Lavrar o Mira e a Lagoa faz uma vénia à presença do oriente

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Depois de cinco anos a Lavrar o Mar entre Monchique e Aljezur, surge agora um novo projeto que sobe do Algarve serrano e atlântico para o Alentejo litoral. Entre estufas de plástico que invadem o território, Madalena Victorino, Giacomo Scalisi e convidados vão ao encontro das culturas hindu, nepalesa e sikh. Objetivo é criar uma ponte que ainda não existe.

A programação do Lavrar o Mar já está na estrada. «A Grande Errância – Malabarismo Poético» é uma experiência no território que arrancou em Monchique no sábado, dia 9 de outubro e passará por Aljezur, Odemira até à grande chegada em Santiago do Cacém, no final deste mês.

Segundo o programador Giacomo Scalisi, «é uma aventura criativa pelo território» ,pelos malabaristas do francês Collectif Protocole e os seus convidados.

«Dormem numa autocaravana e durante o dia caminham a pé», registando tudo em tempo real numa plataforma digital aberta ao público que queira acompanhar.

«Eu diria que a nossa programação tem esta componente de aproximação à terra e às pessoas. Por vezes, durante a errância, poderão encontrar um simples lavrador para quem podem fazer um encontro de malabarismo para uma só pessoa que interrompe o trabalho com a enxada e se encontra com um artista. Estamos cada vez mais interessados nesse encontro muito próximo e significativo, não só nas aldeias e vilas mas também nos lugares onde há poucas pessoas. O périplo dos Collectif Protocole tem essa capacidade de as intercetar, de as fazer sorrir, fazer pensar e fazer acreditar que as artes podem ser algo que pode conviver com as suas vidas», descreve Madalena Victorino.

Mais a norte, já em terras alentejanas, está a germinar o novo Lavrar o Mira e a Lagoa, que tem pontos de contacto com o Lavrar o Mar na programação, onde a coreógrafa Madalena foi encontrar uma paisagem humana e social diferente daquela que tinha trabalhado no Lavrar o Mar.

Madalena Victorino e Giacomo Scalisi. Foto: Nuno de Santos Loureiro.

«Sim. Exatamente. No Lavrar o Mar temos estado em contacto com a cultura rural portuguesa e com muitas pessoas estrangeiras mas que são todas europeias. Aqui temos encontrado pessoas sobretudo de países como o Nepal, Bangladesh e Índia, algumas com uma cultura erudita que têm muito para nos ensinar e para contar, mas a maioria é uma população da classe trabalhadora com um sentido prático e terreno da vida que procura melhores condições para si e para a sua família».

«Têm o sonho de viver condignamente, o que nos seus países natais está a ser muito difícil pela pobreza extrema em que, de alguma forma, esses países atiram as suas populações. É uma coisa muito simples, essa vontade de aqui poderem realizar um sonho, de serem felizes, terem uma casa, educar os filhos, um trabalho digno e poderem viver em família de forma harmoniosa», descreve.

Este é um projeto com um prazo de anos e soma já seis meses de laboratórios artísticos que tiveram lugar entre janeiro e julho, «junto das escolas, com trabalhadores das estufas, com pessoas adultas que nos vamos encontrando a aprender português numa escola noturna, nos cafés, e restaurantes indianos, pelas ruas e nas lojas, e que vamos convidando a criar connosco uma experiência que possa ter como objetivo a aproximação entre povos, povos orientais e povos ocidentais, pois há muitos estrangeiros europeus aqui».

A questão é: «como é que, através deste nosso projeto, o oriente e ocidente podem ganhar uma possibilidade, uma real possibilidade de encontro?».

Foto: Pavel Tavares.

«Bowing» um encontro de culturas

A possibilidade já tem título e chama-se «Bowing», do verbo inglês «(to) bow», isto é «inclinar-se perante o outro para o cumprimentar, que é a forma como as culturas asiáticas fazem para se cumprimentar. E refere-se também à inclinação necessária para chegar à terra para a trabalhar, e para dela retirar os seus frutos. Bowing é também uma curva que existe na história da dança contemporânea, quando no século XX há uma viragem da dança ocidental clássica para uma dança ocidental experimental à procura de falar sobre a condição humana. E também as curvas das estufas que são as catedrais de plástico que vieram invadir este Parque Natural do Sudoeste Alentejano e que de alguma forma estão a transformar por completo este território. Portanto, a curva é aquilo que une todo o projeto», revela Madalena Victorino.

