Necton cria tecnologia que recicla água das estufas enquanto produz microalgas

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Necton avança para a segunda fase de um projeto inovador. Ideia é aproveitar efluente das culturas em hidroponia numa produção de microalgas com custos reduzidos.

«O que se pretende é reutilizar a água de drenagem que existe em grandes quantidades nas estufas de hidroponia, de cultivos sem solo, por exemplo, de frutos vermelhos, que escorre para tanques, onde acaba sem uso. Essa água, contudo, tem muitos nutrientes que não foram assimilados pelas plantas e que as microalgas gostam. Portanto, a ideia é valorizar esse resíduo para criar biomassa e acrescentar valor», explica Alexandre Rodrigues, coordenador do departamento de inovação da Necton – Companhia Portuguesa de Culturas Marinhas SA, uma das mais antigas empresas produtoras de microalgas da União Europeia, ao barlavento.

Desenvolver e testar esta tecnologia foi o objetivo do projeto ALGACYCLE, liderado pela empresa algarvia, que contou com um financiamento de cerca de 500 mil euros da EEA Norway Grants.

Além do promotor, com sede em Olhão, foram parceiros a Universidade do Algarve (UAlg), a Hubel Verde, empresa algarvia dedicada à agricultura; a Hubel Engenharia e Sustentabilidade, empresa de engenharia tecnológica e automação; a Universidade Nord da Noruega; e o Instituto norueguês NIBIO.

A água excedente de drenagem, segundo os cálculos da Necton, pode ser superior a 30 por cento da dotação global da cultura. E poderá ter uma concentração de nutrientes, como nitratos e fosfatos que, por vezes, são superiores aos admissíveis por lei para descarte sem tratamento, pois pode contaminar os solos, aquíferos e outros corpos de água. Além disso, a água de drenagem, por vezes, contém outros químicos como pesticidas.

Neste aspeto, as microalgas podem também ajudar, segundo explica a investigadora Inês Castro Maia.

«O que acontece é que alguns desses pesticidas é que podem ser absorvidos pelas microalgas e, no final, ficam na biomassa ou então, podem ir-se degradando com o tempo. O que fizemos no projeto, uma vez que pretendemos desenvolver novos produtos, foi ver se a biomassa acumulou, por exemplo, pesticídas e o efeito que eles podem ter» no final da cadeia de produção. Os testes revelaram que «as microalgas removeram a maioria dos nutrientes presentes na água e que a biomassa acumulou valores muito baixos de apenas um pesticida.

Depois passou-se ao desenvolvimento de dois novos produtos. As células foram quebradas para libertarem os compostos de interesse. O sobrenadante, que é o que fica fora da célula, foi usado para fazer um bioestimulante para o desenvolvimento de plantas. «Neste caso, testámos em alfaces». O remanescente foi usado para a formulação de rações para aquacultura. 

As rações foram preparadas pela Sparos, uma empresa também com sede em Olhão, e enviadas para a Noruega, onde decorreram os testes com uma população de salmão de aquacultura pela Universidade Nord.

Nestes testes foi analisado o impacto da ração no crescimento e qualidade do salmão. «Além disso, no mesmo em ensaio, analisámos o filete para perceber se o pesticida estaria incorporado. Não passou nada. Por isso, temos aqui um potencial muito grande».

Outro aspeto importante é o conceito de economia circular. «Sim, quando separamos a biomassa, podemos reutilizar a água na produção das estufas. Isso é fundamental em regiões com problemas de disponibilidade hídrica, como o Algarve», acrescenta.

Transferência de tecnologia

Segundo Alexandre Rodrigues, este projeto foi apenas o piloto, uma prova de conceito que poderá ajudar a empresa a expandir. Não tendo espaço disponível na sua localização atual, e na ausência de espaços autorizados para aquacultura, a empresa procura novas localizações onde exista alguma vantagem competitiva, por exemplo ao lado de estufas de hidroponia. 

«As microalgas precisam de luz solar, água, nutrientes e CO2. Ao lado das estufas, podemos ter unidades produtoras de microalgas com custos muito reduzidos, porque a água excedente das estufas, é grátis e os nutrientes também. Além de conseguirmos valorizar um efluente que estava a ser desperdiçado, conseguimos criar produto barato. Conseguimos transformar um desperdício em valor. Claro, essa água pode ser usada para regadio, mas acaba quase sempre por ser desperdiçada. Com as microalgas limpamos essa água, enquanto elas crescem e no final temos um produto de valor acrescentado», e a ideia pode ser implementada em qualquer parte do mundo.

Em relação ao modelo de negócio a adotar, e qual o complemento na faturação de uma exploração hidropónica, ou num complexo de estufas, o investigador diz que há várias possibilidades.

«Estamos a falar em empresas que não são produtores de microalgas, por isso, faz sentido estabelecer uma parceria, por exemplo. Claro, o produtor poderá ter interesse em abraçar esta área e controlar diretamente as vendas da biomassa, ou então deixar isso para um parceiro que tem o know-how».

O próximo passo será o projeto REALM, também liderado pela Necton. «É financiado diretamente pela União Europeia, na ordem dos 10 milhões de euros. O objetivo é implementar uma unidade de demonstração com cerca de um hectare ao lado de uma das estufas da Hubel». 

