Lei ambiental espanhola mantém viva tradição algarvia do alcatruz

  • Print Icon

Os alcatruzes sintéticos e as armadilhas (gaiolas ou covos) de ferro e polipropileno dominam hoje a pesca do polvo. Há muito que o barro caiu em desuso nesta faina. E aos poucos, desapareceram também os oleiros. Mas na vizinha Andaluzia, uma lei ambiental proíbe o uso de plásticos. É nos portos fronteiriços de Espanha que o oleiro Armando Anica Martins, 51 anos, de Estoi, vende e mantém vivo um objeto que por cá, já ninguém dá uso – o alcatruz de barro.

São 8h25 da manhã de sábado, em Isla Cristina, Andaluzia. Com a destreza de muitas viagens, Armando Martins estaciona, de marcha atrás, a carrinha de caixa aberta, à porta de um armazém na Calle Diego Perez Mila, a dois passos do porto de pesca. Traz 800 alcatruzes ainda a cheirar ao forno de lenha, onde acabaram de cozer, a 70 quilómetros dali.

À sua espera estão os homens de Manuel Jesus Yaque, armador que se prepara para o final do período do defeso do polvo, marcado para 15 de junho. Nos dias que correm, o mestre oleiro de Estoi já só quase trabalha para os pescadores andaluzes.

«No sul de Espanha, por questões ambientais, os alcatruzes de plástico estão proibidos, e só muito recentemente começaram a surgir os covos», isto é, as gaiolas feitas com rede de polipropileno, nas quais é colocado um isco (cavala ou carapau) para atrair o polvo. Neste porto, são cada vez mais as embarcações com licenças para 500 covos, que se empilham em terra, ganhando terreno às artes de barro.

«É verdade que também aqui existem alcatruzes de barro de fabrico industrial, mas muitos pescadores continuam a preferir os meus», pela textura áspera que se adapta melhor aos fundos arenosos das águas andaluzas. Os homens do mar dizem ainda que o polvo prefere o alcatruz tradicional, argiloso, talvez por ser mais orgânico e parecido com um abrigo natural.

Ainda assim, a concorrência das artes produzidas em série obrigou o oleiro de Estoi a baixar o preço. Em Portugal, o aparecimento de alcatruzes de plástico, mais baratos e duráveis, praticamente levou à extinção desta arte. «É por isso que no Algarve quase ninguém sabe que eu ainda estou a trabalhar», explica ao «barlavento».

O pescador Manuel Jesus Yaque armazena alcatruzes algarvios no seu armazém perto do porto de Isla Cristina.

Armando Martins tem ainda a vantagem de poder fazer tudo «à medida. Eu faço alcatruzes pequenos, médios e grandes, consoante o que me pedem, de acordo com o tamanho dos polvos que há no mar. Em Espanha há muitos períodos de defeso e, por isso, os polvos são maiores, têm mais tempo para crescer», revela.

No outro lado da fronteira só é legal pescar polvo no mínimo com um quilo, enquanto que em Portugal, o limite são 750 gramas. Por outro lado, os alcatruzes artesanais podem ser personalizados com as iniciais do dono, ou da embarcação.

Aos sábados de madrugada, Armando Martins agarra-se ao volante da sua Dyna, atravessa a fronteira e conduz até Ayamonte, Isla Canela, Isla Cristina, Lepe ou até mesmo Punta Umbria para fazer a entrega da produção semanal.

No regresso, há mais encomendas, por vezes calendarizadas com meses de antecedência. Nesta viagem, por exemplo, um cliente novo, recomendado por Miguel (outro freguês habitual da sua confiança), pediu mais umas centenas de alcatruzes algarvios para novembro. Em agosto também já tem pescadores à espera de material.

Armando Martins, além de oleiro, gosta de negociar e de lidar com os homens do mar do país vizinho. Não se esqueceu de lhes levar uma caixa de laranjas algarvias, bem doces, colhidas no pomar que tem em casa.
À sua espera, em jeito de gratidão, também tinha uma caixa de biqueirão, fresco, em gelo, oferecida entre sorrisos. Dito assim, parece uma vida fácil. Além de todo o desgaste físico, nem sempre as encomendas são pagas na hora, na entrega. Às vezes, a cobrança só é feita depois da temporada de pesca. Mas isso não afeta a dignidade empresário-oleiro que sublinha: «a mim, a pior coisa que me podem perguntar é se quero fazer alcatruzes para pôr flores. Nunca! Sempre foram para os polvos e não é comigo que vão mudar!»

Uma tradição a desaparecer

Antigamente, cada oleiro tinha um cunho pessoal. Uma maneira de trabalhar a roda. Um toque na forma de fazer o bojo e a boca de cada «panela», como chamam aos alcatruzes nalgumas partes do Algarve. Um destes dias, Armando Martins foi entregar uma encomenda à Praia da Salema, pois ainda há uma minoria de pescadores que resiste ao plástico.