Em «Bowing» «propomo-nos, de setembro a novembro, a construir um objeto performativo que tem por base aquilo que se descobriu durante os laboratórios que foram construídos com uma equipa coordenada por mim e que tem a Inês Melo na dança, o Pavel Tavares na imagem e no vídeo e a Matilde Real na palavra e no pensamento, equipa à qual se vem juntar o músico Junior (Terrakota). Estas quatro disciplinas vão cruzar-se nestes dois últimos meses com uma equipa acrescida de duas bailarinas, Natalia Li, da Polónia, e Thais Julià, que vem de Barcelona, e que junta ainda o músico Márcio Pinto e Marc Planells, especialista em música oriental».

«Com eles vamos construir este objeto performativo que vai percorrer a vila de São Teotónio para mostrar o Oriente que respira dentro deste Alentejo», explica Victorino.

Bowing Satya. Foto: Pavel Tavares.

O processo, contudo, tem sido «muito complexo. Há uma problemática forte com o trabalho. As pessoas estão muito cansadas e não têm nenhum tempo livre disponível. Quando compreendem que lhe pedimos pouco tempo e que connosco vivem um momento muito interessante de saída desse quotidiano muito pesado, aderem. Depois há o problema das línguas, de não perceberem bem o que pretendemos. Por outro lado, há as clivagens das castas. Há as autorizações que as mulheres, na cultura hindu e sikh, têm de pedir aos maridos para participar. Há muitas regras, muita dificuldade de ambas as partes em nos entendermos. Mas há de facto magnetismo».

Onde tudo é mais fácil é dentro das escolas. «Temos muitas crianças e jovens, sobretudo pré-adolescentes e adolescentes com quem trabalhámos ao longo do ano. Temos a ajuda dos diretores dos Agrupamentos de Odemira e São Teotónio para podermos estar com estes alunos. Acolheram-nos dentro da vida escolar. Agora são nossos amigos e dizem que este projeto é a coisa mais importante que lhes aconteceu», revela Madalena Victorino.

A estreia está marcada para sexta-feira, dia 12 de novembro às 19 horas, com as badaladas da Igreja Matriz de São Teotónio a marcar o início. Repete dias 13 e 14.

Hospitalidade, gravidade e incompreensão

«Bowing» será «um percurso com várias estações onde as palavras que conduzem este espetáculo são a hospitalidade, a gravidade e a incompreensão. São três palavras que têm uma natureza filosófica, uma natureza política e têm a possibilidade de um tratamento artístico. Então, estas três palavras estão na música, na dança, na comida que se prova, quer nas palavras que se dizem nas línguas asiáticas, em português e em inglês», acrescenta a coreógrafa.

Foto: Pavel Tavares.

Ao longo do espetáculo, «vamos ter momentos de meditação, momentos para conhecer a verdadeira história do caril, momento para pensar o que quer dizer uma hospitalidade incondicional ou autêntica, e vamos ter momentos de incompreensão em que os idiomas vão ecoar entre o público e ainda grandes danças em que a velocidade e a gravidade vão estar em equação para nos fazer pensar muito nas vidas destas 13 mil, ou mais, pessoas, trabalhadores de sol a sol desta agricultura intensiva e que nos mostram ao final do dia um enorme cansaço».

Este migrantes «procuram aqui uma vida melhor. Procuram um sonho. É também isso que estas populações vão partilhar com o público. Portanto, muito pensamento à volta desta questão que é a reescrita de um território português através de várias culturas orientais, longínquas e que perguntam se podem também pertencer a este pequeno mundo que tem, de facto, de se abrir a todos os quadrantes e a todas as direções».

Bowing Apekshya. Foto: Pavel Tavares.

E o sonho realiza-se? «Algumas destas pessoas conseguem realizar esse sonho, tentando compreendê-lo ocidentalizando- se, tentando compreender as normas e as regras desta nossa sociedade portuguesa, mas uma grande maioria está, de facto, perdida na tradução deste país que somos», admite.

Por isso, «é para estas pessoas que este espetáculo também se faz. É um gesto caloroso e um sorriso aberto à sua presença dentro deste Alentejo. Mesmo quando vierem ver o espetáculo, e se não conseguirem compreender tudo o que se dirá e fará ao detalhe, vão perceber que estes artistas e todos aqueles que quiseram participar nele, estão com elas e ao seu lado», conclui Madalena Victorino.

E o próximo passo? «Temos connosco uma antropóloga, a Catarina Barata e um sociólogo Alix Didier Sarrouy (investigador em ciências sociais, músico e performer). Estão a analisar todo o processo. Estão a questionar também todas as tentativas de entrada e de aproximação que fazemos a estas comunidades, que muitas delas, nem inglês falam. Comunicamos através da música e da dança. Eu gostava muito que o segundo ano deste projeto fosse o resultado de tudo o que aprendemos neste primeiro. Penso que terá o mesmo formato, mas tudo dependerá da reflexão que fizermos no final do processo que termina a 15 de novembro e irá reiniciar-se em janeiro» de 2022.

