Gorjões vai ser polo cultural de cinema etnográfico, literatura e teatro

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Projeto da Associação Casa-Museu José Pinto Contreiras será apresentado no sábado, dia 19 de novembro, nos Gorjões.

Cerro acima, num pequeno sítio no barrocal algarvio, onde a terra começa a querer tocar o céu, Adolfo Contreiras, 82 anos e o irmão Adão, 78 anos, homens de cultura, das artes e letras, doaram no ano de 2021, tudo o que têm à Junta de Freguesia de Santa Bárbara de Nexe.

Em paralelo, fundaram uma associação que irá gerir e dinamizar todo o espólio, num projeto cultural que honra a memória do progenitor, José Pinto Contreiras.

«A ideia era perpetuar a versatilidade do meu pai, que foi empreiteiro, comerciante, pedreiro e padeiro», um verdadeiro homem dos sete ofícios. Construiu a primeira casa em 1915 e quando regressou da Primeira Grande Guerra fundou comércio e fomentou a vida social. «Tinha uma visão de continuidade e investiu aqui todo o dinheiro que ganhou», diz Adolfo.

O projeto, contudo, já é antigo e arrastou-se no tempo. Primeiro, «pensámos em criar uma fundação e sondámos se o município de Faro teria interesse», ainda no tempo do presidente Macário Correia. Com a saída do autarca, nada avançou.

«A fundação seria sempre da família, como administradores. Mas durante o governo de Passos Coelho, a legislação mudou e muitas fundações acabaram por não avançar, porque a nova lei exigia 100 mil euros de fundos», embora isso não fosse um obstáculo para a concretização. Anos mais tarde, o atual executivo também não se interessou por motivos jurídico-legais. Como alternativa, surgiu a ideia de criar uma Casa-Museu com a doação patrimonial à autarquia mais próxima.

Ao barlavento, Sérgio Martins, atual presidente da Junta de Freguesia de Santa Bárbara de Nexe, afirma que «sempre manifestei a opinião de que a Câmara Municipal de Faro seria a entidade ideal, com mais recursos e pessoal para receber e dinamizar tal património. Agora já foi tudo escriturado com usufruto em vida dos doadores. Entretanto, os irmãos e alguns familiares e amigos decidiram formalizar uma entidade para dinamizar o património doado e a atividade cultural, sempre em conversações connosco. E assim foi».

Para o autarca da CDU, «ao nível local, esta é uma causa maior. Tem um grande um impacto. A doação de um vasto património edificado, além dos valores artísticos que contém, é muito significativa. Diria mesmo que é um marco no desenvolvimento cultural da região».

E detalha que «no futuro, tudo será vocacionado e virado para residências artísticas, para pessoas que procurem um sítio onde desenvolver cultura, seja música, pintura, teatro ou literatura. Há ainda uma infraestrutura coletiva, isto é, a antiga Sociedade Recreativa que tem um grande salão e ainda uma galeria de arte. Tudo isto tem um potencial marcante para o concelho de Faro até mesmo para o Algarve».

E porque não ficou a Associação Casa-Museu José Pinto Contreiras (ACMJPC) com a propriedade de todos os bens?

Responde Adão Contreiras: «sempre fui contra essa ideia. A assembleia geral de uma associação é soberana de acordo com determinadas maiorias. A qualquer momento pode mudar os estatutos e vender tudo». Por outro lado, a questão que se coloca é se no futuro for eleito um autarca que não tenha interesse em cultura, ou que veja nisto uma oportunidade de negócio?

«O texto final que foi acordado com a família e aprovado em Assembleia de Freguesia, veda a alienação e a utilização do património para outro fim que não seja cultural. Poderá vir um outro presidente e um outro executivo que não queira lá desenvolver nada, mas alienar a propriedade, não pode. Foi escriturado que a doação tem o acompanhamento de um grupo de amigos e familiares, a quem anualmente a Junta terá de reportar o que se passa. Esse grupo não pode obrigar nada, mas tem o poder de fiscalização e poderá insurgir-se, emitir comunicados e esclarecer a população», sublinha Sérgio Martins.

Ou seja, «os mecanismos de salvaguarda estão assegurados com a criação da ACMJPC. Assumi também um compromisso de honra pois quando deixar de ser presidente, continuo como sócio e tudo farei para que se cumpram os objetivos», conclui o autarca.

«Estamos a pensar na boa-fé das pessoas. Tem de haver confiança, senão nunca nada se faz», diz Adolfo. Além disso, «as Juntas de Freguesia têm as suas assembleias que são públicas e as pessoas podem mobilizar-se», no caso de de um futuro presidente pensar em negociatas.

Um pouco de história

«O nosso pai foi um homem muito empreendedor. Nasceu em 1883 e aos 20 anos já era capataz geral. Terminou a instrução primária em Santa Bárbara de Nexe, ia para a escola por caminhos de cabras, e aos 12 anos foi trabalhar com o nosso avô e um cunhado dele. Foram talvez dos primeiros empreiteiros de estradas do Algarve. Fizeram caminhos e pontes no final do século XIX. Como sabia ler e escrever bem, aprendeu cedo a interpretar os projetos», recorda Adolfo.