«Veja lá que eles tinham ido ao mar, e numa das redes veio um alcatruz antigo. Reconheci-o logo. Tinha sido feito por um mestre de Loulé, há mais de 30 anos, para Monte Gordo. Andou todos estes anos pelos fundos, arrastado pelas correntes. E não se partiu!», exclama.

A memória de um saber, dos homens e dos costumes, e até de uma região, são valores caros a Armando Martins, mestre da «Nova Olaria de Estoi». Um nome curioso, tendo em conta que é herança de três gerações de uma mesma família. Já ali trabalhou o pai, e o avô, este último de Loulé e conhecido como «Ti Zé Sete Línguas». O método de trabalho segue os processos tradicionais. As argilas de tonalidades verdes e avermelhadas são recolhidas em vários barreiros do Algarve. São transportadas em bruto para a oficina, onde são trituradas, misturadas e transformadas em pó. Água e trabalho braçal cria aquilo a que se chama barro, matéria que à saída de uma prensa, ganha a forma de longos «chouriços». São depois cortados e ficam, então, arrumados ao pé da roda-de-oleiro.

Armando Martins tem a prática na ponta dos dedos. Não demora mais de três minutos a dar forma a cada peça. Com este ritmo, ditado pela experiência de uma vida de trabalho, consegue fazer, por semana, um milhar de alcatruzes sozinho, ou, por vezes com a ajuda de outro homem. Para já, não tem aprendizes.

Depois de secarem um ou dois dias, os alcatruzes estão prontos para serem empilhados e cozidos, durante algumas horas. Num passado não muito distante, «eram três oleiros a trabalhar a tempo inteiro e não davam para as encomendas», recorda.

Associações perdem rasto ao barro

Sónia Olim, da Associação de Armadores da Fuzeta (AAPF), confirma que ainda há um par de associados a trabalhar com alcatruzes de barro. «Vão comprá-los a Espanha», esclarece ao «barlavento». Hugo Martins, presidente da direção da Quarpesca – Associação de Armadores e Pescadores de Quarteira, também não saberia onde encontrar esta arte. «Pois, isso é um problema. Durante muitos anos existiram em Loulé várias olarias. Sustentavam muitas famílias. O meu avô chegou a trabalhar numa delas. Desde Vila Real de Santo António a Albufeira havia muita procura de alcatruzes de barro. Era rentável, apesar de ser um trabalho duro. Mas desde que os pescadores se voltaram para o plástico, penso que não há ninguém hoje a trabalhar com barro», afirma. «Não tenho nenhum contacto», e até ao momento, «ninguém mostrou interesse em voltar ao barro». «Eu trabalho com redes e, por vezes, apanhamos um alcatruz desses perdido. Quase sempre tem um polvo dentro. Não me pergunte porquê, mas o polvo gosta, talvez por confundirem o barro com a pedra, onde se escondem no fundo», sublinha. «Muitos pescadores já me têm confidenciado que quando encontram alcatruzes de barro, devolvem-nos ao mar, na esperança de os voltar a apanhar. E há outro pormenor. Como os potes são estreitos em baixo e largos na boca, o polvo maior entra com mais facilidade».

Escassez de isco força regresso ao alcatruz

Os alcatruzes de plástico e sobretudo os covos dominam a pesca do polvo no Algarve. São, de forma sintética, dois tipos de armadilhas muito diferentes. Nos alcatruzes não se utiliza isco e os polvos podem entrar e sair. Nos covos, pelo contrário, é utilizado isco (sardinha, cavala, boga e carapau de menor qualidade) para atrair o polvo. Mas uma vez que entra na gaiola, já não consegue sair. Na prática, isto significa que quando estas artes se perdem no fundo do mar, continuam a ser letais, com prejuízos para o meio ambiente e até para o recurso. Não admira por isso que alguns pescadores e até dirigentes vejam com bons olhos um regresso às artes artesanais do passado. É o caso de Hugo Martins, presidente da direção da Quarpesca – Associação de Armadores e Pescadores de Quarteira. Naquela estrutura, o polvo «é um recurso muito importante». Pelo menos 30 embarcações associadas dedicam-se a esta faina, «sem contar com as de fora que operam na nossa zona. Usam sobretudo covos, embora ultimamente muitos tenham tido uma boa percentagem de sucesso com os alcatruzes e estejam a voltar a utilizá-los». A falta de isco é um constrangimento, tal como confirma Sónia Olim da Associação de Armadores da Fuzeta (AAPF). «A maioria dos nossos associados pesca com covos, é neste momento a arte mais utilizada, embora nos últimos tempos se esteja a assistir a uma inversão devido ao preço do isco que está caro, e muitas vezes não há. As pescas têm sido muito fracas», sublinha.

Alcatruzes de fabrico industrial. Mais baratos, mas menos eficazes, segundo os pescadores de Isla Cristina.

