Há uma guia turística com 81 anos na aldeia da Penina em Loulé

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Maria Alice Ferreira guarda memórias de um Algarve rural de outrora para partilhar com quem visita a Penina, em Loulé.

«Gente simpática e bonita é sempre bem-vinda». É assim que Maria Alice Ferreira, de 81 anos, recebe a reportagem do barlavento, à entrada do pequeno museu que criou, no número 8 da Rua de Espanha, na aldeia da Penina, concelho de Loulé. Na porta em frente, sentada num banco, a octogenária passa as tardes a trabalhar em peças de empreita, vasilhas, capachinhos, cestos ou bases de cana e palma. Muitas decoram a entrada do seu museu, outras têm outros destinos.

«São encomendas que me chegam dos vizinhos, de amigas ou de quem por aqui passa», afirma. Quando alguém quer espreitar o espólio, faz questão de fazer uma visita guiada. «Gosto. Se as pessoas fazem gosto em ver, eu faço gosto em mostrar», diz. «Ainda agora tive aqui um casal de holandeses que vieram com um vizinho meu e de manhã veio um grupo com a Câmara Municipal de Loulé».

Apesar de não saber falar inglês, isso não a impede, de todo, de mostrar a sua herança de vida no campo, objetos do Algarve rural de outrora que ganham vida numa casa que, por certo, não chega a ter uma dúzia de metros quadrados. «Não sei falar inglês, mas mostro-lhes o museu. Uns percebem bem o que digo, outros percebem menos», explica.

E o que há para ver? À entrada, um forno a lenha, já em desuso, e os respetivos utensílios. A maioria está  etiquetada com legendas em português e inglês, cortesia de uns amigos que quiseram ajudar a traduzir a funcionalidade dos antigos objetos. Tal como tantas pessoas da sua geração, o país só lhe deu a completar a terceira classe na antiga Escola da Cortinhola, freguesia de Benafim. «A minha vida era esta, de campo. Primeiro lavrava-se a terra e semeava-se o milho. Depois, colhia-se, ceifava-se, debulhava-se e limpava-se no joeiro», recorda apontando para um tipo de perneira de vime sem furinhos, que servia para separar as sementes do joio. «Quando queríamos fazer farinha, mandávamos moê-la. O moinho do Malhão e o do Guicho eram do meu avô. O meu pai tinha um moinho de água na ribeira do Coelho. Eu era miudinha e já fazia a farinha. Só mais tarde é que o meu pai instalou um motor e era eu e o meu irmão que o púnhamos a trabalhar». 

Outra relíquia interessante é um alqueire, uma caixa de madeira que servia de unidade agrária para os cereais, além de vários pesos, diversas mós, uma balança e alguidares de barro, «que serviam para fazer e levedar a massa para o pão, mas também para se prepararem as carnes para os enchidos ou para lavar alimentos», assegura Maria Alice.

Ao lado, repousa uma máquina de costura antiga. «Ainda trabalha, só não puxa bem para trás. Esta é do museu, mas em casa tenho outra. Já só faço é baínhas de calças», assegura. Quem lhe ensinou os dotes da costura e até dos bordados foi a mãe, mas muito do que ainda sabe também foi aprendido de forma autodidata «Era para ter ido aprender com as costureiras, mas como vivia no Sobradinho (Alte), não tive oportunidade porque era longe. Sabe como aprendi a fazer uma algibeira nas traseiras de umas calças? Tinha um irmão mais novo, com menos 12 anos. Era eu que lhe fazia a roupa. Um dia pediu-me umas calças com algibeira atrás. Como não sabia fazer, tive que desmanchar umas que já tinha. Foi assim que aprendi», recorda. Diversas colchas de crochê e bordados expostas comprovam os seus dotes de corte e costura.

E há ainda outras curiosidades, algumas já em desuso. «Este objeto servia para encher chouriços, algo que fazia muitas vezes. Matávamos o porco, fazíamos os enchidos e também era aqui que secavam». Era também naquele espaço onde o falecido marido de Maria Alice destilava aguardente de medronho. «Quer provar este que tenho aqui? Ele fazia-os no bico do fogão, mas também nestes alambiques grandes. Só que para se poder fazer, era preciso licença. O meu marido só fazia para nos entretermos nos serões do inverno», lembra.

Na parede do corredor, uma fotografia salta à vista. Maria Alice tem ao colo uma raposa. «O meu marido era guarda florestal na Reserva da Quinta do Freixo e encontrou uma raposa ferida. Trouxe-a para casa, curámo-la aqui, criámo-la e depois devolveu-a ao campo», conta sorridente.

«A vida do campo era assim. Tinha bezerros, coelhos, galinhas, ovelhas, cabras e porcos. Também tomei conta das ovelhas prenhas», recorda enquanto exibe um pequeno redil dentro do seu museu. E também teve mulas. «Às vezes, o palheiro estava cheio com quatro e cinco. O meu marido comprava e vendia-as, antes de ser guarda florestal». É por isso que também não faltam artefactos dessa altura: cabrestadas para puxar carroças, cangas, arados, cangalhos, balancins e antre-olhos de palma, feitos à mão por Maria Alice «O cangalho punha-se na mula para se ir buscar àgua à fonte e poder trazer quatro cântaros de uma só vez. O balancim punha-se na nora e os antre-olhos punham-se na vista da mula quando estava a puxá-la. Ela não podia ver que estava a andar à roda, se não ficada tonta, então os antre-olhos serviam para lhe tapar a visão», explica.

