Economista e ex-eurodeputado de 45 anos é o novo cabeça de lista do Bloco de Esquerda (BE) no Algarve. José Gusmão foi desafiado por João Vasconcelos e vem para continuar o trabalho político nos vários dossiês da região.
Em entrevista ao barlavento, garante que a sua missão está longe de se esgotar nas próximas eleições legislativas de janeiro.
barlavento: Ainda há pouco tempo, Catarina Martins disse que queria manter todos os cabeças de lista do país, excepto no Algarve. Porquê?
José Gusmão: Devido à (in)disponibilidade de João Vasconcelos. O processo de renovação no Algarve é desencadeado pelo próprio, que depois de discussão nos órgãos locais de decisão, me contactou para saber se eu poderia encabeçar a lista à Assembleia da República, e qual a minha disponibilidade para ser deputado pelo Algarve, com todas as implicações que isso tem ao nível de trabalho no distrito.
Ou seja, mesmo sem eleições no horizonte, daria este passo?
Sim. Em sede de comissão política do Bloco, eu já acompanhei o Algarve. E portanto é uma região à qual eu tenho uma ligação. A minha vinda é um compromisso com a organização. Inclui a candidatura às legislativas, claro, mas não se restringe apenas a isso. É um compromisso para continuar.
Já terminou o seu mandato enquanto eurodeputado?
As eleições antecipadas alteraram um pouco os calendários de todos os partidos e o BE não é exceção. Sou eurodeputado há dois anos e meio, mas já trabalho no Parlamento Europeu há mais de uma década, primeiro com Miguel Portas, depois com Marisa Matias, por aí fora. Quando João Vasconcelos me propôs este desafio, confesso que o aceitei com bastante satisfação. Nem tive de pensar muito. Acho que 10 anos a trabalhar nas instituições europeias é tempo suficiente. E também porque queria regressar ao trabalho em Portugal, em organizações de base do Bloco. Estive várias vezes no Algarve enquanto eurodeputado, embora nesse caso, as questões sobre as quais fez sentido intervir diziam respeito a assuntos comunitários, por exemplo, em questões ambientais nas quais a União Europeia tem competências.
O Algarve já teve deputados, noutros partidos, que pouco ou nada fizeram pela região. Não sente que poderá ser visto assim, como «paraquedista»?
Não, esse rótulo para mim não faz qualquer sentido. Independentemente da sua proveniência, ao longo do mandato, os deputados têm de mostrar que além das funções parlamentares na Assembleia da República, conseguem representar condignamente uma parte das suas responsabilidades, que é o trabalho de representação e de intervenção sobre os problemas específicos do distrito. Esse é um compromisso que assumi desde logo com a organização e assumirei com as pessoas que votarem no Bloco. Daqui a quatro anos cá estarei para comparar essa intervenção com a de todos os outros deputados que vierem a ser eleitos pelo Algarve, venham eles de onde vierem.
Durante pelo menos 10 anos, as portagens na Via do Infante (A22) foram a grande luta do seu antecessor. Não se conseguiram revogar. Continuará essa batalha?
Não vamos desistir da questão da mobilidade nem das portagens, quanto mais não seja porque as autoestradas SCUT [Portagens Sem Custos para o Utilizador] receberam fundos comunitários enquanto meios para a coesão social e territorial. E há uma posição recente da União Europeia que diz que as portagens são incompatíveis com o princípio que presidiu ao financiamento da Via do Infante. Isso introduz um novo ponto de vista de análise. A nosso ver há um claro incumprimento por parte do Estado português pelos pressupostos que levaram ao financiamento dessa infraestrutura. A esmagadora maioria das pessoas do Algarve não beneficia daquilo que a Via do Infante poderia trazer. No nosso ponto de vista, isso deve impedir que continue portajada.
Mas há a hipótese de o Estado sofrer uma represália?
