«Projeto Gea» deu os primeiros passos em meados do ano passado e já recolheu 1200 quilos de detritos no caminho para o Cais Comercial de Faro, zona sensível junto à Ria Formosa, onde se acumula cada vez mais lixo, sobretudo máscaras de proteção, consequência da pandemia de COVID-19.
A ideia surgiu no Natal de 2019 pela mão de António Cotão, de 29 anos, natural de Portalegre, biólogo na Associação Vita Nativa e residente em Faro há 12 anos, e a namorada, Vivi Paschopoulou, 29 anos, de nacionalidade grega, que veio viver para a capital algarvia em 2016,no âmbito de um projeto de voluntariado europeu.
O casal decidiu criar a sua própria tradição natalícia de uma maneira diferente, em prol do ambiente. No ano seguinte, voltaram a repeti-la, ainda com mais fôlego, devido a um novo problema de saúde pública que está também a ter graves consequências ambientais. Nasceu assim o «Projeto Gea», em plena pandemia de COVID-19.
«Procurámos diferentes sítios no concelho de Faro que fossem de fácil acesso. A primeira vez que viemos ao Cais Comercial ficámos espantados com a quantidade de lixo que aqui havia e pensámos logo em criar o desafio de terminar o ano de 2020 com aquele percurso limpo. A epidemia veio dificultar o objetivo que acabou por se estender até ao final do mês de janeiro», começa por contar ao barlavento António Cotão.
«Queremos promover os verbos: diminuir, negar, reutilizar e upcycling. Este último, em inglês, significa pegar nos materiais encontrados, como plásticos, e criar um novo objeto. Claro que já existe a reciclagem como destino final para alguns destes materiais, mas a mensagem que queremos passar é que há outras soluções para termos menos lixo e que qualquer pessoa pode fazer a sua parte», sublinha.
Com mais de 10 fins de semana passados a apanhar todo o tipo de lixo nas margens da estrada que conduz ao Cais Comercial de Faro, o casal estima a quantidade de entulho recolhido em 1200 quilos. O que mais se encontra naquele local são «preservativos usados, toalhitas, imensas beatas, garrafas de plástico, jornais, embalagens de take-away, produtos de higiene, garrafas de bebidas alcoólicas, peças de carros e pneus. Depois, junto à Ria Formosa, encontramos muitos utensílios de pesca e de mariscadores abandonados, roupa e sapatos. O mais invulgar que descobrimos foram louças de casa-de-banho, um piano eletrónico, uma televisão e até carrinhos de bebé», descrimina o biólogo.
Mas, na conjuntura atual, há um objeto que tem aparecido frequentemente naquele local, durante as recolhas de lixo do casal, as máscaras descartáveis. «Só no último domingo que aqui estivemos contámos mais de 50», evidencia a grega. A dada altura, perderam a conta.
Apesar da falta de responsabilidade ambiental com que se deparam nas franjas de uma das principais cidades do Algarve, o casal é da opinião que naquele espaço o problema não é apenas e exclusivo da comunidade.
«Acho que não são só as pessoas que não têm sensibilidade porque nesta zona não existiam contentores do lixo. Agora foram colocados dois porque fomos nós que pedimos para dar apoio à nossa ação de limpeza. O contentor mais próximo daqui, e o único, está a um quilómetro de distância. Há aqui muitas pessoas a fazerem exercício, a passearem os cães, a almoçarem, a verem o pôr-do-sol e os aviões que descolam e aterram no Aeroporto, mas não há um único contentor para o lixo. Claro que não é por não existirem que as pessoas têm o direito de descartar aqui tudo e mais alguma coisa, mas falta essa opção», afirma Vivi.
«Aliás, antes de termos pedido os contentores à Fagar, andávamos com o único que existe naquele troço de estrada, ou então, a alternativa era carregarmos os sacos às costas por mais de um quilómetro», completa o biólogo.
Além da Fagar, que se mostrou apta para disponibilizar os contentores, os sacos de plástico e luvas, também a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e a Associação Vita Nativa têm apoiado o casal com balanças e outros materiais de recolha.
E como os jovens já são presença confirmada no Cais Comercial aos domingos de manhã, alguns transeuntes e curiosos têm-se vindo a juntar aos jovens depois de perceberem o trabalho que ali estão a desenvolver.
Também com as redes sociais (@ projetogea), onde promovem as suas ações em português e em grego, há quem tenha aparecido para ajudar nas recolhas. E é mesmo esse o objetivo dos jovens, «influenciar pessoas», nas palavras de António Cotão.
«Não queremos criar ações de limpeza, nem campanhas particulares, como outras entidades e associações fazem, a acontecerem duas vezes por ano em datas alusivas. Queremos mesmo é sensibilizar e mostrar que é possível fazermos todos um bocadinho, despendendo alguns minutos do nosso dia e que neste contexto, por exemplo, não precisamos estar aglomerados», diz ainda.
Trata-se de um trabalho voluntário ao ar livre que pode ser feito em segurança no atual contexto pandémico.
Mas e o que motiva um casal de jovens a dispensar parte do fim de semana a apanhar lixo? «É uma maneira de estar na vida», responde a grega. «Para mim faz sentido porque gosto de ajudar o planeta e isso chega-me. Eu ia começar a trabalhar, mas com a pandemia anularam o meu contrato. Nesse momento apercebi-me que estava a acontecer algo mesmo grave no mundo e isso fez-me dedicar ainda mais a este projeto».
António Cotão corrobora: «sou biólogo, trabalho no campo e cresci no campo. Tenho uma forte ligação com a natureza desde muito novo. Já desde muito cedo que comecei a fazer a apanha do lixo, apesar de serem ações muito esporádicas. Acabei por perceber que desfrutava daquilo, na medida em que deixava o local mais limpo. Aqui o que também me move é estarmos em plena área protegida. A Ria Formosa é uma das áreas mais importantes para a biodiversidade em Portugal e não só. É um ecossistema singular. Senti que este é o meu contributo para ajudar este ecossistema, para um bem maior para todos os seres vivos. Acaba por ser desafiante contar o número de coisas que apanhamos. Encontramos sempre forma de nos motivar e é uma rotina que também se cria e sabemos que ambos desfrutamos». Tanto, que para o futuro as ideias já estão bem definidas.
Segundo Vivi Paschopoulou, «queremos intervir no parque de estacionamento de terra, antes da ponte da Praia de Faro. Há lá imenso lixo».
Isso antes da grega regressar ao seu país natal, desta vez com o parceiro, que conheceu durante um projeto de voluntariado no RIAS – Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens, em Olhão, onde António trabalhava, em 2016.
«Esperávamos já estar na Grécia, mas esperemos que este ano já consigamos ir de vez. De qualquer das formas, no que toca ao Projeto Gea, vamos continuar a fazê-lo, independentemente de onde estivermos, seja em Faro, noutro ponto do Algarve, do país ou da Grécia», conclui o biólogo.