Joana Santos, natural de Faro, com 32 anos é a única judoca federada surda em Portugal.
Além de ser a atual campeã do mundo, acaba de conquistar a segunda medalha de ouro nos Surdolímpicos de Caxias do Sul, no início de maio. A atleta conta ao barlavento quais os próximos passos na sua carreira e que legado gostaria de deixar no desporto.
barlavento: Como entrou o judo na tua vida?
Joana Santos: Comecei no ballet com a minha irmã, mas não sentia que fosse um desporto. Tinha demasiada energia para gastar e ali nem sequer suava. Com nove anos experimentei diversas artes marciais, mas no Judo Clube do Algarve (JCA) estava um amigo meu que também era surdo. Gostei do desporto, senti logo empatia com o treinador [Júlio Marcelino] desde o primeiro momento e adorei as colegas. Desde aí, até hoje, nunca falhei um treino, vou a tudo o que posso e adoro.
Quando começaram as competições?
Primeiro foram as provas regionais quando tinha 10 anos. Aos 12, no primeiro Campeonato Nacional que participei, onde era a única surda, ganhei a medalha de ouro. Integrei logo a seleção nacional, mesmo antes de sequer saber que existiam competições só para surdos. Passei a ir aos Campeonatos da Europa e em 2005, em Itália, fui aos Jogos Olímpicos da Juventude. Mais recentemente, a 28 de outubro do passado ano, no Dia Mundial do Judo, sagrei-me campeã do mundo, em França, que foi uma dupla vitória. O último Campeonato Nacional, em novembro de 2021, foi a primeira vez que não ganhei medalha. No sorteio calhou-me a Telma Monteiro logo no primeiro combate, porque agora estamos com o mesmo peso [-57kg] e, consequentemente, na mesma categoria, e não lhe consegui ganhar. Ainda assim, hoje treinamos juntas, quinzenalmente, em Coimbra.
Mas os Jogos Surdolímpicos em Caxias do Sul, Brasil, foi a vitória mais recente?
Sim. Como sou a campeã do mundo passei diretamente aos quartos de final, onde tive o meu primeiro combate. Na meia final calhou-me uma atleta venezuelana, muito forte, mas a final, com uma judoca sul-coreana, foi o combate mais difícil. Além de a pressão ser maior, estávamos empatadas no primeiro, no segundo e no terceiro minuto. Faltavam 17 segundos para o combate terminar quando consegui fazer um Wazari [quando o oponente cai com metade das costas] e vencer. Trouxe a segunda medalha de ouro olímpica. A primeira tinha sido em Taipé 2009. Em 2013, em Sófia, fiquei em segundo lugar e em 2017, na Turquia, alcancei o bronze.
Como se preparou?
Com um ritmo de treinos muito pesado e intenso, sempre focado em ganhar a medalha. Todos os dias de manhã, de segunda a sexta-feira, treinava sozinha com o mestre e à tarde com o grupo. Uma vez por semana ainda ia treinar em Portimão e aos fins de semana ia para Coimbra. Como tenho um filho de quatro anos, era difícil conseguir descansar completamente.
Quão duro é ser atletaa este nível?
É muito duro. Gosto, não reclamo, mas só para se ter um exemplo, quando termino um treino, estou a pesar menos um quilo. Depois tenho sempre de equilibrar a alimentação com o meu peso e treinos porque isto é um desporto de peso. Não posso ter mais de 57 quilos para competir nesta categoria. Dá trabalho, não é fácil e é preciso trabalhar muito, mas tenho o apoio da família, dos amigos, do JCA e sei que sou um exemplo para outros surdos. Digo sempre que mesmo que se perca uma competição, não tem mal, há sempre algo que se ganha, mas tudo é fruto de muito trabalho.
É esse o segredo do sucesso?
Sim.
Pensas competir até quando?
Não sei o futuro. O objetivo agora são os Jogos Surdolímpicos em 2025. Não posso já dizer que vou participar, porque o futuro logo o dirá. Vou treinando com esse objetivo, mas a saúde, o corpo e a mente também contam. Já tive algumas lesões, fui operada ao ombro e agora estou numa fase mais calma, com um número de treinos mais reduzidos.
Quais os planos depois dessa data?