Penso que a posição que a Comissão Europeia (CE) assumiu dá um novo fôlego à ideia que a A22 não deve ser portajada, sobretudo num contexto em que toda uma série de investimentos para a mobilidade no Algarve estão por realizar. Inclusive, investimentos que vêm a ser prometidos eleição após eleição. O projeto da modernização da Linha do Algarve constava do Plano Nacional Ferroviário 2020, que foi prometido em 2015, e de novo prometido em 2019. Nesta campanha eleitoral teremos um facto insólito. Teremos um candidato que está hoje no poder e que vai prometer a mesma obra pela terceira vez consecutiva. Uma das nossas prioridades é exigir que durante o próximo ciclo governativo, o projeto seja concluído.
Outro tema caro ao BE no Algarve tem sido a saúde, embora, também sem grandes resultados…
Alguns resultados. No que toca à saúde, temos tido um grande braço de ferro muito difícil com o Partido Socialista (PS). É um braço de ferro tão antigo quanto a geringonça. Desde o período da Troika temos mínimos históricos de investimento público em Portugal. Basta dizer que na última década, o investimento público líquido é negativo. As infraestruturas do Estado têm-se degradado ano após ano. Precisávamos do contrário. Isso tem-se sentido em todos os serviços públicos, mas sobretudo na saúde. Há todo um conjunto de investimentos necessários que são adiados de mandato para mandato. E o Algarve, infelizmente, é um excelente exemplo disso. Durante a Troika houve todo um processo de encerramento de unidades de saúde, que até hoje não foi revertido e que prejudica a eficiência da nossa rede de cuidados primários. O que verificamos é que aquilo que foi vendido como uma racionalização dos serviços públicos, como a não contratação de profissionais para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), é hoje um cenário agravado. Ou seja, o Estado hoje gasta mais a contratar serviços externos do que aquilo que gastaria se tivesse os recursos que necessita.
Todos sabemos isso. A pergunta é: o que se propõe a fazer?
Este diagnóstico não é consensual. Se o governo em funções não estiver disponível para oferecer condições de carreira aos médicos, não vamos ter condições para ter o SNS a funcionar. Isso implica uma escolha política. Implica o Estado estar disponível, coisa que não tem acontecido, para abrir vagas em exclusividade para todos os profissionais. É a única forma de competir com o sector privado. Se isso acontecer, o Estado tem condições para contratar os médicos que precisa. Repare, reunimos com a Associação Oncológica do Algarve que nos deu conta dos problemas em Faro. O hospital já não consegue dar resposta ao trabalho de rastreamento que é promovido pela associação. Sendo que dos cinco médicos que acompanham o rastreio do cancro da mama, dois vão reformar-se em breve. Isto acontece nas mais variadas especialidades e serviços do SNS.
O que merece mais a atenção do Bloco de Esquerda Algarve?
Temos nos próximos anos um afluxo superior de fundos europeus, uma parte dos quais está adjudicado para despesas de investimento. Do nosso ponto de vista, é inaceitável que não sejam concretizadas as obras que o próprio Ministério da Saúde tem considerado indispensáveis, como o novo Hospital Central do Algarve e o Hospital de Lagos.
Estamos ainda em pandemia, passámos por momentos difíceis e há quem diga que este não era tempo para a esquerda chumbar o Orçamento de Estado (OE) para 2022, nem para se convocarem eleições antecipadas. Não acha que isso poderá penalizar, até pelo vosso eleitorado, o BE nas urnas?
Acredito que para algumas pessoas ainda não são claras as razões que levaram ao chumbo do OE. Uma das funções da próxima campanha é fazer esse debate e esclarecer. Mas nós não precisamos de explicar a ninguém as carências no SNS que são enormes. Todos sabemos o que é ter de esperar meses por uma consulta de especialidade. Às vezes mais do que meses. Muitas das coisas que estiveram na base do desacordo com o OE são coisas que estamos aqui a discutir [em entrevista]. Um dos pontos de discórdia é que para o BE era indispensável que o OE abrisse vagas para a contratação plena de mais profissionais de saúde. Os hospitais de Faro e de Portimão têm graves carências de pessoal e precisam de ter autonomia para as resolver. Nestas eleições, a saúde vai ser, muito possivelmente a nossa prioridade. Queremos apresentar um conjunto de propostas ao país para resolver estes problemas. E vamos estar atentos ao que os outros partidos assumem.
