Lígia Rodrigues mostra a sua arte sacra contemporânea na Ermida de Carvoeiro

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Lígia Rodrigues tem trabalhos de escultura e pintura em Viseu, Fátima, Entrocamento, Alentejo, e sobretudo no Algarve, que se apresentam como uma lufada de ar fresco num meio ainda muito conservador. A obra mais completa da sua carreira vai ser, por fim, inaugurada em Carvoeiro.

barlavento: há quanto tempo exerce esta profissão?

Lígia Rodrigues: Para especificar mesmo o início, digamos que desde 1991. Acabei o curso de pintura da Faculdade de Belas-artes, em Lisboa e fui convidada para trabalhar em Itália, onde integrei grupo do Centro Ave Arte.

Qual a obra mais icónica?

Não é fácil dizer, mas acho que a Ermida do Carvoeiro, para mim, é a obra mais concluída, a mais completa. Levou 11 anos a fazer. O Padre José Nunes foi uma pessoa incrível, teve uma visão muito grande, e ainda queria fazer mais, antes de se reformar.

Como chegou até si?

Ele viu um folheto meu, quando vim para o Algarve. Na altura, ele queria um mosaico para uma igreja que estava a construir em Vale d’El Rei, nos arredores da Lagoa. Foi construída de raiz, mas teve muitos compromissos ao nível de projeto artístico. Não existe uma linguagem comum. E ele percebeu bem isso no final. Em 2009, para Carvoeiro, pediu-me uma intervenção na parede do presbitério que sofria com o salitre. Pensei que deveria fazer um projeto completo e ao poucos foi-se cumprindo. Ele acreditou e foi investindo, também com a ajuda das pessoas, e concretizou-o até ao final.

Que sabe acerca daquela Ermida?

Daquilo que sei sobre a sua história, tem a ver com uma promessa de náufragos. A origem é do século XVIII. A única parte original que resta é o arco principal que está no presbitério. A mais antiga era apenas um pedaço pequeno ao qual as pessoas da terra foram acrescentando elementos. Nos anos 1960 fez-se uma obra de ampliação, muito descaracterizada. Estava forrada com azulejos estereotipados, não tinha uma arquitetura pensada, era um pouco o que estava na moda e o que o povo ia fazendo. Nem há muitos registos.

Havia ali algo que, de alguma forma, pudesse condicionar uma intervenção contemporânea?

Não. As peças principais, que são históricas, de época, são a imagem de Nossa Senhora da Encarnação e o arco que referi. A padroeira continua a ter um lugar de protagonismo, logo no meio da Assembleia, porque tem a ver também com a liturgia.

Foi um processo controverso?

Algumas pessoas não reconhecem o estilo porque preferem as expressões antigas, sobretudo do barroco. Muitas ainda estão no registo do século XVIII, da talha dourada, dos anjos e dos santos que choram. Mas os edifícios têm várias épocas. Vão sofrendo a evolução dos vários estilos. Muitas igrejas foram basílicas romanas, aproveitadas dos templos dos deuses. Então, ao passarmos pela história, deixamos sempre a marca do nosso tempo. A vantagem do artista profissional é que consegue fazê-lo com uma visão unitária do espaço. Nunca concebemos uma peça que não seja para um espaço em particular.

Uma intervenção in situ, correto?

Tem de ser, porque a arte vive do ambiente, das pessoas, dos locais, dos materiais e da luz. Para mim é fundamental ir aos sítios, colher a atmosfera. Não significa que as pessoas achem imediatamente que aquela peça está integrada na unidade porque, regra geral, estão habituadas ao que já conhecem. Quando existe uma intervenção contemporânea, reagem sempre.