Sou licenciada em Design de Comunicação e mesmo que siga esse caminho, vou sempre continuar no judo. Não será a nível competitivo, mas tenho de praticar algum desporto porque não consigo parar. O meu corpo e o meu coração estão habituados desde sempre e mesmo que me foque noutra área, vou sempre estar ligada ao judo de alguma maneira.
Sentes-te reconhecida por Portugal?
Sim. O Presidente da República já me conhece bem.
Alguma vez te sentiste diminuída no desporto por seres surda?
Tenho muito orgulho neste desporto, no meu clube, na minha família, em ser a única surda em todos os meios e não deixar que isso me prejudique. Consigo fazer tudo na mesma. Aliás, gosto de silêncio e até é melhor para me concentrar. Como não ouço, estou apenas e só concentrada na minha adversária e olho para isso como uma vantagem.
Gostavas que o judo tivesse mais atletas surdos?
Claro que sim. Quando me retirar, não vão existir mais judocas surdos em Portugal. Sou a única a competir. Gostava de conseguir trazer surdos para este desporto, mas não é fácil. Gosto sempre de passar a mensagem de que sou surda e atleta. Tenho muito orgulho em ser um exemplo para a comunidade. No fundo, sinto que sou um ídolo para eles, mas acabam por olhar para mim como um objetivo inalcançável. Ficam muito espantados e perguntam-se como é possível conseguir treinar e combater a este nível. Claro que é possível, é igual a todas as pessoas. Não ouço, mas a força é igual para todos. Ou se gosta, ou não se gosta.
Quando um estádio se calou perante a atleta
Joana Santos entrou na modalidade com nove anos e aos doze já era campeã nacional. Ana Maria, a sua mãe, recordou, ao barlavento, alguns momentos marcantes na carreira da filha. Por exemplo, os primeiros treinos no Judo Clube do Algarve (JCA). «Foi muito bem recebida. Algumas meninas da idade dela, ouvintes, ajudaram-na muito. Escreviam coisas, afixavam na parede e algumas até chegaram a aprender Língua Gestual Portuguesa (LGP). Começaram a habituar-se a ela e todas faziam grandes viagens com o treinador [Júlio Marcelino]. A Joana é muito dada e nunca se sentiu menos que ninguém», assegura. Mas a memória que recorda com maior orgulho acontece em 2005, quando Joana Santos tinha apenas 15 anos e se preparava para o Campeonato da Europa. «Na República Checa, numa prova para ouvintes de apuramento para o Europeu, ela era a única surda num estádio enorme, cheio de pessoas a torcer pelas atletas da casa. Conseguiu ganhar todos os combates, mas perdeu um, o que lhe deu acesso a disputar a medalha de bronze. Calhou-lhe uma judoca checa. O estádio estava em peso a gritar pela sua conterrânea, mas isso não a prejudicou. Não ouviu, não sentiu nada e ganhou o combate. O estádio calou-se. Claro que foi o mestre que me contou tudo. Ligou-me e disse-me: a sua filha acabou de calar um estádio inteiro»…
E como se treina sem a oralidade?
Há mais de 20 anos que Júlio Marcelino, mestre de judo há cerca de três décadas, é responsável por treinar a atleta federada Joana Santos. Nunca aprendeu Língua Gestual Portuguesa (LGP), mas isso nunca o impediu de a acompanhar para as competições, um pouco por todo o mundo. «A Joana integrou muito facilmente o grupo logo desde início. Não aprendi, mas a verdade é que aquilo que tenho transmitido à Joana é a técnica e isso ela vê e ao ver, aprende. Mais tarde, tive efetivamente dificuldades quando foi preciso passar algumas mensagens táticas. No entanto, o facto de nos conhecermos há mais de 20 anos, facilita-nos a compreensão. Já nos conhecemos de tal forma bem que passar a mensagem é muito fácil. Quando há alguma dificuldade, escrevo», explica ao barlavento.
Questionado sobre se a judoca se distinguiu precocemente das restantes, o mestre responde positivamente. «Sempre se destacou numa característica necessária para este desporto, a perseverança por ser uma lutadora. Ou seja, ao querer ser boa tal como as outras eram na altura, acabava por puxá-la. Hoje é o inverso, é ela que puxa as outras atletas».
Fotos: Bruno Filipe Pires