Local do primeiro buraco do novo campo de golfe que o grupo Pestana está a construir entre Lagoa e Ferragudo revelou um sítio arqueológico invulgar.
Local do primeiro buraco do novo campo de golfe que o grupo Pestana está a construir entre Lagoa e Ferragudo, revelou um sítio arqueológico invulgar: sepulcros coletivos do Neolítico Médio e do Calcolítico, a par de intensos vestígios da ocupação islâmica.
A empreitada envolve cerca de 40 hectares de terreno, mas bastou apenas meio hectare para revelar um sítio arqueológico com vestígios de várias épocas que se cruzam entre si.
Explicado de forma simples, os arqueólogos identificaram 35 estruturas escavadas na rocha calcária, que teriam sido silos islâmicos, numa primeira fase destinados ao armazenamento de cereais e alimentos, e numa fase posterior usados apenas como lixeiras.
Além disso, foram descobertos contextos funerários islâmicos e pré-históricos, do Neolítico Médio (4° milénio AC), um período sobre o qual ainda pouco se sabe, e do Calcolítico (3° milénio AC – Idade do Cobre).
Segundo Francisco Rosa Correia, gestor do projeto arqueológico e codiretor do acompanhamento de obra e escavação arqueológica, adjudicada à empresa ERA Arqueologia, os trabalhos começaram em meados de outubro do ano passado, embora desde 2008 que já se soubesse que se tratava de uma área sensível.
«Em 2010 fizeram-se sondagens de diagnóstico. A equipa, na altura, concluiu ser possível tratar-se de um acampamento militar islâmico provisório» numa zona de 5500 metros quadrados, conhecida por Quinta dos Poços, precisamente onde, segundo o projeto, ficará o primeiro dos 18 buracos do novo campo de golfe que o grupo Pestana está a construir entre Lagoa e Ferragudo.
No entanto, «com base nestes últimos trabalhos, essa ideia caiu por completo. Em março limpámos o terreno para tentar delimitar a área do sítio arqueológico. Identificámos 91 estruturas negativas e uma diacronia cronológica enorme. Apareceram também objetos em pedra, de estruturas arquitetónicas, que fazem cair a anterior teoria» do acampamento militar.
«Isto, em conjunto com os enterramentos que descobrimos, dá-nos a ideia de que, nas proximidades, poderia haver uma localidade islâmica. A concentração de silos também sugere essa hipótese. Poderia ter sido uma alcaria ou um povoado rural».
E o que dizem as fontes? «Existe uma possível localidade nos registos históricos que nunca foi encontrada, mas que ficaria a sul de Lagoa», responde o arqueólogo.
António Cavaco, diretor do Carvoeiro Golfe e responsável pela obra em curso corrobora: «não sabemos que dimensão poderia ter tido, porque todos estes vestígios estão concentrados num só local. A verdade é que em todas as movimentações de terras não se descobriu mais nada de especial».
A julgar pelo material, para já, os vestígios «parecem ser de entre os séculos IX e XI depois de Cristo, em plena ocupação islâmica», estimativa que terá de ser confirmada por estudos mais aprofundados.
A arqueóloga Catarina Furtado, que também dirigiu os trabalhos no terreno, explica que «temos de olhar para estas estruturas como silos para armazenamento de alimentos e numa fase final, como de descarte». Daí terem sido escavados muitos fragmentos de malacofauna, como cascas de bivalves, e «até a totalidade de uma vaca»…
Foram ainda encontrados muitos fragmentos de «cerâmica simples e vidrada, alguma de produção local e outra importada, certamente. Do período islâmico, temos também cinco sepulturas que conseguimos exumar. Apenas duas continham restos humanos. Os corpos foram depositado de lado, conforme as prescrições religiosas, virados para oeste, sem material associado», até porque não estavam a grande profundidade e sofreram estragos devido a trabalhos agrícolas no local.
«Há uma grande incógnita. Não estamos a assumir que este fosse um local de habitação. Mas é possível que existisse nas proximidades. Encontrámos uma estrutura com alguns elementos de combustão, que poderá ter sido um forno, bastante rudimentar e de utilização temporária. Mas não temos algo que nos indique que havia aqui uma ocupação doméstica. Podemos imaginar que o povoado não estará muito longe», conclui.
Salto cronológico à Pré-história
Francisco Correia chama a atenção para o topónimo da zona, Quinta dos Poços. «Não sabemos bem se se refere a estas estruturas escavadas na rocha» ou aos pontos de abastecimento de água freática.