E normalmente não é bem aceite…

A mudança, a não ser que a pessoa tenha uma certa cultura, uma certa preparação, nunca é bem aceite. Há sempre aquela fase de luta, de rejeição, que precisa de uns anos até adquirir o estatuto de património. É muito raro o contrário. É preciso que o cliente seja uma pessoa com a mente aberta e que saiba o que está a fazer, para conseguir seguir em frente, não obstante as várias  manifestações de desagrado. Por norma, o cliente é o pároco e alguns sofrem bastante. Aquilo que mais gosto de fazer, antes de qualquer projeto, é ouvir todos. Falar com as pessoas, perceber quais as suas expectativas e o que gostariam. Mas nem sempre consigo, porque até esta abordagem, muitas vezes, é já de rejeição. Imagine o avô de alguém ofereceu uma peça que, se calhar, vai ter de ser retirada pois tem mais a ver com valor sentimental. Não desprezando o sentimento que é sempre algo de genuíno, claro. Ou alguém que fez uma promessa, oferece uma imagem que tem de ser colocada junto ao altar, ou então a pessoa deixa de ir à igreja. Não se pode ir atrás destes compromissos e então, nem sempre é fácil.

Numa entrevista recente, o Papa Francisco falou sobre os artistas. Qual a sua opinião sobre o discurso?

Sim, foi na Capela Sistina, onde fez um encontro com 200 artistas. Esteve também o Cardeal Tolentino. O Papa lançou um desafio: os artistas têm de incomodar. Têm de revelar aquela beleza que é verdadeira, além das aparências, que não é cosmética. Por norma, aquilo que se vende e que as pessoas aderem muito, é aquela beleza postiça muito ligada ao consumismo. Por exemplo, aquelas imagens pré-fabricadas e chorosas. Adere-se muito a este imediatismo sentimental. Mas o Papa diz que é uma beleza que já nasce morta. Não é a beleza viva que os artistas propõem. Ele diz que os artistas são como crianças e videntes. Crianças, não é para levar no sentido negativo, mas porque são aqueles que inventam, que criam, que fazem sempre ver a novidade. Videntes porque vão muito além do tempo, veem muito para lá da realidade e, portanto, abrem portas de futuro que os outros não veem. E ao mesmo tempo dizem aquilo que tem de ser dito sobre o que não está bem.

Isso inclui também os artistas que intervêm nas igrejas?

Claro. O Papa Francisco liga muito os artistas à arte sacra. Diz que a Igreja sempre teve um compromisso com a arte. Não só ao longo da história, mas também a nível conceptual. Por um lado, porque a Igreja era (e é) uma instituição importante e, de certa forma, queria fazer ver a sua importância através dos artistas. Por outro, porque os artistas são aqueles capazes de expressar o conceito, o conteúdo. Então, ele diz que a arte é como a fé, que desinstala quando é verdadeira e faz ver a humanidade. Faz-te ir ao encontro daquilo que é incómodo e que é preciso resolver. Acho que ele abriu uma fase nova na Igreja. No fundo, também está a ser artista no sentido em que usa a palavra para passar uma ideia que incomoda. É o que está a fazer ao nível da igreja concebida tal como era. Com muita luta.

Como foi o processo de trabalho?

Como disse, nem sempre é possível falar com todas as pessoas, porque muitas vezes estabelecem barreiras e nem querem ser ouvidas sequer. Na fase de projeto, tento sempre que a ideia venha do alto e de dentro. Leio muito, faço um trabalho de estudo muito longo, de meditação, de oração, para que não esteja a trabalhar a partir da forma, mas do conteúdo. A certa altura, sinto que vem a ideia toda completa. Vejo tudo. Mas é um processo de meses, dá muito trabalho. Quando percebi, nesta minha visão intelectual, ou espiritual, pois não sei bem definir, vi um Cristo ressuscitado em que que ele era a luz. É realmente o ponto mais simbólico daquela Ermida. Penso que estamos numa época em que temos de dar visibilidade àquilo que é a luz, aquilo que é o positivo, porque de negativo já temos muito. 

E que mais?