A estes objetos juntam-se outros tantos que, a maioria das pessoas, já começa a desconhecer: cucharros de cortiça, cantis de cortiça, ferros de passar em metal e mantas de lã feitas em tear. Todos com várias décadas de existência, outros que chegam a ter mais de 100 anos, «porque já vinham dos meus sogros». 

E porquê criar um museu? «Ninguém me deu a ideia. Todas estas peças estavam no quintal a estragar-se e já tinham ferrugem. Comprei um produto próprio, deitei-lhe um óleo para se irem mantendo e pintei algumas. Esta casa não tinha teto, mandei tapar, caiei a casa e fui colocando aqui as peças à medida que as ia arranjando. Quando as pessoas iam passando por aqui, diziam que estava a criar um autêntico museu. Começou assim. E nunca foi para ganhar dinheiro! Qualquer pessoa pode entrar, quem quiser deixar uma moedinha e comprar algumas das minhas peças de empreita, agradeço que é para pagar a luz», responde Maria Alice.

Para o futuro é que já não há uma resposta certa. «Não tenho filhos e já só tenho um irmão que vive em França com a família. Daqui a uns anos já cá não estou e não sei o que vão fazer a tudo isto», admite.

Até lá, a octogenária promete continuar a dar a conhecer a sua história e a da aldeia da Penina, sendo que o seu trabalho de guia turística não se esgota aqui. Maria Alice faz também questão de dar a conhecer, ruas abaixo, uma chaminé algarvia que data de 1821. «É de uma prima minha, é a mais antiga da aldeia e, possivelmente, do Algarve inteiro».

A lenda da Rocha da Pena

Maria Alice Ferreira tem 81 anos e criou um pequeno museu na Penina, aldeia onde vive desde os seus 20 anos. Da aldeia, avista-se a conhecida Rocha da Pena, uma das elevações do barrocal algarvio, que atrai muitos turistas e adeptos de caminhadas. Para Maria Alice, não faz sentido que essa elevação calcária classificada como Paisagem Protegida Local não se chame Rocha da Penina, dada a sua localização. Ao barlavento, explica aquele que acredita ser o verdadeiro motivo para o seu nome. «O meu sogro é que me contou o porquê do nome da Rocha, mesmo quando a Penina se encontra mais perto. Ele dizia-me que já ouvia esta história dos seus avós, porque esta aldeia tem muitos anos. Antigamente, não havia tribunais, nem guarda ou polícia. Cada aldeia tinha um cabo-chefe, uma pessoa que se encarregava da justiça, porque não havia mais ninguém que castigasse quem fazia o mal. Ele contou-me que as pessoas que matavam alguém, ou faziam coisas perigosas, tinham uma sentença dada pelo cabo-chefe. Essa sentença era mandar os malfeitores da Rocha para baixo. Era essa a pena que se dava na altura. Por isso é a Rocha da Pena. E atenção que isto já era dito pelos bisavós do meu sogro», afirma.

Percurso não passa pelo museu

Para Maria Alice Ferreira, há ainda um sonho que falta ser concretizado no seu museu privado. O aspirante a Geoparque Algarvensis, que integra territórios de Albufeira, Loulé e Silves, tem atraído cada vez mais visitantes àquela aldeia, até porque um dos percursos pedestres tem passagem na Rocha da Pena e na aldeia da Penina.. No entanto, não passa pelo museu. «Todos os dias vêm pessoas à Penina para fazer o percurso, mas nem todas param aqui porque a sinalética não coloca o percurso na minha rua. Na Junta de Freguesia [União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim] disseram-me que iam fazer um percurso a passar pelo meu mini museu, mas não fizeram, só passa pelo deles», referindo-se ao outro que existe na aldeia, gerido por aquela autarquia.

Festa da Penina regressa este ano

Ouvida pelo barlavento, Dália Paulo, diretora municipal da autarquia de Loulé, recorda que «a Festa da Penina surge na primeira edição do Geopalcos (2021), com uma alegria e vontade de fazer, de criar empatia e afeto com as pessoas e com o território. Isto é o espírito Geoparque. Desafiámos e fomos surpreendidos com a força das pessoas, o orgulho e a criatividade deste lugar especial. A festa alia os de fora e os filhos da terra, numa ligação com o património natural e cultural, que transformam este lugar e que são um ativo fundamental no processo de candidatura do aspirante Geoparque Loulé-Silves-Albufeira e embaixadores desta ambição de ter a chancela UNESCO. A edição deste ano é, igualmente, fabulosa e diversificada. Contamos com todos e encontramo-nos na Penina».

Fotos: João Lázaro