«Gatilho» é um projeto pioneiro em Lagos que pretende formar pessoas com deficiência para as artes, tendo como pano de fundo o conhecimento do território.
Está prestes a arrancar o projeto «Gatilho», promovido em conjunto pelo NECI (Núcleo de Educação da Criança Inadaptada) e associação cultural Questão Repetida, em parceria com a Câmara Municipal de Lagos, ao abrigo do programa PARTIS & ART for Change, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação «la Caixa».
Trata-se de uma iniciativa de inclusão social que, ao longo dos próximos três anos, dará formação artística e técnica a pessoas com deficiência que frequentam aquela instituição na Praia da Luz, usando como ferramentas o teatro, a dança, a performance, a música, a realização plástica, e a técnica do espetáculo e a fotografia.
«Os nossos utentes sempre estiveram habituados a trabalhar ao nível da artes, em salas de atividades. Agora, queremos dar-lhes outras possibilidades. Pensámos em fazer algo a longo prazo e conseguimos esta candidatura», refere Sandra Marreiros, dirigente do NECI.
Conceição Gonçalves veio trabalhar com a Questão Repetida, para disparar o «Gatilho». Segundo revela ao barlavento, «a ideia é fazer com que Lagos se torne um território cultural e artístico diverso, onde se possa viabilizar a presença de pessoas com deficiência. Para este objetivo final, vamos dar um conjunto de passos. O primeiro é criar uma rede local de parceiros e é esta fase que vamos iniciar», explica.
Além dos parceiros institucionais, como a autarquia lacobrigense e as Juntas de Freguesia do concelho, «há toda uma série de entidades desportivas e culturais no tecido associativo que vamos convocar para pensarmos em conjunto este território. Vamos desafiar cada parceiro a refletir o que é isto da acessibilidade e da inclusão. Será que quando criamos um teatro, pensamos em algo adaptado para tudo e todos? Temos vindo a perceber que não. No fundo, este projeto pretende ter essa virtude, fazer pensar sobre a deficiência com todos», diz Conceição Gonçalves.
O primeiro encontro comunitário terá lugar na sexta-feira, dia 13 de janeiro, na Junta de Freguesia de Odiáxere, e decorrerá das 18 às 19h30. Está aberto à população e a todas as entidades interessadas. Aliás, paróquias, sociedades recreativas e associações já demonstraram interesse. «Estas parcerias têm geometrias muito variáveis. Algumas facultam espaços de trabalho, outras têm atividades no seu seio nas quais poderemos entrar, participar e potenciar» a autodeterminação das pessoas com deficiência.

Para já, está formado um grupo de 11 utentes do NECI, entre os 20 e os 60 anos. Alguns vivem no lar residencial «e vão estar conosco nesta caminhada, fora da instituição, a partir do que vamos recolher no território, ao longo destes encontros comunitários que vão acontecer até 30 de março.
No final, «vamos criar performances, exposições e pequenos espetáculos. O projeto também envolve residências artísticas onde, em conjunto, os parceiros, utentes e famílias, irão criar objetos artísticos. Contempla ainda momentos aos quais chamamos churrascos. A dimensão gastronómica enquanto ponto de encontro serve para unir as pessoas à mesa. Serão momentos abertos e haverá sempre um artista convidado para nos desafiar», acrescenta Conceição Gonçalves.
O primeiro churrasco está agendado para fevereiro e a convidada será Eva Ribeiro, palhaça, atriz cómica e pedagoga com experiência em intervenção comunitária através das artes performativas. «Vem do universo clown e também faz trabalho social através da linguagem do circo. Penso que será um momento de partilha muito interessante», opina. Em relação à dinâmica de trabalho com o grupo do NECI, o ritmo será semanal.
Questionada sobre a relevância desta iniciativa, Sandra Marreiros explica que «é muito importante para os utentes e para as suas famílias, porque a sociedade não está preparada para os incluir. Por norma, tentamos escolher atividades em que consigam ultrapassar as suas dificuldades. Com este projeto, vamos percebendo o que custa levá-los a outros lugares além do pouco que existe adaptado. Um grupo grande de pessoas com deficiência ajuda a perceber o quão difícil é integrá-las, porque os espaços não estão preparados para os receber».
