Na primeira entrevista que concede, redentora e sem rodeios, o ex-diretor geral da empresa municipal Portimão Urbis fala sobre as consequências do processo da cidade do cinema na vida pessoal e familiar. Mas mais do que olhar para trás, Lélio de Sousa Branca deixa o caminho aberto para um futuro político.
barlavento: Achou que era altura de falar. Porquê só agora?
Lélio Sousa Branca: Porque finalmente, em relação a todos os que se viram envolvidos neste processo, começa a haver um esclarecimento cabal de tudo. Posso dizer que autoinfligi-me ao silêncio porque entendi que não valia a pena falar enquanto ainda havia pessoas a responder. Desde o momento que o julgamento do Dr. Luís Carito termina, e em que o Ministério Público pede a absolvição de todos os arguidos em todos os crimes, a partir daí, ainda que aguardando pela sentença, está-se a demonstrar aquilo que sempre disse. Nada havia para provocar toda aquela celeuma que foi criada em 2013. E porque acredito que dei muito de mim, quer à vida pública, quer à cidade de Portimão, entendi que deveria deixar as coisas caminhar tranquilamente, e agora, posso falar.
Que tem para dizer?
Essencialmente, não é tanto falar na questão da política, mas muito mais naquilo que são as consequências que um processo deste género traz às pessoas que foram envolvidas. Ou seja, aquilo que passei ao longo de seis anos, até janeiro de 2017, quando saiu o despacho de arquivamento e onde nem acusado fui. Claro que isso pouco importava porque o julgamento na praça pública estava feito. E esse foi feito entre 19 e 21 de junho de 2013 porque ninguém cuidou de manter intactos os direitos, até à minha imagem. Portanto, uma vez que as coisas estão no caminho da normalidade e da normalização, acho que chega a altura de poder falar sobre estes seis anos, que parte da minha vida esteve em stand by. Quem me conhece sabe que a política faz parte de mim, da minha maneira de estar e de ser. Eu comecei a ter atividade política, nem foi por influência familiar. Foi por mim, tinha 14 anos. Quando com 45 anos isto aconteceu, independentemente da situação toda por que passei, pareceu que todo o meu mundo se desmoronava. Era a questão política, a questão pessoal do relacionamento com algumas pessoas que ficava irremediavelmente posta em causa, e também a questão de algum sofrimento que senti que infligi nas pessoas que me eram mais queridas.
Como assim?
Não posso deixar de referir passados seis anos o meu pai, que faleceu um mês e meio depois disto, de uma forma prematura face aquilo que era expectável.
Teve oportunidade de conversar com o seu pai?
Isto acontece em meados de junho e o meu pai morre repentinamente a 5 de agosto. Conversei. Aliás tinha conversado com ele antes até disto acontecer. Repare, que tudo o que se passou não é mais do que o materializar de um conjunto de «bocas» que corriam na cidade. O meu pai, era uma pessoa cujo nome eu tenho, acima de tudo, de honrar, na altura, dizia-me para ir embora. Depois de isto acontecer, o meu pai fez aquela frase, como todos os pais fazem: «eu bem te disse». Ainda tivemos um mês e meio a conversar, a escalpelizar tudo o que se passou. O meu pai partiu tranquilo em relação à honestidade e à verticalidade do filho, não tenho a menor dúvida. Mas partiu com alguma tristeza de ter sido empurrado para a praça pública da forma como foi. E também não posso deixar de recordar como no sábado, dia 22 de junho de 2013, me sentei à mesa com os meus filhos que tinham ido para a escola, tinham tido treino de futebol e tinham contactado com outras pessoas abertamente. Hoje tenho de agradecer aos educadores que os acompanharam naqueles dias. Foram muito protegidos e facilitaram muito o meu papel de pai. Mas, independentemente disso, não posso esquecer que o mais velho tinha 10 anos.
