Livro Vermelho faz retrato «pouco animador» do artesanato algarvio

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Livro Vermelho traça um retrato «pouco animador» do artesanato algarvio. Todas as atividades têm fragilidades e algumas poderão desaparecer.

A idade avançada dos artesãos, a perda de utilidade e pertinência dos artefactos que produzem, a quebra das cadeias de transmissão do conhecimento para as gerações mais jovens e sobretudo «a grande desvalorização social, cultural e económica que muitas destas atividades têm padecido», é o retrato traçado pelo estudo «Red Book – Lista Vermelha das Atividades Artesanais Algarvias», apresentado em Loulé, na quarta-feira, dia 22 de junho.

A investigação surge por iniciativa da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e foi conduzida no primeiro semestre de 2021 pela Proactivetur, empresa algarvia especializada em ecoturismo, turismo criativo, consultoria em desenvolvimento local e promoção das artes tradicionais, e que desde 2013 gere o projeto TASA.

Segundo Susana Calado Martins, coordenadora da investigação, «este trabalho parte da construção de uma base de dados, a partir de várias fontes. Apurámos 270 contactos que foram objeto de uma triagem que resultou num universo de 174 artesãos. Depois do confinamento houve um trabalho de campo e conseguimos entrevistar pessoalmente os mestres, os detentores de maior saber, ver como trabalham e obter mais informações sobre o contexto e a forma como praticam a sua atividade. E, sobretudo, se tiram ou não proveitos económicos, o que tem a ver com a sobrevivência das práticas».

Estudo elaborado no primeiro semestre de 2021 mostra que de um universo de 174 artesãos, a média de idades ronda os 64 anos. Todas as atividades têm fragilidades e algumas poderão mesmo desaparecer se nada for feito.

No estudo priorizou-se a produção de objetos utilitários com métodos manuais, de artesãos que trabalham isolados ou em pequenas comunidades, e cuja arte tenha raízes populares.
«Outro objetivo foi encontrar critérios para a inscrição nas listas de Património Cultural Imaterial (PCI). Por exemplo, atividades que não têm quem as realize na atualidade, embora ainda haja mestres ou detentores desse saber vivos, a quem se possa recorrer para reativar ou reabilitá-las.

Caso não houvesse este critério, a lista seria infindável, pois já há várias artes desaparecidas», sublinhou.

De facto, segundo a colega Graça Palma, da Proactivetur, foram identificadas «26 atividades artesanais, 14 a necessitar de salvaguarda urgente e uma já desaparecida. Isto é um resultado pouco animador» e poderá ser pior porque, «mesmo as atividades consideradas como sendo viáveis segundo os critérios que usámos, todas elas têm debilidades».

E quais as razões para este cenário? «Há uma vertente social incontornável. Há uma vertente cultural incontornável e também um aspeto económico ligado a estas práticas. Muitos artesãos referem que não é possível sobreviver do exercício exclusivo da atividade e que é apenas um complemento ao rendimento. Por outro lado, consideram que a morosidade de fazer o objeto, do praticar a técnica, não são refletidos no preço de venda. E constatam muito a desvalorização do produto artesanal pelo cliente português, que é o principal nos mercados de proximidade» destes artesãos.

«É um problema de mentalidades. A clientela não está disponível para pagar um valor justo. Além disso, acusam a dimensão do (baixo) poder de compra dos portugueses e a sua preferência pelo que é industrial e descartável». Por fim, há também um «desfasamento» entre as tendências de mercado. Em relação a um possível futuro, «os artesãos observam o desinteresse dos mais jovens em aprender ofícios manuais. São saberes que demoram a transmitir, é um processo longo», elencou Graça Palma.

O Livro Vermelho, cujo nome se inspira na lista das espécies ameaçadas (da União Internacional para a Conservação da Natureza), traça, no entanto, «recomendações genéricas» para que «a partir deste estudo se faça um plano de salvaguarda das atividades tradicionais».

«É preciso integrar todas num programa de transmissão de saberes já! E também pensar e articular ações de inovação, porque este artesanato não sobrevive apenas replicando os modelos tradicionais de fazer e comercializar. Além da salvaguarda das competências, é preciso criar incentivos para a instalação de negócios, e para a comunicação do saber fazer do Algarve. Deveria haver uma estratégia regional no sentido de apoiar a sua futura recuperação», corroborou Graça Palma.

«Consideramos, por exemplo, um plano de incentivo e apoio à utilização de matérias-primas naturais e de proveniência local, como a palma. A maior parte dos artesãos usa palma importada de Espanha e a Marrocos».

