Além disso, já faz parte do consórcio com o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHLN)».
A responsável finaliza com um recado: «no nosso entendimento, o que faz sentido é as pessoas trabalharem em conjunto para fortalecer a região e lutarem menos por projetos individuais. O CHUA estará sempre do lado da solução para aumentar a capacitação da região, algo que temos vindo a fazer, com o aumento de produção, a melhoria dos equipamentos e a sua modernização, captando mais recursos humanos diferenciados e permitindo melhor acesso à população».
Sobre a bolsa de 50 mil euros para Centro de Referência do Cancro do Reto do CHUA, «nunca a recusámos porque nunca foi do nosso conhecimento», conclui.