Embora a legislação remonte a finais dos anos 1990, muitos «edifícios construídos recentemente não estão adaptados para quem coxeia ou tem problemas de locomoção, quanto mais para uma cadeira de rodas! Penso que é fundamental os nossos utentes saírem da instituição e dizerem: nós queremos ser incluídos! Nós queremos fazer isto! Em Lagos temos um Centro Cultural que não está adaptado a que possam subir ao palco ou aceder aos camarins. Temos de chocar para que haja alguma transformação na sociedade. É também nosso dever mostrar à comunidade que tem de mudar. Só assim pode haver uma transformação», conclui.
E para a Questão Repetida? «Este projeto é pioneiro. Não há nada no Algarve. Nunca se pensou a questão da arte e da deficiência, de se colocar as pessoas no palco». E relata que, aquando da apresentação do projeto «Diferente-Mente», apresentado em janeiro de 2021 no Auditório Carlos do Carmo, em Lagoa, «o autarca Luís Encarnação elogiou o privilégio que tinha sido abrir o ano novo assim», até porque «aquela foi a primeira vez que um elenco com pessoas com deficiência se apresentou em palco na história daquele espaço».
Além disso, a Questão Repetida «tem a companhia de teatro de algibeira, que apesar de embrionária, tem por objetivo viabilizar a presença de artistas e de pessoas com deficiência e catapultar essa mudança», aponta Conceição Gonçalves. Formada em Teatro e em Ciências de Educação, trabalhou profissionalmente como atriz, integrou a equipa que criou o Serviço Educativo do Centro Cultural de Cascais, e trabalhou em Organizações não Governamentais (ONGs) na área do Desenvolvimento Local. Desenvolveu projetos nas áreas do teatro e do ambiente com crianças do pré-escolar e do 1º ciclo e coordenou vários projetos de animação e intervenção comunitária. Hoje, trabalha com a comunidade sénior do concelho de Aljezur.
«Para mim, tudo isto será uma aprendizagem. Poder trabalhar com estas pessoas, perceber as questões da limitação e também as minhas próprias limitações. Se pensarmos bem, todos nós temos enormes deficiências em tantas lacunas das nossas vidas, sejam relacionais ou comunicacionais. Este é um projeto de peso e se pudermos motivar a reflexão, será uma primeira pedrada num charco e isso tem um mérito» para todos os envolvidos.
Em abril, «haverá algo especial para as escolas e para o público, com alunos de música, compositores, palavras de Sofia de Mello Breyner e muita inspiração. Tem de se começar por algum lado. Se pudermos contribuir para alguma tomada de consciência, o caminho estará feito».
NECI celebra 32 anos
Fundado em 1991, o NECI (Núcleo de Educação da Criança Inadaptada) «tem como missão ser uma instituição de referência no Algarve» na área da deficiência, segundo a diretora Sandra Marreiros.
«Trabalhamos com pessoas em situação de vulnerabilidade e também com crianças com situação de atraso de desenvolvimento. Temos dois Centros de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI), um com 30 utentes e outro com nove utentes. Temos também um serviço para a infância, integrado no Sistema Nacional de Intervenção Precoce, para crianças dos zero aos seis anos, com vários apoios como a fisioterapia, a terapia da fala, serviço social, psicologia e terapia ocupacional. É uma resposta social que tem um acordo com a Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve e com a Educação e que tem alocadas educadoras que atuam em vários contextos. Os Centros de Saúde também trabalham conosco. Temos ainda um lar residencial para 24 utentes que está em funcionamento e um projeto para a construção de um novo, com capacidade para mais 30 utentes. Estamos a aguardar a abertura de candidaturas» para financiamento da obra.
Além disso, «temos um atendimento e acompanhamento às famílias da comunidade que está em transição para a Câmara Municipal de Lagos no âmbito da transferência de competências. Até abril, passará para a autarquia. Temos ainda um serviço de apoio com o Banco Alimentar Contra a Fome do Algarve e com o Fundo Europeu de Apoio a Carenciados (FEAC), através do qual damos apoio a famílias de Lagos e de Aljezur». Em termos dos CACI, «estamos numa transição de atividades ocupacionais para a inclusão e experiências profissionais na comunidade, de acordo com a atual portaria n.º 70/2021 de 26 de março e é neste âmbito que estamos a trabalhar» o projeto «Gatilho».