O que é certo é que a escavação revelou vestígios ainda mais antigos e que se cruzam entre si. «Sim. Apareceu um sepulcro funerário que remonta ao Calcolítico, eventualmente de meados do 3° milénio AC, com enterramentos de inumação primária. Nas margens havia ossários de inumação secundária e/ou reduções. Ou seja, nota-se que foi reutilizado» várias vezes.
Além dos restos humanos, «também encontrámos machados de mão, lâminas em sílex, contas de colar em calcário e xisto e pontas de seta idênticas às encontradas em Alcalar, Portimão. Digamos que existe uma possível relação cultural» entre os locais, apesar da distância e da fronteira natural que é o Arade.
O arqueólogo não esconde que ficou admirado. «Sim, porque este parece tratar-se de um sítio muito antigo. E, de facto, ainda descobrimos três sepulcros anteriores, do Neolítico Médio», período intermédio anterior que remonta a aproximadamente 5500 anos antes do presente e que ainda é pouco conhecido.
«Aí é que está a grande surpresa! O que sabemos à data, é que no Algarve só encontramos enterramentos deste período em grutas ou algueirões. Enterramentos escavados na rocha, desconhecemos», sublinha. «Na totalidade, temos dezenas de enterramentos».
Catarina Furtado detalha. «É muito impressionante. O Neolítico Médio é, de facto, um pouco difícil de perceber em termos estruturais. Por isso é que estes sepulcros em concreto chamaram-nos muito a atenção. Tínhamos o interface e uma estruturação interna, o que é bastante raro de encontrar. Temos pelo menos três realidades que podemos associar a esse período tendo em conta o material que encontrámos, como os machados de anfibolito polidos e outros artefactos de pedra lascada feitos em sílex».
Ainda em relação aos sepulcros, acrescenta o arqueólogo Miguel Lago, «não sabemos muito bem como seriam constituídos, não temos esse detalhe. Só apanhámos a base mas seguramente eram espaços fechados onde os corpos eram colocados. Não eram propriamente enterrados. Ou seja, nestes sepulcros do Neolítico Médio, a esmagadora maioria do indivíduos eram transportados já decompostos e colocados dentro de um espaço oco, vazio e sabemos isso pela escavação. Seguramente teria um teto, uma cobertura, mas não sabemos como seria. Mas todo este espaço foi vivido como um cemitério, de culto dos antepassados. Um espaço para onde determinadas comunidades, que ainda não conhecemos, transportariam os seus mortos. Mais tarde, veio a ser um sítio islâmico. A escavação noutras áreas vai ajudar-nos a perceber exatamente o que seria aquele sítio islâmico, pois temos muitas dúvidas».
Arqueologia é «mais-valia» para o campo de golfe
Outro testemunho do passado que o grupo Pestana quer preservar é a Ermida de São Pedro, imóvel religioso do século XVII, localizado num ponto alto do terreno e que oferece uma vista privilegiada sobre a foz do Arade e sobre o novo campo de golfe.
Rui Parreira, arqueólogo da Direção Regional de Cultura do Algarve, parafraseando Cláudio Torres, fundador e diretor do Campo Arqueológico de Mértola, sublinha ao barlavento que este tipo de capelas isoladas mas bem visíveis «são marcas de Deus que sacralizam a paisagem. São feitas pelos homens como se fossem marcas divinas. Ocupam pontos geográficos salientes e visíveis do território que humanizam» e abençoam com a sua presença.
Hoje em estado devoluto, «teria tido um altar e um pórtico. Vamos promover um projeto de restauro e ver o que mais poderemos fazer no futuro», garante António Cavaco.
Já em relação ao espólio que resulta das escavações, o responsável também tem ideias para lhe dar destino. «Já houve reuniões entre a ERA Arqueologia, a Direção Regional de Cultura do Algarve e o grupo Pestana. A autarquia de Lagoa ainda não tem um museu e neste caso, o promotor da obra comprometeu-se a reservar um espaço onde possa haver uma exposição permanente com artefactos do projeto no futuro clubhouse. Os campos de golfe têm sempre um ícone, penso que neste caso será a arqueologia a motivar os jogadores a visitá-lo e a levarem consigo uma história para contar. Outra iniciativa que já acordámos com a autarquia de Lagoa é a realização de um vídeo sobre estes trabalhos arqueológicos que servirá de divulgação para o concelho e para mostrarmos a quem nos visita», garante António Cavaco.
Agora seguir-se-á a elaboração do relatório final e uma fase seguinte dedicada à investigação dos achados. Entretanto, o material ficará à guarda do polo algarvio da ERA Arqueologia, no campus de Gambelas da Universidade do Algarve (UAlg), em Faro. Mais tarde, o grupo Pestana será o fiel depositário até que a Câmara Municipal de Lagoa o possa acolher. «Sim, pensamos que será muito interessante estar também acessível ao público num museu».
