Nova associação quer Monchique em alerta contra os incêndios

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Das cinzas do desastre de agosto de 2018 nasce a nova associação Monchique Alerta – Serra Livre de Incêndios. Primeira medida deste coletivo é uma campanha de financiamento colaborativo (crowdfunding) para construir cisternas em locais estratégicos.

Uma chuva triste e tímida acompanha a tarefa de Ana Nunes e Carlos Abafa. Embrenhados no chamado «Cerro do Touro», na zona norte da vila, num dia cinzento de novembro, confirmam o óbito dos sobreiros centenários.

«Estão mesmo completamente mortos. Estamos no segundo outono e aqueles que não resistiram estão agora a ser marcados para abate. É um luto que fazemos por cada uma das árvores. Hoje quando aqui chegámos estava a dar o toque do campanário. E é mesmo isso que estamos a fazer, um funeral», ironiza Ana Nunes, herdeira de uma propriedade de cerca de sete hectares na colina que é considerada a última linha de defesa de Monchique contra os incêndios florestais.

«Esta propriedade tem uma característica que é ficar numa zona tampão da própria vila. No passado o fogo aproximou-se, mas nunca tinha ultrapassado esta barreira», até agosto de 2018, em que tudo ardeu em minutos.

«Estamos a despedirmo-nos destas árvores que estão aqui há cerca de 80 anos. Um sobreiro começa a dar cortiça por volta dos 30 anos, quando ainda é jovem e fininho», lamenta. Agora, «tenta-se criar espaço para que os novos sobreiros que estão a nascer encontrem luz. É muito importante libertar as árvores mortas, que depois vão apodrecendo para que o terreno possa ter a oportunidade de se regenerar», diz. No entanto, os pequenos proprietários, como Ana Nunes e Carlos Abafa, terão que suportar os custos do seu próprio bolso.

«O que acontece é que se tivéssemos eucaliptos e se nos candidatássemos a apoios para retirar o eucalipto e plantar sobreiros, e se entregássemos essa tarefa a uma firma para plantar tudo organizado com rega, teríamos apoio. Mas como tínhamos uma floresta que já era politicamente correta, com tudo o que deveria lá estar e sempre esteve, não há apoio para a manter», explica.

«Quando analisaram a nossa situação, disseram-nos logo que para o nosso tipo de situação (pequeno terreno e sobreiros ardidos) não havia apoios. Monchique caracteriza-se por pequenas propriedades, muito salpicadas e com uma grande mistura de espécies e são exatamente essas pequenas propriedades que tiveram grandes prejuízos, na qual se apoia toda a estrutura sócio-económica local. Não são propriedades que dão grande rendimento, nem são grandemente rentáveis, mas garantem a fixação ainda das famílias aqui. Têm principalmente no sobreiro, uma espécie de rendimento bianual, porque normalmente a cortiça de proprietários com pequena porção ou tiram todos os anos um bocadinho, ou então tiram de 10 em 10 anos. Mas regra geral, a tiragem da cortiça é desacertada e não dá um rendimento regular. Muitas famílias, e sobretudo as mais tradicionais, têm no sobreiro e na cortiça um pé de meia, a meias com a natureza e que justifica a sua permanência no sítio e o seu carinho pela terra que às vezes já herdaram de outras gerações», detalha.

Ana Nunes e Carlos Abafa.

«Haveria dinheiro para transformar um eucaliptal numa floresta mais tradicional, mas não para manter o que lá estava e para proporcionar a regeneração natural. Ou seja, este é um caso típico de um design que não foi adaptado à realidade. Foi concebido não sei por quem, certamente atrás de uma secretária, a pensar noutras coisas que não as pessoas que vivem em Monchique. Deveria ter havido uma observação sociológica mais cuidada», lamenta a professora reformada, enquanto torneia mais um sobreiro morto.

Estrangeiros desiludidos

Jelly e Joop Boomsma são um casal holandês, que se apaixonou por Monchique. Demoraram mais de 10 anos a construir uma casa na Arqueta, na qual sonhavam em passar a reforma. Compraram uma ruína que pouco a pouco transformaram numa casa de sonho. Veio o fogo e têm de novo uma ruína. Dias antes do incêndio, William Abrantes, emigrante em França, assinou a escritura de um pequeno terreno no Sítio do Cano. Ardeu tudo e o regresso fica adiado.