Foram dias complicados…
Mas foram também dias em que eu senti a tranquilidade de ter a consciência tranquila. Eu sei o que fiz e o que não fiz. Não tenho nada que esconder. Sempre disse que se alguém fez aquilo que não devia, que se apurasse tudo o que houvesse para apurar. Entendia que dificilmente aquilo que estava em cima da mesa podia ser verdade. Mas eu sou humano. Posso falhar. Enfim, há tantas variáveis que poderiam fazer com que fosse ingénuo ou enganado. Mas sempre disse que não acreditava. Felizmente, hoje estou de peito cheio. Não me enganei em relação aos factos, não me enganei quanto às pessoas. E isto teve uma coisa muito boa. Por um lado, eu consegui separar o trigo do joio. Costuma-se dizer que o dinheiro atrai amigos e que a falta dele os afasta. Outra foi ter a noção de mim próprio e da superação. Sei quem sou, o que fiz e para onde vou.
Que fez nestes últimos anos?
Regressei de imediato à minha função de inspetor da Segurança Social, onde estou, e onde fui muitíssimo bem recebido. Tenho feito trabalho de campo, de inspeção dos equipamentos sociais do Algarve. E tem sido bom. Esta profissão ajudou-me muito porque não me fechou em quatro paredes, nem atrás de um computador. Obrigou-me a ir para a rua, a contactar com pessoas diferentes, umas que já me conheciam, outras que não.
Olhando para trás, chegamos ao final deste processo que resulta em quê?
Em nada. Deveria ter corrido de outra forma. Resulta em vidas prejudicadas, em carreiras suspensas, enfim, resulta num conjunto de considerações negativas. Tudo poderia ter sido resumido à fase de inquérito. Não tinha sido necessário todo aquele aparato. Mais, no meu caso concreto, todos nós sabíamos que a empresa Portimão Urbis estava sob investigação. Enquanto diretor geral da empresa, por diversas vezes fui convidado a ceder documentos à investigação. Eu entrei na empresa, salvo erro, a 6 de novembro de 2009. Em dezembro de 2010, recebo um telefonema a informar que a Polícia Judiciária estava na empresa a fazer buscas. Saí de casa, que era relativamente perto, conversei com os inspetores e pedi os documentos solicitados. Sempre foi essa a minha postura. Grande parte daquilo que se passava era anterior à minha chegada à empresa.

Alguma vez deu por alguma coisa estranha?
A única coisa que posso dizer, é que a empresa, naquele momento, face à crise financeira, estava num sufoco financeiro brutal. E manteve-se. Agora dizer se vi coisas estranhas, no sentido que pudessem apontar… claro que não. Eu fui durante vários mandatos membro da Assembleia Municipal de Portimão, passei a candidato à Câmara, não fui eleito e não era expectável que fosse. Fui convidado pelo presidente Manuel da Luz para exercer funções de direção geral. Era coordenador, diretor dos serviços de inspeção da Segurança Social. Não havia nada. O que não consigo perceber é como é que hoje se pede a absolvição por inexistências de provas, mas em 2013 havia indícios fortíssimos para haver mandatos de detenção. Há aqui qualquer coisa que mudou, ou a interpretação foi mal feita a determinada altura, ou outra…
Ou outra?
Há uma pergunta que me costuma ser feita, que é e agora? Metemos uma pedra em cima disto como se nada fosse? É assim. Deixe chegar o dia 30 de janeiro, deixe o processo morrer completamente e depois será altura de juntar os corpos às almas e ver o que é que há de ressarcimentos a fazer.
Isso resolve alguma coisa?
Não. Isto é passado. Vingança, não. As atitudes ficam para quem as praticou, se é que houve atitudes de reparo. Quando falo em ressarcimentos, quero dizer que é preciso avaliar o processo todo, desde o princípio até ao fim.