Está prevista ainda «a instalação de outra unidade em Espanha e duas mais pequenas de validação nos Países Baixos e na Finlândia», num total de 16 parceiros espalhados pela Europa.

Microalgas todo o ano

Para já, o projeto ALGACYCLE deu para perceber «que microalgas usar e em que condições». Foi usado um fotobiorreator tubular de 19 metros cúbicos (m³) e duas espécies diferentes. 

«Focamo-nos numa espécie mais para o verão (Scenedesmus), e outra de inverno, uma microalga que foi isolada na Noruega (Koliella antarctica) porque o objetivo é ter uma produção ao longo de todo o ano», diz Alexandre Rodrigues.

Inês complementa: «sabíamos que a Scenedesmus tem um grande potencial para a produção de bioestimulantes, e por isso é muito boa a para a aplicação na agricultura. A Koliella antarctica ainda não foi muito estudada, mas sabíamos que tem um perfil de Omega 3 e ácidos gordos muito interessante para aquacultura».

«O mundo das microalgas é relativamente novo, conhecem-se milhares de espécies, muitas ainda estão a ser investigadas. Menos de uma centena é usada comercialmente, portanto o potencial é enorme», refere Alexandre Rodrigues. 

Na Necton «servimos, sobretudo, o mercado da aquacultura e cosmética, mas podemos ir para muitos mais. O uso é quase infinito», e também o mercado alimentar para consumo humano está a crescer, com produtos como a spirulina e a clorela, uma fonte natural de proteína. No GreenCoLab, instalado na UAlg estão a ser desenvolvidos novos produtos com microalgas, como bolachas, suplementos e até uma cerveja.

Sector precisa de crescer

Segundo o coordenador de inovação, a Necton defende a partilha de conhecimento com outras congéneres. «Se vamos competir demasiado entre as poucas empresas que existem, o sector não vai crescer à velocidade que tem de crescer. Essa é a nossa perspetiva. Somos relativamente abertos».

«Por norma, ajudamos as novas empresas a desenvolverem-se porque este negócio precisa de crescer. É claro que há competição, mas para já precisamos de ser mais e sobretudo de ser mais fortes para convencer os legisladores a mudar algumas leis que ainda nos travam», diz.

A questão é que «o cultivo de microalgas está num limbo entre a agricultura e a aquacultura. Trabalhamos com água, mas o que produzimos é como se fossem plantas que fazem fotossíntese também». No entanto, é considerado aquacultura.

«Mas é um misto. A legislação da aquacultura acaba por restringir-nos um pouco. Porque está pensada para a produção de animais, ou seja, seria o mesmo que aplicar a legislação da pecuária em toda a agricultura, o que não faz qualquer sentido, mas é o que se passa atualmente em Portugal com consequências muito nefastas para o desenvolvimento da indústria das microalgas. Não estamos a produzir peixe, nem a poluir. Estamos a consumir CO2 e a libertar oxigénio. Temos uma certa pegada ambiental por parte dos equipamentos, mas é praticamente nula, porque instalamos painéis solares em todos os telhados e quase toda a energia que consumimos durante o dia é solar», de acordo com o coordenador de inovação da Necton.

Aliás, «um dos fotobiorreatores, onde são cultivadas as microalgas Nannochloropsis, foi «instalado com o apoio de fundos europeus no projeto ProFuture com a condição de ser off the grid, fora da rede elétrica», acrescenta ao barlavento.

PRR ajuda a inovação

No âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a Necton pretende «aumentar a sustentabilidade», reduzindo o consumo de água doce de furo, utilizada no arrefecimento dos fotobiorreatores.

«O sistema funciona como um radiador. Temos de colocar um limite de temperatura máxima para as microalgas, que quando é atingido, liga um conjunto de aspersores». A ideia é «instalar uma máquina de frio (chiller) alimentado por painéis solares, com energia verde. Terá um permutador de calor por onde passaremos as microalgas de forma a manter todo o sistema à temperatura ideal. É um protótipo que vamos testar».

ALGACYCLE une microalgas, agricultura, aquacultura e engenharia

O projeto ALGACYCLE começou com a otimização do crescimento de microalgas em água de drenagem, fornecida pela Hubel Verde, à escala laboratorial na Universidade do Algarve (UAlg). Depois passou-se ao crescimento de microalgas e ao tratamento da água numa escala piloto e industrial, nas instalações da Necton – Companhia Portuguesa de Culturas Marinhas, SA, que lidera o projeto. A biomassa obtida foi testada em produtos para aquacultura, como um substituto de ingredientes não-sustentáveis como a soja e a farinha de peixe, e será ainda testada em produtos para agricultura, como biofertilizantes ou bioestimulantes, substituindo assim fertilizantes de sintetização industrial. Este projeto está alinhado com diversas estratégias da União Europeia, como a Estratégia de Bioeconomia Circular que visa fornecer processos de produção sustentáveis do ponto de vista ambiental, mas capazes de satisfazer as necessidades relacionadas com a alimentação – e ainda com a redução da demanda atual de fertilizantes e pesticidas de origem química, até 2030.