«Monchique estava a ter algum ressurgimento de ocupação, estava quase a tornar-se uma verdadeira Europa. As pessoas que vivem cá e que cuidam e se preocupam com a paisagem são europeus e não necessariamente portugueses. Mesmo esses já se questionam se faz sentido estar num sítio em que vai tudo arder», explica Ana Nunes ao «barlavento».

A casa do casal holandês é uma entre dezenas que ficaram destruídas pelo incêndio de agosto de 2018.

«Porque a maior parte vive em sítios de onde as pessoas, por envelhecimento, saíram e venderam aos estrangeiros que os modificaram, melhoraram, puseram condições ímpares para viverem e neste momento estão aflitos porque não há segurança», acrescenta Carlos Abafa, professor universitário aposentado.

«E sair desses sítios numa altura de incêndio é absolutamente assustador. As suas propriedades até podem ser paradisíacas, mas para saírem de lá, terão que passar por caminhos estreitos que hoje estão ladeados de eucaliptos. Escapar é um pavor. Ou seja, esses europeus começam a questionar se fará sentido. Estamos a pôr em risco um núcleo muito importante que é um tampão de desertificação», conclui Ana Nunes.

Uma comunidade em contraciclo em Balsa do Amieiro

As cicatrizes do fogo estão por toda a parte e à vista. Há feridas que talvez nunca sarem. Um monumental Carvalho de Monchique, classificado em agosto de 1993 e queimado de morte em agosto de 2018, fazia parte da Rota das Árvores Monumentais, projeto promovido pela Almargem e copromovido pelo Turismo do Algarve. Está numa das bermas da N267, a caminho de Alferce. Há quem diga que ainda vai recuperar, há quem diga que não.


Pergunte-se a Nuno Carvalho, 42 anos. Trabalha em Lisboa, mas comprou um terreno, há cerca de seis anos, num local ermo e bucólico chamado Balsa do Amieiro.

«Sim. Eu fiz um percurso um pouco inverso. Não tinha amigos nem familiares aqui em Monchique, vim mesmo pela beleza da paisagem e pela simpatia das gentes. Vim inicialmente para este terreno onde não havia mais ninguém. Comecei a contactar pessoas e já somos sete famílias a viver aqui». Quando aconteceu o fogo, Nuno estava a trabalhar em Sintra. Foi um vizinho, que na valentia dos seus 70 e muitos anos enganou as chamas e salvou o que não ardeu. Ainda assim, naquele domingo de cinzas, encontrou um cenário de «devastação total».

Nuno Carvalho, 42 anos, vive no coração de Monchique e trabalha em Lisboa.

Agora vive temporariamente numa roulotte, enquanto espera a resposta do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. «O ano passado foi um golpe muito forte. Havia duas opções. Desistir ou voltar ainda com mais motivação para contrariar o êxodo rural e a desertificação. A intenção é reunir mais famílias que tenham uma consciência ambiental, de salvaguarda das nascentes de água mineral, de vida em comunidade, com as crianças. Alguns de nós trabalham na área da saúde e até temos uma escola», revela ao «barlavento».

«A minha intenção é desenvolver o meu trabalho como terapeuta, osteopata, acupuntor e formador e trazer isso para a montanha, para que possa haver uma regeneração natural, não apenas ambiental, mas também humana. Já há mais uma pessoa que comprou um terreno aqui ao lado, e depois do fogo, nasceram duas crianças».

«Excesso de biodiversidade»

Apesar da esperança, Nuno Carvalho não esconde alguma mágoa. «É importante haver famílias que vêm fazer algo pela pela serra, porque Monchique hoje em dia está entregue à monocultura do eucalipto. São de proprietários que olham para a floresta como uma fonte de rendimento. Não vivem na zona, abandonam. E depois acontece aquilo que aconteceu no ano passado. Isso não traz pessoas para viver neste concelho», remata.