António Cavaco faz questão de deixar um recado para todos os promotores que se virem a braços com as questões inerentes ao património, e sublinha que os trabalhos de acompanhamento arqueológico não atrasaram a cronologia da obra.
«Este é um investimento que, no total, ronda os seis milhões de euros. Conseguimos, com algum planeamento, ir concluindo os trabalhos arqueológicos e, em paralelo, fazer as movimentações de terras onde era possível. Está tudo praticamente feito à exceção do buraco 1. Após a conclusão do relatório final e com a anuência da Direção Regional de Cultura do Algarve, desbloquearemos a área e avançaremos com o que falta. Por norma, quando acontecem situações destas, há constrangimentos no desenrolar da obra e custos adicionais. Isso nunca é bem visto por parte dos promotores. Mas nós sempre achámos que a arqueologia seria uma mais-valia para o nosso projeto» que, se nada mais surgir, deverá estar concluído até ao início do último trimestre de 2023.
Por sua vez, Miguel Lago, administrador delegado da ERA Arqueologia, «gostava de dizer que do ponto de vista do que é uma escavação de minimização de impactos, que são a maior parte das que fazemos, decorrem de obras. Tivemos uma boa equipa, boas condições e bom relacionamento com o grupo Pestana, o que nos vai permitir a todos fazer um trabalho que poderá, inclusivamente, constituir a base de um centro expositivo que venha a existir no empreendimento. Há espólios muito bons, muita informação, histórias a contar e portanto, à partida, há uma intenção do promotor em incorporar este tipo de informações numa área específica do empreendimento. Isso não é muito comum, sobretudo no Algarve, onde ainda são muito raros os casos em que isso acontece».
Vaso do Calcolítico depositado entre mãos
Dois vasos, em cerâmica manual, foram escavados num sepulcro do Calcolítico pela equipa da ERA Arqueologia, na Quinta dos Poços, entre Lagoa e Ferragudo, durante os trabalhos de acompanhamento arqueológico do futuro campo de golfe do grupo Pestana. Um pormenor, contudo, chamou a atenção dos arqueólogos. «Os vasos foram ambos colocados com os bordos virados para baixo (ao contrário)», explicou a arqueóloga Catarina Furtado ao barlavento. «Certamente que esta posição teria um significado até porque um dos vasos estava por debaixo das mãos de uma inumação». Que conteria? «Preservamos o substrato que estava no interior para podermos vir a fazer análises» e descobrir mais uma peça no incompleto puzzle da Pré-história.
Islâmicos ter-se-ão apercebido da ocupação pré-histórica
Segundo Miguel Lago, arqueólogo e administrador delegado da ERA Arqueologia, «em relação à ocupação islâmica, aí temos outra história. Digamos que terão sido razões específicas que terão motivado os muçulmanos a se instalarem naquele local. Agora, seguramente que se aperceberam que havia ali qualquer coisa anterior porque algumas das estruturas de armazenagem que escavaram, algumas furaram parte dos sepulcros pré-históricos e seguramente apareceram-lhes ossos humanos. Tiveram consciência de que chegaram a algo particular», opina.
O mistério é «perceber porque foi escolhido como espaço de tumulação, mas essa tradição manteve-se, provavelmente, ao longo de 1500 anos. Havia toda uma continuidade a ligar os fundamentos religiosos que naquela época existiam e a maneira do homem encarar o mundo, no Neolítico e no Calcolítico, seriam essencialmente semelhantes. Ou seja, o Calcolítico é um apogeu dos valores e do tipo de sociedade que emerge no Neolítico, estebelecendo continuidades e ruturas que conduziriam ao mundo da Idade do Bronze. Portanto, no essencial o que acontece ali são tradições que se mantêm. O que havia de muito parecido são os sepulcros em si, os espaços cavados, a câmara funerária, o local onde se colocam os mortos. Naquele espaço assistimos a uma transição. Enquanto que no Neolítico temos essencialmente deposições de indivíduos mortos que estiveram em decomposição noutros locais e foram transportados para ali, no Calcolítico temos sobretudo inumações primárias. Ou seja, os indivíduos foram colocados ali depois de mortos».
Ídolo-falange encontrado no sepulcro do Calcolítico
Segundo Catarina Furtado, arqueóloga da ERA Arqueologia, um ídolo-falange foi encontrado na estrutura 23, entre materiais do período islâmico, mas num sepulcro do período Calcolítico, o que mostra como o planalto conhecido como Quinta dos Poços, entre Lagoa e Ferragudo, teve várias camadas de ocupação humana ao longo dos tempos. «Estamos a falar de uma peça que datará de entre o 3º e 4º milénio antes de Cristo. É feita a partir de uma falange de cavalo, que seria mais grossa e foi trabalhada para ganhar a forma que aqui vemos». É comum estas figuras apresentarem «algum tipo de decoração» como motivos antropomórficos, zoomórficos, híbridos ou abstratos ao nosso entendimento.