Há uma linha condutora. Quis deixar a marca de toda a Bíblia. Na porta da Ermida, temos os Mistérios do Rosário. São dedicados a Maria, e representam as meditações da vida de Cristo, todas as fases que ele passou, desde a anunciação até à morte e ressurreição. A porta, no fundo representa Maria, porque através dela chegamos a Cristo. Do lado direito, temos o Génesis. Cada painel representa um dos sete dias da criação. Atrás de cada, há um conteúdo, propostas de vida. Por exemplo, cada vez que faço uma escolha positiva, em vez de uma negativa, estou a separar a luz das trevas, digamos. Mas não desvaloriza, pois se não existissem trevas, como é que eu crescia para ver a luz? A arte tem de nos construir na vida! O arco da Assembleia também foi contestado por algumas pessoas, porque escrevi de forma quase invisível com letras de acrílico: Deus fez em mim maravilhas e Santo é o seu nome. É como um pensamento subtil em silêncio, uma oração. Estamos habituados ao contraste, vivemos num registo de agressividade e já não aceitamos coisas delicadas que nos fazem pensar. Depois, entramos na zona do presbitério, que tem um painel de fundo à direita, que representa um pouco a salvação com Abraão e Moisés com as tábuas da lei. Do outro lado, há o sacrário com a presença de Cristo e que representa a Trindade no sol e nas línguas de fogo do Espírito Santo e as espécies (pão e vinho). E, por fim, o Apocalipse de S. João. Gosto de pensar que será quando conseguirmos ganhar consciência de uma nova humanidade.

Esta é também uma linguagem que abre «portas de futuro»?

Quando estava a trabalhar no local, entravam continuamente turistas. Gostavam muito da Ermida, ficavam muito admirados. Os valores são universais e passam sempre ao longo da história. Aí, não se toca, é apenas uma questão de linguagem. Durante o processo trouxe muitos jovens ao meu estúdio para verem o que achavam, para dialogar, porque acho que têm uma palavra a dizer. Quando faço o que quer que seja, penso na projeção de futuro e em deixar portas abertas às novas gerações.

Calcanhar de Aquiles dos artistas

«A vida dos artistas sempre foi muito difícil porque abre horizontes que ninguém quer ver» e muitas vezes, nem pagar, diz Lígia Rodrigues, 61 anos, pintora de formação com uma carreira ligada sobretudo à Igreja. «Em Portugal, a arte é vista como um hobby. Pede-se a um pedreiro para fazer um muro de 20 metros (m) de tijolo e paga-se o que ele pede, porque o trabalho é duro. Acho muito bem. Se me pedirem para fazer o mesmo muro de 20 m da obra de arte, tudo o que eu pedir será muito caro e nunca há dinheiro», aliás, uma afirmação que já faz parte do quotidiano. 

«Desde há 30 anos, é a primeira frase que oiço», lamenta, porque «num edifício onde se quer passar uma mensagem de fé, não é um interior seco que vai dar isso. É a atmosfera e ambiente, através da arte». E, muitas vezes, «não há consciência da quantidade de trabalho» envolvido, desde a fase de projeto até à execução da obra. 

Hoje, «peço sempre um x no início do processo. Mesmo que seja pouco. Assim existe uma responsabilidade e uma consciência adulta de que se trata de trabalho. Se não houver isso, não faço, porque mereço respeito enquanto pessoa que investiu uma vida inteira em formação», diz, embora sublinhe o caso da Ermida de Carvoeiro como exemplar. «Mas esta dificuldade é o calcanhar de Aquiles dos artistas». E não é a única. «A verdade é que estes trabalhos para a Igreja são muito grandes, muito pesados, e quando adjudicados, são sempre para ontem. Levam muito tempo e resta pouco para fazer outros projetos» pessoais. Ainda assim, gostaria de levar o seu trabalho para outros contextos mais laicos e convencionais. No entanto, «as galerias dizem-me que as minhas temáticas religiosas não são consideradas arte contemporânea», afirma. «Então, mas há temas que não podem ser considerados? Será esta uma abordagem contemporânea?». 

Contudo, «é uma posição geral». Lígia Rodrigues lembra que tanto a Bíblia, como em outras escrituras sagradas, «há questões de fundo do ser humano, com milhares de anos», muitas ainda por resolver. «Excluí-las dos conteúdos artísticos, se calhar, é um pouco anti-arte»…

Envolver os jovens em «Passos de Luz entre a Terra e o Céu»

A obra de remodelação da Ermida de Nossa Senhora da Encarnação, em Carvoeiro, vai ser inaugurada no sábado, dia 22 de julho, numa iniciativa coletiva que tem por título «Passos de Luz entre a Terra e o Céu», um título sugerido por jovens do ensino secundário que se envolveram na preparação da inauguração.