Foi constituído arguido…
Sim, no dia 19 de junho de 2013 e fui arguido até ao dia 30 de janeiro de 2017. Mas isso não me dói. Houve um amigo meu, colega, que me disse, «tenho de te cumprimentar, eras um dos poucos políticos que estava na vida ativa que ainda não tinha sido constituído arguido. Agora já estás como os outros». O que a mim me aborrece foi a lentidão que demorou estes três anos e meio para deixar de ser arguido e a publicitação que foi dada naqueles dias de junho e julho de 2013, com abertura de telejornais. Houve uma reportagem num jornal nacional sobre o processo, em que a única verdade que lá vinha era o meu nome. Era a única coisa que estava certa. Nem as funções que eu exercia na empresa estavam corretas!
O episódio da prova, supostamente engolida, entrou no anedotário nacional na altura…
O Dr. Luís Carito já falou sobre isso em julgamento. Comparemos o verão de 2011 e de 2012, a publicidade que Portimão teve na altura, em época de crise, com os anos seguintes. Nós andámos a lutar pela promoção do nome da cidade de Portimão, e de repente entra no anedotário nacional. Isso tem um custo, obviamente. A imagem que esta região tinha capitalizada na imagem desta cidade. E de um momento para o outro, esfuma-se. Mas no dia 30 de janeiro, muita coisa se vai tentar deslindar.
Por exemplo?
Vou ter acesso ao processo, como qualquer pessoa, é público não está em segredo de justiça. E ainda que estivesse, no dia 30 vai deixar de estar. A questão não é apenas o processo. A questão foram os mecanismos, chamemos-lhe assim, que envolveram todo este período. Eu senti muita solidariedade pessoal e política de muita gente. Mas não senti por parte de algumas pessoas que eu acho que do ponto de vista não pessoal, tinham obrigação de a ter prestado. E algumas não prestaram. No dia 30 de janeiro de 2017 sou acordado às 7 da manhã por uma pessoa amiga, que me diz «parabéns, está a passar em rodapé na TVI que não foste acusado» no processo. Ligo a televisão e lá está a notícia. Nesse dia, o meu telefone parecia que tinha ganho vida outra vez. Só que aí fui eu escolhi quem é que atendia. Da mesma forma que hoje atendo mais seletivamente. Dou-me com toda a gente. Tenho uma característica desde o inicio da minha atividade política. Tanto tenho amigos do atual Bloco de Esquerda até ao CDS. Amigos que vêm desde o tempo da guerra das propinas em 1992. Não fiquei sentado nos bancos, muito embora estivesse numa Universidade particular. Levei com o cacetete no lombo naquela célebre manifestação à porta da Assembleia da República. Isso fez-me ter muitos amigos.
Disse que sabe para onde vai. Que vai fazer?
Do ponto de vista pessoal, vou dar fogo à peça, no sentido de me voltar a colocar naquilo que é o lugar que tenho direito. Tenho plena consciência das minhas capacidades e acabou o período de nojo. Agora vou à luta. Posso ficar onde estou, se for uma opção pessoal e familiar, ficarei. Se for ir mais além, vou lutar com as armas todas que tenho. E deixo de ter handicaps.
Desde 2017 que não os tem…
Pois não.
Considera o regresso à vida pública?
Eu não excluo absolutamente nada. Mas considero a possibilidade de esclarecer perante toda a gente aquilo que se passou, e não serei só eu. Voltar à vida pública, não digo que não. Mas voltar à vida político-partidária local, autárquica, não. Não digo que não possa acontecer, mas que isso seja o meu desejo e ambição, não. A água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte e não se deve voltar a lugares onde já se foi feliz. Neste momento, a resposta que dou hoje, dia 15 de novembro, é que não está nos meus horizontes imediatos pensar em voltar à vida política e pública em Portimão. Voltar à vida partidária, talvez, mas provavelmente, se isso acontecer, noutro âmbito.
Mas continua a ser militante?
Sim. Paguei o mês passado as cotas de todo o período de 2013 para cá. Deixei tudo em suspenso. Eu autoinfligi-me um afastamento total em termos partidários.