«Estamos a falar de um objeto simbólico que acompanharia os mortos» na Idade do Cobre. Os ídolos-falange têm sido encontrados em quase toda a metade sul da Península Ibérica. Por vezes a sua iconografia surge noutros materiais e os investigadores acreditam que o uso da falange de equídeo poderá apontar para a domesticação dos cavalos, a partir da segunda metade do terceiro milénio.
Ouvido pelo barlavento, Miguel Lago, arqueólogo e administrador delegado da ERA Arqueologia, diz que «dentro do contexto cultural e religioso daquela época, havia várias representações padronizadas que não temos certeza exatamente do que são. Não sabemos se são antepassados ou divindades. Noutros contextos, aparecem gravados olhos que parecem o sol, riscos que quase parecem tatuagens na cara. Portanto, quase parece uma representação humana na falange. Não será gratuitamente que esses olhos têm uma representação que ainda hoje interpretamos como um sol, com círculos e raios. O aparecimento naquele tipo de sepulturas é recorrente e óbvio, porque estas sociedades tinham preceitos bastante precisos naquilo que colocavam junto dos mortos».
Nos últimos dias de escavação, apareceu uma pulseira lindíssima, em princípio produzida a partir de uma concha. «Nos sepulcros do Neolítico Médio não aparece cerâmica, aparecem uns cacos no meio da terra, enquanto no sepulcro do Cacolítico há uma deposição recorrente de vários recipientes de cerâmica junto dos mortos. Isto explica que há preceitos e os fundamentos religiosos eram muito parecidos, mas há uma certa evolução e uma certa transformação noutros rituais. Isso vê-se ali e é muito interessante», conclui Miguel Lago.
Direção Regional de Cultura do Algarve reconhece importância do sítio
Ouvido pelo barlavento, Rui Parreira, arqueólogo da Direção Regional de Cultura do Algarve, considera que a Quinta dos Poços «é um sítio muito relevante. A coincidência de ocupações de locais em diversas épocas não são inéditas. No entanto, não é todo os dias que se encontram hipogeus pré-históricos e sítios islâmicos com aquela dimensão, bem escavados, com resultados e investigação científica associada. Tudo isso é muito importante. Mas tem havido, nos últimos tempos, no Algarve, alguns achados da maior importância e este é um deles».
Sobre o destino a dar ao espólio, «acho que deve ficar o mais próximo possível do local onde foi encontrado. E portanto, se o grupo Pestana está disponível para ter uma instalação relevando os achados, isso é seguramente bem-vindo. Sobre a situação legal das peças, o arqueólogo é o fiel depositário até ao depósito numa entidade museológica. A questão é saber se o novo museu que Lagoa está a preparar será, de facto, um museu com um espólio material ou apenas um museu de ideias. Enquanto isso não for visto, os materiais terão que ficar entregues a uma entidade museológica o mais próximo possível. Não são propriedade da entidade achadora. São património nacional. Mas podem ser depositados ao cuidado de uma entidade, mediante um protocolo ou acordo», explica, «desde que o local onde são mostrados contribua para a compreensão das transformações de ocupação do território e que fiquem em boas condições de conservação e segurança. Eu gostaria de elogiar o grupo Pestana por querer apresentar os materiais. Não são todos os empreendedores que estão disponíveis para uma situação destas. Penso que isto atrai pessoas», considera, e um exemplo é a exposição da Torre Medieval na Herdade do Esporão, em Reguengos de Monsaraz. «Quando temos uma entidade disponível para dar apoio à cultura é sempre bem-vindo», volta a sublinhar.
Um agradecimento à equipa
Ao barlavento, Francisco Rosa Correia, gestor do projeto arqueológico e codiretor do acompanhamento de obra e escavação arqueológica, adjudicada à empresa ERA Arqueologia, deixa uma palavra de apreço a toda a equipa envolvida nos trabalhos da Quinta dos Poços, ao longo dos últimos meses. «Quero agradecer a todos e a cada um de vocês. Foram uma equipa de trabalho fantástica. Agradeço por todas as conquistas que alcançamos juntos, por todas as dificuldades que conseguimos superar. Trabalhar assim e ao lado de pessoas tão companheiras e generosas é um grande privilégio. Não se esqueçam: o espólio mais importante somos nós».