Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Tavira é ponto de partida para novo projeto sobre a história da saúde na cidade.
Alexandra Rufino, técnica de património cultural, desde há 12 anos que se dedica a inventariar o mais antigo arquivo conhecido da cidade de Tavira.
Depois de concluir a tese de licenciatura sobre a importância deste legado, acabou por ficar na Santa Casa da Misericórdia de Tavira para continuar o trabalho.
Na década de 1980, Arnaldo Casimiro Anica, ex-oficial do Exército, antigo mesário e estudioso da história de Tavira e do Algarve, deixou várias anotações genéricas úteis, mas ainda assim, tem sido uma tarefa árdua decifrar a caligrafia antiga e o conteúdo de muitos documentos antigos encadernados em centenas de livros, alguns dos quais em mau estado de conservação.
Rufino contou com a ajuda de Luís Filipe Oliveira, docente da Universidade do Algarve (UAlg), «para encontrar o caminho» e tem tido o apoio dos arquivos de Faro e de Tavira, sobretudo deste último que tem feito a digitalização do espólio mais relevante para a posteridade.
«A cidade sofreu várias catástrofes ao longo dos tempos e outros conventos que poderiam ter arquivos valiosos semelhantes, acabaram por desaparecer ao longo dos anos. O nosso, quando lhe peguei em bruto, estava guardado numa arrecadação do centro infantil [O Pinóquio]», revela.
«Chamemos-lhe sorte, mas houve sempre alguém que teve o cuidado de o guardar», durante quatro séculos.
Apesar de não ser arquivista, Rufino não tem dúvidas que contém muita matéria-prima para novas teses de mestrado e doutoramento nos âmbitos da história de arte, da arquitetura e até da própria sociedade local.
«Esta irmandade trabalhava com as pessoas de Tavira. Os irmãos saíam para ir ajudar o próximo. Conseguimos perceber toda essa intervenção sociocaritativa ao longo dos séculos», exemplifica.
Um dos tesouros é o contrato de construção de 1541 da Igreja da Misericórdia, documento que sobreviveu, apesar de estar muito degradado.
«Tem a assinatura do mestre André Pilarte», que depois de servir na construção do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, veio para Tavira trabalhar no projeto daquela que viria a ser a mais notável representação Renascentista de todo o Algarve. O documento «ensina-nos quem doou dinheiro e o porquê da sua construção», detalha.
Outro tesouro são os pergaminhos datados de 1425 «que nos falam da fundação do Hospital do Espírito Santo. Relatam os nomes dos beneméritos, o que existia nas proximidades do terreno, as casas, as pessoas», ou seja, dão-nos muitas «pistas» para a razão do desenrolar da história da forma como aconteceu até aos dias de hoje.
Também já estão digitalizados alguns livros de registo e movimento dos expostos. «Os expostos eram as pessoas ajudadas, por noma, crianças órfãs que eram entregues a amas. Estamos a falar também de pessoas que tiveram dificuldades financeiras. Está escrito qual o apoio alimentar que receberam», entre outros dados, até aos últimos 100 anos.
Situada em pleno centro histórico e turístico, a Igreja e Casa Museu da Misericórdia de Tavira (ICMT) foi sede da instituição a partir de meados do século XVI até 1986.
Em 2010, abriu portas ao público e desde então tem vindo sempre a evoluir na sua função museológica.
«Trabalhar cultura tem sido um objetivo desta e de outras misericórdias nas comunidades onde estão inseridas. As antigas salas do despacho, onde os irmãos se reuniam, são hoje salas de exposições temporárias» que funcionam dinamizadas em parceria com as associações locais, de acordo com a técnica do Gabinete de Património, Culto e Cultura.
No futuro, o objetivo é mais ambicioso, segundo explica o provedor Pedro Nascimento. «Agora queremos aproveitar alguns espaços que não estão a ser usados. Vamos enriquecer a visita com aquilo que os antepassados se preocuparam em guardar», por exemplo, através da exposição de documentos históricos fac-similados. Será feito com fundos próprios, com o apoio da autarquia tavirense, «e dentro daquilo que possa ser enquadrado, vamos fazer algumas candidaturas a fundos. Estamos na fase de construir o projeto. Ainda não podemos quantificar valores porque vai levar algum tempo, mas temos esse objetivo», garante.
Memórias do Hospital do Espírito Santo
Outro projeto na calha tem por título «Tavira Caritativa dedicada ao Hospital do Espírito Santo» e deverá inaugurar até ao final de março, na Igreja de São José, atualmente fechada. «Teve a sua importância para os doentes, já que até ao início do século XX era tão importante cuidar do corpo como da alma», explica Alexandra Rufino. O objetivo é dar a conhecer a história e a evolução da medicina na cidade desde a construção, em 1425.
«A Misericórdia de Tavira e o antigo Hospital do Espírito Santo eram duas instituições diferentes até 1921, mas tinham relações e acordos entre si», chegando mesmo a funcionar naquele espaço, até ser nacionalizado em 1975.
«A exposição pretende focar doenças que existiram, como a tuberculose, os médicos, e mostar utensílios clínicos de inícios antigos, como próteses, seringas e outros. Será recreada uma enfermaria e uma farmácia de época e vamos fazer também uma homenagem à confraria fundadora. No futuro, pretendemos ter uma parte educativa mais ativa», revela.
A mostra conta também com a parceria da Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve e de várias entidades locais. Para dia 18 de março, às 10 horas, está agendado um percurso orientado ao hospital. No dia seguinte e à mesma hora, haverá uma visita introdutória à mostra Tavira Caritativa». O programa termina com uma celebração religiosa às 18h00 na Igreja de São José, dedicada aos pais.
Um legado humanista
Passa um pouco despercebida, mas onde é hoje a biblioteca, também aberta ao público, um olhar mais atento revela uma mesa original do século XVI, onde os 13 irmãos da mesa administrativa da Misericórdia de Tavira se reuniam em pé de igualdade.
«Esta irmandade sempre teve beneméritos e as mesas administrativas foram constituídas por homens abastados e de puro sangue. Pessoas da nobreza, com títulos», e não teve «os chamados cristãos novos», descreve.
«Sempre teve estas linhagens muito aristocráticas até» à implantação da República, em 1910. «Até ao século XX, os irmãos saíam à procura de quem precisava de ajuda. Cada um tinha a sua área de atuação». Além disso, «tinham a seu cargo as celebrações da semana santa, e as Misericórdias davam muita importância ao sacrifício de Cristo. Os beneméritos mandavam peças de arte sacra e de ourivesaria para fazer aumentar o espólio da instituição. Deixavam os bens em troca de missas em sua memória».