«Este ano, parece que o alcatruz começou a ser mais rentável. Como sabemos há dificuldades, a cavala e o carapau não está na nossa costa e os pescadores começaram a procurar formas alternativas», diz Hugo Martins, considerando que a sua zona «está um pouco congestionada com covos».

Por outro lado, Miguel Cardoso, dirigente da Organização de Produtores de Pescado – Olhãopesca, também confirma que a maioria dos associados que se dedicam à pesca do polvo utilizam gaiolas. «Uma grande fatia dos armadores está a substitui-los por alcatruzes de plástico. A razão deve-se ao facto de ser uma arte mais económica. Há cerca de dois/três anos tem havido uma escassez de cavala. De forma geral, há uma grande falta de isco. Por outro lado, a gaiola também é dispendiosa, dá muito trabalho e mão-de-obra».

Um mar de plástico e gaiolas

Segundo Sónia Olim, bióloga e ex-investigadora na Universidade do Algarve, a substituição dos alcatruzes de barro pelos de plástico «é uma coisa de 15 a 18 anos». Na sua opinião, a lei ambiental em vigor no sul da Andaluzia «faz sentido». «Porque isto é uma arte que se perde muito e depois fica no fundo do mar a fazer estragos. Já o barro acaba por partir, e como é um material natural, permite uma nova colonização, os microrganismos conseguem fixar-se com facilidade. O plástico não é biodegradável e pode ser tóxico ao nível da composição química. Só provoca poluição», sublinha.
Questionada sobre a realidade da AAPF, onde trabalha, diz não ter números. Os poucos que usam alcatruzes de plástico «trabalham de acordo com o que a legislação permite, entre os 700 e os 1500 por embarcação. Se estiver mau tempo, se se perderem ou se forem roubados, têm de estar sempre a encomendá-los», esclarece. Por outro lado, Hugo Martins, da Quarpesca, diz que «temos alguns associados que numa reunião recente abordaram esta problemática e manifestaram-se a favor do regresso ao barro». «Embora seja mais frágil, os pescadores não são contra». Questionado sobre a legislação andaluza, o dirigente diz que «eu até seria a favor» de um quadro semelhante na região e no país. «Quando há temporais, perdem-se muitos alcatruzes e sabemos que tudo o que é plástico contribui para piorar a poluição que já existe», admite.
Miguel Cardoso, dirigente da Organização de Produtores de Pescado – Olhãopesca considera que «muito mais grave é a gaiola. Tem plástico e ferro que oxida, e é muito preocupante. O alcatruz de plástico, por norma, só captura polvo médio ou de tamanho considerável. Não é tão predador como a gaiola. Se um armador perder uma teia de 30 ou 40 covos, aquilo vai continuar sempre a matar no fundo. Um barco que tenha o azar de perder uma teia de alcatruzes plásticos, não é grave porque o polvo acaba por conseguir entrar e sair livremente. Acaba por servir de recife artificial, e contribuir para a criação e fixação de espécies», opina.

Não houve debate sobre o plástico

Um alcatruz de plástico com cimento (para fazer lastro, de forma a que não flutue) custa entre 1,20 ou 1,50 euros (0,80 euros simples). «É barato e durável», diz Sónia Olim que nos seus tempos de investigadora, chegou a testar um modelo artificial, mais amigo do ambiente, e com a forma tradicional do alcatruz de barro. A experiência foi inconclusiva e também não se recorda de ter visto estas questões discutidas no meio académico, nem no sector.. Miguel Cardoso, dirigente da Organização de Produtores de Pescado – Olhãopesca, também confirma ao «barlavento» que «não houve nenhum debate, nem estudo de impacte ambiental. Foi uma coisa que aconteceu de forma espontânea. Apareceu essa solução no mercado e os armadores observaram que o plástico seria mais vantajoso». «Isto tem tudo a ver com dinâmicas empresariais, com otimizar a rentabilidade e minimizar o prejuízo. Vivemos num mundo diferente. Uma grande parte da pesca costeira hoje já não é aquela coisa artesanal do passado. Isso ainda existe, mas a tendência é a industrialização. Um barco de pesca local tem despesas de produção consideráveis, e claro que as empresas têm de ser rentáveis. Esta questão do barro e do plástico passa muito por aí. Tem tudo a ver com uma visão empreendedora». No entanto, o dirigente alerta para a recente «massificação na utilização de gaiolas. O mar está carregado destas armadilhas e começam a levantar-se questões ambientais». Para já, a questão dos covos não estão em cima da mesa. «Há um segmento da frota que se queixa, e houve muitos barcos de redes de emalhar e de tresmalho que não conseguiam trabalhar porque as artes entravam em conflito umas com as outras». No futuro, «não acredito que caiam em desuso, mas penso que as gaiolas não serão utilizadas com tanta frequência e volume», conclui. O «barlavento» tentou, sem sucesso, ouvir a opinião do CCMAR e também da associação ambientalista QUERCUS, sobre estas questões.