«É preciso mudar de paradigma. A monocultura de eucalipto não é natural, endógena ou autóctone de Monchique. Não estimula os saberes e os ofícios tradicionais, e não estimula o turismo. O turista quer vir explorar um património natural e gentes autênticas, não é? E portanto, tem de haver todo um ecossistema que permita isso. A floresta não é uma fábrica. Mas pode permitir que se fixem pessoas, que se proteja o ciclo da água. Isso é feito na montanha com árvores autóctones, que tenham valor ambiental e económico», argumenta.

Há uma comunidade a crescer em Balsa do Amieiro, um sítio bucólico na Serra de Monchique.

Nuno Carvalho candidatou-se ao PDR2020 para ser indeminizado por dois armazéns que perdeu, ferramentas e sistemas de rega, tanques e árvores de fruto. Foram anos de trabalho e investimento em materiais. Em 2018, viu rejeitado um projeto de reflorestação em área ardida, com cinco espécies diferentes.

«Foi chumbado por excesso de biodiversidade. Não vão de encontro ao Plano de Ordenamento Florestal de Monchique porque este não tem em conta o castanheiro. Como é que isso é possível? Em 2019 já mudaram as regras, mas entretanto o meu chumbou e não pude plantar nada. Isto faz sentido? O sistema está obsoleto, não funciona e não é adequado às necessidades das pessoas. É uma falta de humanidade e de bom senso incrível. De facto, é preciso muita capacidade de resiliência para continuar a sonhar».

Voz coletiva organizada

A Associação Monchique Alerta – Serra livre de Incêndios foi fundada no dia 28 de março de 2019. Nasceu de uma reunião informal e emotiva de quem viveu o fogo e vive as suas consequências.

«É algo que eu sempre identifiquei e que dei sempre muita força. As pessoas têm de se unir. Têm de dar voz de forma organizada àquilo que se passou aqui, pois já não é o primeiro grande fogo. No fundo, a associação surgiu para dar voz a estas pessoas que não querem viver no meio dos eucaliptais», diz Nuno Carvalho.

«Em relação à prevenção e ao combate, tudo funcionou mal» em agosto de 2018.

«A ordem para evacuar as pessoas à força é algo que nunca mais pode acontecer. As pessoas foram algemadas enquanto os seus bens ardiam. Esta associação nasce para alertar as pessoas em relação àquilo que se passa em termos do ordenamento do território, prevenção e combate ao fogo e também para exigir indemnizações para aqueles que ficaram sem nada», descreve.

Reservatório precário no terreno de William Abrantes.

«A questão é que não conseguimos ter oportunidade de receber qualquer tipo de apoio daqueles valores astronómicos que foram divulgados para Monchique e que tentámos, e achávamos que era correto», diz Ana Nunes.

Um dos primeiros projetos desta nova associação é uma campanha de financiamento colaborativo (crowdfunding), sob o título «Monchique, com Futuro».

O objetivo é angariar 22215 euros para construir quatro cisternas com capacidade para 50 mil litros de água até dia 9 de dezembro.

O projeto arranca com quatro destes tanques, a implementar nos terrenos de Nuno Carvalho, William Abrantes e dos casais Ana Nunes e Carlos Abafa e Jelly e Joop Boomsma.

Segundo a direção da Monchique Alerta, não houve qualquer escolha nos beneficiários. Foram os próprios interessados que responderam ao desafio da associação: ajudar cada um a ajudar-se a si próprio.

Até agora campanha angariou 10885 euros, ou seja, 48 por cento, com 94 pessoas a apoiar a causa.

A ideia é que a água armazenada nas cisternas a construir possa correr por gravidade, em locais onde não chega a rede do município, e que possa servir para a defesa da floresta em caso de incêndio, para a proteção de habitações e ainda para regar árvores jovens.

Reservatório na Arqueta.

«Mesmo que algumas árvores sejam plantadas, em algum momento poderá ser preciso dar-lhes alguma água suplementar. Portanto, isso vai ajudar a tornar este cerro verde de novo. Não é que nos vamos armar em bombeiros, mas se a zona estiver regada, úmida e hidratada», será mais difícil a propagação das chamas, conclui Ana Nunes.

Em março do próximo ano, a associação vai organizar workshops de defesa contra incêndios florestais, em parceria com várias corporações de bombeiros do Barlavento algarvio.