Já são visíveis alterações ambientais no Festival de Observação de Aves

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Veteranos do Festival de Observação de Aves & Atividades de Natureza, em Sagres, passadas 12 edições, já notam muitas mudanças nas espécies observadas.

No Cerro da Cabranosa, de binóculos ao peito, Alexandre Leitão, biólogo de formação, consultor na área do ambiente e ornitólogo, perscruta o céu e fala com pessoas de todas as idades e diversas nacionalidades que vão chegando.

«Este festival está pensado e feito para decorrer num período em que a diversidade de espécies de aves que aqui ocorrem é bastante elevada. Este é um ponto alto da migração. É verdade que a maior parte dos grifos, que aparecem em bandos enormes, só passam mais tarde, no final de outubro. Mas também podem aparecer nesta altura», mesmo com o vento a soprar de norte e um teto de nuvens baixas.

Por vezes, as planadoras avançam mar adentro. «A plumagem das aves de rapina não é impermeável como a das aves marinhas e se caírem à água ensopam-se e morrem de hipotermia». Leitão já viu milhafres-pretos (Milvus migrans) e águias-calçadas (Aquila pennata) que foram recolhidas no mar por pescadores, às vezes a mais de 10 quilómetros da terra.

Mas a questão que se impõe hoje é saber o que mudou ao longo destes anos?

Leitão, que também faz parte da direção da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves – SPEA, apoia-se na experiência para responder.

«Venho para aqui fazer monitorizações desde 2005. Algumas pessoas que por aí andam já vêm participar nas campanhas que existem desde os anos 1990. E sim, há alterações. Não são totalmente claras quais as suas origens mas tudo indica que terão dois pontos em comum: as alterações climáticas e as alterações nos habitats que o homem vai provocando».

Sem querer «colocar o alfinete no ponto errado», diz que em relação às alterações climáticas «o que acontece é que as espécies vão-se adaptando a ritmos diferentes. Algumas conseguem fazê-lo mais facilmente, outras muito dificilmente. As que têm condições para se adaptarem vão começando a mudar os seus hábitos. Por exemplo, podem alterar as suas rotas de migração ou os locais para onde vão passar o inverno. Alterando essas rotas, isso pode significar que deixam de passar por aqui», admite.

Biólogos da SPEA no Cabo de São Vicente.

«Por isso, os números de aves podem mudar, ou porque ficam mais a norte, ou porque começam a atravessar em outros pontos e não precisam de vir até cá».

No entanto, nota o biólogo, há espécies «que estão em declínio acentuado». É o caso do tartaranhão-caçador ou águia-caçadeira (Circus pygargus), ave de rapina que voa geralmente a baixa altitude.

«É o que temos vindo a observar aqui, embora não tenhamos uma explicação óbvia. Parece que o declínio é causado por uma clara perda de habitats provocada pela intensificação das práticas agrícolas, com a redução de áreas com vegetação natural e a sua substituição por produções agrícolas intensivas».

«Este é um fenómeno que ocorre por toda a Europa. Mas o problema entre nós está a ser agravado porque estamos a canalizar quantidades imensas de água para certas produções, como acontece aqui perto com a cultura do abacate, água essa que nos irá fazer muita falta no futuro. A nós e ao ambiente em geral. Uma das consequências das alterações climáticas aqui no sul da Europa vai ser a diminuição da pluviosidade e isso vai ter, ou, aliás, já tem, impactes importantes nas populações de aves, por perda de habitats», explica.


«Aquilo que as espécies procuram, sejam elas quais forem, é alimento, água e abrigo. É a regra dos três A, e quando uma destas variáveis começa a falhar começam também os problemas».

No entanto, nem tudo são más notícias.

«Há espécies que aparecem agora em grandes quantidades e poderá haver uma explicação relativamente simples para essas alterações», diz.

Leitão refere-se ao búteo-vespeiro (Pernis apivorus), ave de rapina de hábitos bastante discretos e de dimensão média-grande, considerada pouco comum.

Após o mês de agosto inicia a migração outonal, tornando-se mais fácil a sua localização e observação, sobretudo no Algarve. Mas é mais abundante no norte e no interior do que no sul do país.

«Temos verificado ao longo dos anos que os números têm vindo a crescer. Segundo estudos feitos por colegas nossos na Galiza, poderá haver uma relação entre o aumento das populações de búteo-vespeiro e o aumento de uma espécie invasora e exótica que é a vespa asiática, da qual se alimentam. Poderá haver uma relação direta entre ambas», admite.

«Também poderá ser um exemplo muito interessante do controlo de uma praga através de um processo natural a ser executado».

O biólogo, contudo, mostra-se muito cuidadoso na análise e justifica. «Precisamos de séries temporais longas de estudos para sabermos quais as variações, ou quais as causas das variações que vão ocorrendo». No mínimo, um período de 15 anos.

«Infelizmente não vivemos num país rico, os recursos são limitados e regra geral estes estudos longos não são financiados pelas entidades estatais», remata.

Parques eólicos e avifauna, uma convivência possível?

Outra questão fica em aberto: então quem paga? No Parque Natural da Costa Vicentina e Sudoeste Alentejano, Alexandre Leitão responde que são os promotores dos parques eólicos que ali foram surgindo para aproveitar o vento, um recurso energético consistente e poderoso.

Leitão faz parte da equipa da Strix, uma empresa de monitorização ambiental que trabalha para o Parque Eólico de Barão de São João e que tem implementadas várias medidas de compensação.

«Houve um período, no início da implementação de algumas destas infraestruturas, que alguns promotores patrocinaram estudos de forma absolutamente voluntária. Isso hoje acontece por força da lei e por imposição das autoridades tutelares».