Foto: Pavel Tavares.

Giacomo Scalisi finaliza que «no fundo, esta é uma resposta social e política a um problema que existe neste território. Tivemos um grande eco mediático com os surtos de COVID-19 nos migrantes, mas tudo já acabou. Continuam a ser populações invisíveis. O trabalho em profundidade no terreno que a Madalena está a fazer é a primeira vez que a arte toca nestas pessoas enquanto veículo, não digo de integração, mas, pelo menos, tentar ir ao encontro destas pessoas. Uma maneira verdadeira de ver quem são, porque estão aqui e a riqueza da cultura que trazem».

«Bowing» é um projeto de natureza artística e também de natureza social. É apoiado pelo programa PARTIS & Art for Change, cujo objetivo é apoiar projetos que visem demonstrar o papel que as artes podem desempenhar nos percursos de integração e na construção de comunidades mais justas e coesas, lançado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela congénere Fundação «la Caixa».

«Não» diz sim à liberdade

Quando tinha oito anos, o professor da escola primária de Giacomo Scalisi «falou- me da liberdade. Foi a primeira pessoa que me falou sobre isto. Contou-me que combateu nas montanhas o fascismo na Itália e disse que agora somos nós que temos de resistir e de defender a liberdade». Esta memória e este sentimento são ponto de partida para o espetáculo «Não», dirigido a um público infantojuvenil, pais e filhos e à comunidade escolar.

Será apresentado em Aljezur (23 e 24 de outubro), Monchique (6 e 7 de novembro), Odemira (para o público escolar) e Santiago do Cacém (1 de novembro).

Foto: João Mariano.

Segundo Scalisi que assina a encenação, «este é um tema pelo qual eu tenho muito carinho e há muito que queria desenvolver. O que é a liberdade? Como é que cada pessoa é importante na sociedade? Como é possível respeitar os outros? Três atrizes através da música, do canto e do teatro mostram o quanto é importante a liberdade, algo que muitas vezes não sabemos ter, e que no fundo é a possibilidade de estar em paz com os outros para se construir uma sociedade melhor. Penso que neste momento histórico», em que começam a afirmar-se os movimentos populistas e de extrema-direita, assim como os discursos de ódio, «é muito importante de se abordar».

«Não» nasce a partir de um diálogo entre Scalisi e o escritor Afonso Cruz, sobre as obras deste autor «Paz Traz Paz» e «O Livro do Ano», e de alguns textos inéditos que surgiram após trocas de ideias.

365 Algarve desapareceu sem rasto nem alternativa

Criado em 2016, o Lavrar o Mar – as artes no alto da serra e na costa vicentina, é um projeto artístico e cultural que contava com o apoio dos municípios de Aljezur e Monchique, da Direção-Geral das Artes e do recém-extinto 365 Algarve, que teve uma vida efémera (embora recheada) e uma morte rápida.

Apesar do financiamento daquele programa ter caído, Madalena Victorino e Giacomo Scalisi não vão deixar que o mesmo aconteça a tudo o que já realizaram.

«Nós ainda estamos à espera de uma comunicação oficial a dizer que acabou. Nunca chegou e nunca vai chegar, já percebemos», lamenta o programador italiano.

«É uma situação recorrente na História de Portugal que está sempre a repetir-se. Os políticos quando chegam aos cargos, quando começam a trabalhar, na minha ótica, deviam olhar com muita atenção para tudo o que estava a ser feito, para poderem perspetivar uma continuidade. Sobretudo quando é reconhecida a qualidade desse trabalho, na opinião do coletivo. Além disso, estamos a falar de um trabalho que está em construção. Infelizmente, há essa tendência e fazer um corta-mato, arredar o caminho que esses projetos estavam a percorrer, interrompê-los e começar de novo. Isso é uma grande pena. É um gasto de energia muito grande, é um desperdício do trabalho realizado e é nunca termos a possibilidade de amadurecer, de aprofundar, de desenvolver e de consolidar», critica Madalena Victorino.

«Falta inteligência. O dinheiro que foi investido na região deu resultados visíveis. A Universidade do Algarve acompanhou os vários projetos. Agora, as coisas morrem, os públicos perdem a ligação que foi criada através desses projetos e temos de começar tudo de novo. Isso não vamos fazer porque o nosso público está a pedir-nos» mais cultura, conclui Giacomo Scalisi.