Há, no entanto, lacunas, explicou Susana Calado Martins. «Este é um trabalho de caráter pioneiro, um primeiro passo. Foi impossível abranger todas as artes. Ficou de fora a construção tradicional, a doçaria regional e a produção de objetos não utilitários, como a cerâmica figurativa ou escultórica, que tem muita expressão no Algarve e quase que dava para fazer um outro trabalho específico. E também os instrumentos musicais e a construção de brinquedos, que não cabiam no contexto desta investigação».

As investigadoras pediram também aos municípios informações sobre ações de transmissão de saber, porque até as atividades consideradas viáveis e com um contexto favorável para a sua continuidade estão a prazo.

«Algumas são hoje um património vivo, mas estão em risco, em parte devido ao número reduzido de artesãos e à sua média etária».

Madalena Feu, delegada regional do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), lembrou que «o Algarve é uma região com um património cultural riquíssimo. Mas durante muitos anos parece que nos esquecemos um pouco disso e não valorizamos muito aquilo que são os nossos saberes. O IEFP sempre foi amigo do artesanato. Gostaria muito de ver, de novo, as escolas-oficinas e os apoios à micro-empresas» que não existem neste momento.

«O artesanato, de facto, é uma excelente oportunidade de criação de emprego e de fixação de pessoas no interior. Na área do empreendedorismo será uma boa oportunidade para muitos que estão no desemprego», disse, sobretudo para conseguirem certificar o que produzirem.

A apresentação contou ainda com a presença de Adriana Freire Nogueira, diretora regional de Cultura do Algarve, Miguel Reimão Costa, docente da Universidade do Algarve que fez parte do conselho técnico-científico do estudo, de Dália Paulo, diretora municipal de Loulé e de José Apolinário, presidente da CCDR Algarve.

José Apolinário, presidente da CCDR Algarve, entidade que encomendou o estudo.

O trabalho foi desenvolvido no contexto do Centro Magalhães para o Empreendedorismo de Indústrias Culturais e Criativas, projeto que pretende estabelecer uma rede de cooperação transfronteiriça destinada a consolidar e a promover a oferta cultural inovadora no seio da Euroregião Algarve – Alentejo – Andaluzia, sendo cofinanciado pelo Programa Interreg V-A Espanha Portugal (POCTEP) 2014-2020.

Vítor Aleixo: «a economia tem de mudar»

No uso da palavra, Vítor Aleixo, autarca de Loulé considerou que «vivemos num mundo em que o desenvolvimento, no meu ponto de vista, deixou de ser sinónimo de coisa bem-vinda em que é tudo fantástico, milagroso e extraordinário. Felizmente, a UNESCO tem proposto novas visões, porque o desenvolvimento começou a ser uma coisa muito veloz, predadora, violenta e que destrói, pura e simplesmente. Destrói espécies naturais e destrói atividades humanas ancestrais como estas que estamos enumerar para salvaguardar a sua memória futura e tentar reintroduzi-las num novo circuito económico».

Portanto, «o desenvolvimento é, hoje em dia, uma coisa muito problemática. É natural que surjam mais listas vermelhas. Estamos a falar de práticas artesanais, da memória humana, de histórias, narrativas e de todo um património. Chegou a altura de protegermos esta diversidade, que tal como na natureza, está a ser cilindrada e apagada. O homem, embarcando neste conceito, está a ficar cada vez mais pobre porque obedece sempre ao conceito da rentabilidade».

«Estas iniciativas são muito bem-vindas. Aqui em Loulé, começámos há muitos anos a recuperar as técnicas de trabalho do cobre e do vime para fazer cestos, os oleiros, os caldeireiros e a empreita» disse. Aleixo sublinhou também o papel do projeto TASA «que tratou de salvaguardar estas práticas, chamou criativos, juntou-lhes design e reinventou coisas antigas que voltaram a ter valor económico. E isso é extraordinário porque faz reemergir uma nova economia numa escala mais próxima, mais local, de circuitos curtos, com muita criatividade. Não podemos continuar amarrados à economia convencional. A economia vai ter que mudar muito. É preciso trilhar novos caminhos» que se inserem nos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da ONU e do município de Loulé.

Bolo de Tacho de Monchique poderá vir a ser PCI

Rita Jerónimo, subdiretora-geral do Património Cultural para a área dos Museus, Palácios e Monumentos que encerrou a sessão de apresentação do «Red Book – Lista Vermelha das Atividades Artesanais Algarvias», revelou que já se encontram inscritas na Lista do Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (PCI) duas manifestações do Algarve: o culto da Nossa Senhora da Piedade de Loulé (Mãe Soberana) e a Festa em honra de Nossa Senhora dos Navegantes, da Ilha da Culatra, «na área das práticas sociais, rituais e eventos festivos», além da Dieta Mediterrânica, com informação desenvolvida. A nível nacional há 43 registos de PCI e estão em fase de análise mais 54. Está em análise a candidatura do bolo de Tacho de Monchique.