E em relação ao pós-pandemia?
O grande argumento hoje é que devemos aproveitar as verbas europeias acrescidas para resolver problemas estruturais da nossa economia. Uma das prioridades do PRR tem a ver com as alterações climáticas e a transição energética. O Algarve é a região que mais perdeu com a pandemia devido à sua dependência da atividade turística e à sua enorme sazonalidade. Mas não basta olhar às fragilidades. O Algarve tem um potencial insuperável no contexto europeu, do ponto de vista do aproveitamento das energias renováveis. Deve procurar ligar o conhecimento com uma fileira industrial ligada a esta área de produção que vai ser central para o futuro da nossa economia. Desse ponto de vista, a região poderia ser líder no país. Portugal já teve alguma aposta nas infraestruturas associadas à transição energética, mas foi interrompida pelas políticas de austeridade e morreu a seguir à política de ajustamento da Toika. Precisamos também de retomar o pequeno investimento. Temos uma forma de regulação da pequena produção de energia para autoconsumo que está pensada em função dos interesses das grandes distribuidoras. O potencial para a microgeração, que pode ter um impacto direto na qualidade de vida das pessoas, é uma agenda da qual não vamos desistir, sobretudo para o Algarve. A forma como toda a política de energia em Portugal é feita para proteger um oligopólio e as suas rendas. Isso sempre esteve estará no centro das críticas do BE.
A habitação, ou melhor a falta dela, é um enorme problema no Algarve. Que defende o BE?
Grande parte da oferta de habitação é também sazonal. Temos uma geração de jovens que têm emprego na época alta mas só conseguem arrendar casa na época baixa. Esta combinação de trabalho precário com habitação precária é o que faz com que o Algarve seja a segunda região do país produtora de riqueza, apenas superada por Lisboa, mas que apesar disso, tem a renumeração média mais baixa em Portugal. Temos que reverter este modelo e isso implica mudar a forma como pensamos o turismo no Algarve. Existe toda uma infraestrutura que tem de ser rentabilizada todo o ano. Por outro lado, há que ter em conta o peso da segunda habitação no Algarve. Pensamos que há duas linhas de atuação. Tem de haver uma discriminação positiva do arrendamento a longa duração. E precisamos de uma bolsa pública de habitação. Somos um dos piores exemplos da Europa, em que é praticamente irrisória a quantidade de habitação detida pelo Estado. Está quase restrita a bairros sociais. Outro problema é que existe uma grande concentração da propriedade em fundos imobiliários que condicionam cada vez mais o arrendamento. Também aqui deve haver instrumentos fiscais para que os imóveis sejam colocados no mercado. Tem de haver uma pressão muito grande para que os fundos coloquem o seu património habitacional no mercado a preços acessíveis. Mas é preciso que o Estado queira enfrentar esse lobby que é um dos principais do país.
Quer deixar uma última mensagem aos algarvios?
Quem pensa em muitos dos problemas que são consensuais no Algarve, pensa em investimentos que são adiados há muitos anos, por vezes há muitas décadas. Se das próximas eleições sair uma maioria absoluta do Partido Socialista, ou um bloco central, essa é a maior garantia que todos esses problemas vão continuar por resolver. A única forma de os alterar é dar um sinal de mudança política dentro do Algarve. O pior que poderia acontecer é que esta região ficasse, de novo, entregue aos partidos que há tantos anos têm deixado os problemas por resolver. A única solução é reforçar os partidos que se têm batido pelas mudanças e pelos investimentos necessários de que o Algarve tanto precisa.