Concluída em outubro de 2020, a obra não foi formalmente inaugurada devido à pandemia de COVID-19, embora o momento tenha estado para acontecer em 2018. 

«Tenho uma colega que é professora de Artes que traz muitas vezes os alunos ao meu estúdio em São Brás de Alportel. Uma turma do Liceu de Faro viu a preparação dos painéis sobre o Apocalipse e interessaram-se. Perguntei-lhes se gostariam de se envolver na inauguração e tomaram a construção do programa e a sua divulgação como projeto» de âmbito escolar. Esteve também envolvida uma turma da Escola Secundária Tomás Cabreira.

Apesar de não se ter realizado, Lígia Rodrigues e a equipa que a tem acompanhado, não deixaram cair a vontade de envolver as novas gerações e procuraram novos protagonistas, neste caso, a Soul Band (da Filarmónica de Faro), Tiago Neves, Laura Pereira, Miguel Zeferino, Catarina Martins, entre outros convidados. A ação incluirá dois momentos: uma eucaristia, às 20h30, presidida pelo Bispo do Algarve, D. Manuel Neto Quintas e um evento musical, às 21h30, no anfiteatro ao lado da Ermida.

Episódios da Bíblia à beira-mar 

A artista plástica Lígia Rodrigues, natural do Porto, mas radicada no Algarve desde 1999, é a responsável pela conceptualização e execução do projeto de renovação do espaço da Ermida de Nossa Senhora da Encarnação, que fica no alto de uma falésia em frente ao Atlântico. Um trabalho que demorou 11 anos. Segundo a Diocese do Algarve, o templo foi construído após o terramoto de de 1755, a partir da Ermida primitiva, que se situava no centro da praça de armas da Fortaleza, cuja lápide de edificação data de 1670. Segundo o historiador João Vasco Reis, «salvou-se a imagem de Nossa Senhora da Encarnação» (que hoje ocupa lugar central no espaço) e o arco talhado em pedra, no presbitério. «Se não dermos beleza a um lugar de oração, não conseguimos rezar», salienta o Padre José Nunes, ex-Pároco de Lagoa e Carvoeiro.

Os quadros verticais, que elevam o olhar e o pensamento do observador, são interrompidos apenas pelo rasgo retangular das janelas, cujos vitrais foram concebidos para complementar a narração bíblica. O mobiliário também foi desenhado por Lígia Rodrigues, tendo sido feitas outras alterações ao espaço, nivelando a área central, colocando nova iluminação e alterando os tetos.

Portugal tem uma «Consciência de base depressiva»

Lígia Rodrigues viveu até aos 14 anos na África do Sul, Moçambique, Zimbabwe, onde conheceu outras culturas e também outros povos. Diagnostica, em Portugal, uma «consciência de base depressiva» ao nível da mentalidade. «Uma coisa que teve muita força e que ainda nos influencia no inconsciente coletivo» considera, «tem a ver, em parte, com o romantismo do século XIX. A questão de pôr em relevo o sofrimento, o fado. Somos um povo que deveria ser dos mais alegres do mundo e somos dos mais deprimidos. Temos o sol, estamos numa posição estratégica brilhante, estamos a ser invadidos pelos povos todos, mas não percebemos a beleza do nosso país. São razões de viver o que nos falta», ou seja, «continua-se a repetir as canções do passado, sem consciência do que se está a dizer». Depois do romantismo, veio a ditadura, embora «vejo os nossos vizinhos espanhóis que também tiveram ditadura. São gente de garra que luta pelas coisas, aquilo não fica tudo na mesma. Saem, vão para as explanadas e discutem as coisas da vida. Nós não. Vamos ver a telenovela e o jogo de futebol. Não nos questionamos a nós próprios. Não temos aquela garra de perceber que estamos no mundo e que temos de o deixar diferente. E que essa responsabilidade também é nossa».

Fotos da Ermida gentilmente cedidas por Samuel Mendonça/ Folha de Domingo.