Nunca ninguém o tentou demover dessa postura ou trazê-lo de volta ao ativo?
Tentaram. Algumas pessoas tentaram. Aliás, recentemente, bastantes pessoas tudo têm feito. Só que também o meu tempo não é o tempo dos interesses, se é que estou a ser devidamente explícito. Agora, está um sol maravilhoso, Portimão é uma cidade linda.
Quando o Dr. Manuel da Luz o convidou para a Portimão Urbis, nada fazia prever o que aconteceu?
Eu não fui convidado para a Portimão Urbis SG RU. Eu fui convidado para a Portimão Urbis SGU. Fui convidado para uma sociedade de reabilitação urbana. Dias após eu ter entrado sou chamado ao gabinete do conselho de administração onde me é dito: vamos fundir o sector empresarial todo e contamos contigo para ficares à frente de. Ou seja, deixo de ter um universo de 10 ou 15 trabalhadores que eram eminentemente técnicos ou técnicos superiores e passo a ter 100 que vão desde o empregado da limpeza até o doutorado. Não, não era expectável, até porque havia a Portimão Turis que era quem tinha o processo da Cidade do Cinema, dos eventos e da promoção. Era algo que não me passava pela cabeça.
Cidade do Cinema era «bom projeto»
Lélio de Sousa Branca veio viver para Portimão com três anos, em 1970. Na altura, o pai tinha vindo fazer uma comissão de serviço de seis meses que se transformou numa vida. Não esconde por isso, uma grande relação afetiva com a cidade. Questionado sobre o cluster do cinema, o ex-diretor geral da Portimão Urbis ainda acredita que teria sido positivo. «É um projeto que tenho muita pena que tenha parado. Hoje continuo a dizer isto. E a prova que não estou completamente errado é que se está a tentar fazer um projeto semelhante em Loulé, noutros moldes», justifica.
«Os tempos são outros e é preciso não esquecer que o projeto foi lançado em plena época de crescimento. E quando começa a ficar mais apertado, digamos assim, é quando entra a crise. Para explicar de uma forma não técnica, havia investimento já feito em estudos e pareceres. Entretanto, começa a crise e tudo aquilo não poderia entrar logo para o terreno», recorda.
Assim, «havia que fazer o suficiente e necessário para manter o projeto vivo para que noutra altura, ou com investimento privado, e que era o que se estava à procura, se pudesse avançar». Não aconteceu. «Portimão não seria aquilo que é, se esse projeto tivesse conseguido vingar. Não estou a dizer que aquele era o modelo perfeito. Se tivéssemos conseguido canalizar todas as sinergias que estavam a ser montadas para Portimão subcapital do Algarve, obviamente que haveria um crescimento económico brutal nesta região, e se calhar em todo o Algarve. É que num raio muito pequeno, poderíamos fazer filmes de tudo. O projeto de fazer aqui um polo do audiovisual teria sido bom. E é o que está a ser feito em Loulé», conclui.
Leitura da sentença agendada para 30 de janeiro
O Ministério Público pediu ao Tribunal de Portimão, a 17 de outubro, por falta de provas, a absolvição dos 10 arguidos acusados no âmbito do processo Cidade do Cinema, entre os quais o antigo vice-presidente da Câmara de Portimão Luís Carito. Os arguidos estão acusados de burla qualificada e participação económica em negócios que teriam lesado o Estado em 4,6 milhões de euros através das empresas municipais Portimão Urbis e Portimão Turis, em contratos ligados ao projeto da Cidade do Cinema. Luís Carito está também indiciado por subtração de documento, por ter tirado um papel das mãos de um inspetor da PJ durante as buscas e metido na boca. A sentença deste processo vai ser proferida no dia 30 de janeiro, um ano após o início do julgamento e para já sabe-se «não haver provas de que os arguidos tenham atuado de forma concertada, prejudicado a Portimão Urbis ou obtido benefícios próprios em resultado dos contratos».