Os impactes naquela zona não são diferentes dos que acontecem noutras zonas do globo importantes para a migração de aves planadoras.

«As aves morrem por colisão. Isso está estudado e é muito óbvio, mas agora é mitigado nalguns parques aqui no Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina».

No caso de Barão de São João, «através da paragem seletiva dos aerogeradores», durante o período mais importante de migração outonal, entre o início de setembro e dezembro.
«Ou seja, em determinadas circunstâncias, debaixo de determinados critérios que estão bem estabelecidos, podemos parar uma ou várias turbinas para permitir uma passagem segura e livre de riscos para as aves planadoras».

Desde que a medida foi implementada há 12 anos, só «tivemos a morte de duas aves planadoras».

E quantas se salvaram? «Essa contabilidade é difícil de fazer. Mas se somarmos todas as aves que estiveram envolvidas nas centenas de paragens que foram feitas ao longo deste tempo, eu diria que milhares».

Basta fazer click num botão do software de gestão, através de um tablet, para que as pás gigantescas parem de rodar.

«É um compromisso entre parar as máquinas e não ter perdas de produção desnecessárias», diz. E estima que as mesmas não são superiores «a 0,1 por cento da produção anual».

Uma espécie que merece toda a atenção é a águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti), uma das rapinas mais ameaçadas da Europa e que está entre as mais raras do planeta.

«Basta a sua presença nas proximidades para podermos parar as máquinas. Penso que a população total de casais reprodutores deve rondar os 2000 exemplares», conta.

«A dimensão deste problema, o da morte de aves nos aerogeradores, é tanto maior quanto mais rara e maiores forem os problemas de conservação de determinada espécie. A morte de um só exemplar representa um drama muito grande e um caso muito sério do ponto de vista da conservação da biodiversidade, quando se trata de uma espécie ameaçada ou mesmo criticamente ameaçada. Não podemos continuar a perder exemplares e muito menos espécies, nem continuar a desequilibrar todo o sistema», conclui.

Onde estão o Sisão e a Gralha-de-bico-vermelho?

O britânico Simon Wates vive há 26 anos entre Vila do Bispo e Lagos (Praia da Luz). É guia local de observação de aves na Costa Vicentina, território que conhece bastante bem. Wates dedica igualmente parte do seu tempo à flora e vegetação, e às relações ecológicas entre os habitats e a avifauna. Também ele nota alterações.

«Tenho vindo a conhecer, cada vez com maior profundidade, os valores deste parque natural. Temos dezenas de habitats diferentes e valiosos no triângulo Aljezur, Vila do Bispo e Sagres, e há muitas coisas que têm mudado nestes anos.

O que interessa para a biodiversidade é haver um mosaico de diferentes paisagens. Há matos que têm uma importância elevadíssima em termos de refúgio para a biodiversidade. E há grande áreas de pastagem, terrenos abertos, que são importantes, talvez não tanto pela sua flora mas pelas espécies animais que aí encontram os seus habitats.

Simon Wates.

Mas, por exemplo, na zona de Vale Santo, tenho visto mudanças brutais nos últimos 20 anos, com o aumento da presença de uma planta invasora terrível, o chorão (Carpobrotus edulis). Há hectares e hectares cobertos com chorão, quer em terrenos arenosos próximos do mar, quer em pastagens. Uma das consequências disso é a redução muito acentuada da pequena população de sisão (Tetrax tetrax) que ali existia. Acho que em breve será considerada criticamente ameaçada a nível local. Na minha opinião, a nossa população satélite está já praticamente extinta», afirma.

Mas não é a única alteração que nota. «Há outra espécie, se calhar até mais emblemática, que é a gralha-de-bico-vermelho (Pyrrhocorax pyrrhocorax). Temos uma população satélite neste canto de Portugal continental. É o único sítio do país onde existe, e isso acontece porque temos falésias de mar e pastagens de ovelhas por perto», explica.

Wates acha que a diminuição dos rebanhos e o declínio da pastorícia e de toda a sua fileira de produção são uma das principais causas do decréscimo de gralhas-de-bico-vermelho.

«A contagem máxima que fiz foi de 163 indivíduos, há cerca de oito anos, o que poderá representar cerca de 50 casais. Agora não há censos focados nesta espécie, mas tenho a certeza que atualmente são muito menos. Seria bom fazer-se um estudo dedicado à população de gralha-de-bico-vermelho em Sagres», conclui.

O barlavento falou também com Rute Silva, presidente da Câmara Municipal de Vila do Bispo acerca das novidades para as próximas edições do Festival.

Guia de Aves local para usar todo o ano

Os visitantes do Festival têm agora ao dispor um Guia de Aves do concelho de Vila do Bispo e do Promontório de Sagres. Com autoria de Diniz Cortes e revisão científica de Gonçalo Elias, o livro de 218 páginas, foi editado em 2019, mas só agora pôde chegar às mãos do público.

Bilíngue, com textos em português e inglês, a edição é bastante cuidada e está ilustrada com fotografias a cores, mapas de distribuição e textos breves que descrevem as aves, os seus habitats e comportamentos, alguns critérios úteis para a sua identificação no campo e ainda a época de presença (residente, invernante, estival nidificante, migrador de passagem) e abundância.

Gonçalo Elias explica que se trata de «um marco importante para a valorização da avifauna da região de Vila do Bispo e para a divulgação deste riquíssimo e singular património natural».

No total, há fichas individuais para 200 espécies de aves, às quais se juntam duas listas: uma de 58 espécies com o estatuto de «raro» e outra de 50 espécies com o estatuto de «acidental».

Este é um auxiliar de campo precioso que pode ser utilizado ao longo de todo e que surge com a chancela da WildScape para o município de Vila do Bispo. Custa 16 euros.