Antes de ir para a frente de batalha da Primeira Grande Guerra, José Pinto Contreiras construiu a primeira casa nos Gorjões, com o propósito de montar uma taberna. Depois, no regresso, fez mais casas e montou uma mercearia. A seguir, fundou uma padaria e também tomou algumas empreitadas de estradas por conta própria. «Nós quase que nascemos na mercearia. A nossa avó punha-se à espreita e alertava: ó Zé, olha que os moços estão a roubar os rebuçados todos!».

Nessa altura, vivam juntos seis irmãos germanos: Adão, Eva, Adolfo, Graciete, Wenceslau e Raúl, estes dois últimos já falecidos, embora o pai tivesse ainda dois filhos da primeira esposa, falecida na pneumónica.

Os negócios foram um êxito. O jovem Adolfo ainda andou a distribuir pão, numa bicicleta a motor, até aos limites de Faro. Estudava no Liceu e ao fim de semana tinha de deixar pronta a levedura para os padeiros.

«A mercearia era um centro comercial. Vendia materiais para os sapateiros, botões para os alfaiates, azeite, petróleo, carvão, barros, vidros, sardinhas coradas, era um mundo» que já não existe, recordam.

No início, «havia apenas um carro de mula com um telhado de zinco. Tínhamos um empregado e nós, miúdos, íamos muitas vezes com ele» até à Falfosa, já que a venda do pão era regulada para evitar concorrência de proximidade. Após a Revolução dos Cravos, o pai integrou uma cooperativa e a padaria fechou. A mercearia ainda se aguentou até finais dos anos 1980.

Pauta manuscrita pelo célebre acordeonista algarvio José Ferreiro (pai), que compôs a marcha da Sociedade Recreativa Gorjonense. Já o hino tinha letra de António Aleixo.

Cultura que se quer viva

José Pinto Contreiras «quis instalar-se aqui e desenvolver este sítio. Ainda se vivia com uns comportamentos tipo idade média. Os bailes eram nos armazéns de vinho e acabava sempre tudo bêbado e à cajadada. O meu pai esteve em Armentières, viu como é que os franceses viviam e se organizavam», acrescenta Adolfo. Nos anos 1940, construiu-se o salão da então já existente Sociedade Recreativa Gorjonense. O objetivo era «era elevar o nível e civilizar o povo. Portanto, todo este nosso projeto hoje se enquadra no objetivo original, de trazer para cá cultura».

Depois, na década de 1960 houve a imigração, o êxodo rural e a velha coletividade foi abandonada e o prédio restituído à família. Hoje albergará a Casa-Museu.

Segundo Helder Raimundo, ex-professor da Universidade do Algarve e coordenador de projetos, a ACMJPC «será generalista, mas com foco em projetos muito concretos» nas áreas do cinema documental amador, do teatro comunitário, da música e das artes plásticas.

Os irmãos Contreiras acumularam milhares de livros e discos. Mas «queremos que esta seja uma casa-museu ativa, e não uma casa de coisas mortas», diz Adolfo que faz filmes amadores desde o início dos anos 1980. Já o irmão Wenceslau tinha uma máquina de filmar de 8 milímetros, cujos filmes, na altura, tinham de ser enviados para a Alemanha para serem revelados em laboratório.

O primeiro documentário que fez foi aquando da visita da Rainha de Inglaterra, Isabel II, a Lisboa, em 1957. «Filmou a passagem da caravana da monarca pela Avenida de Roma», diz.

«A ideia é obter doações ou empréstimos para podermos digitalizar e divulgar filmografia de caráter etnográfico e documental, de autores amadores ou semiprofissionais que documentaram o Algarve nas suas diversas facetas sociais e culturais. Há modelos jurídico-legais para podermos fazer isso», acrescenta Raimundo. Aliás, um trabalho que já está a ser feito, através de uma recente «Mostra de Cinema Documental e de Ensaio», mostras de cinema itinerantes, em Faro e Loulé.

«A longo prazo, e estamos a falar em 10 anos, queremos ter aqui um centro de cinema documental e etnográfico, entre as décadas de 1950 até à contemporaneidade», explica.
«A partir dos anos 1940 houve muita gente a filmar aqui no Algarve. Mais tarde queremos até trabalhar a um outro nível», ambiciona.

E para a Galeria do Alto? Responde Adão, artista, formado em Belas-Artes, ex-professor e fundador da Galeria Margem, em Faro. «Tenho uma grande coleção de pintura, escultura e desenho. Foi sempre uma preocupação não dispersar a obra nem deixar desaparecer ingloriamente. Uma das primeiras coisas que fizemos foi entrar em contacto com o Museu Municipal de Faro e fizemos um inventário do acervo. As obras podem ser expostas conforme a programação» no futuro. Há ainda a ideia de pertencer a uma rede regional de intercâmbio. Para já, ainda não está definido quem irá abrir e fechar portas de tudo isto. «Prevemos que no futuro próximo teremos que empregar uma pessoa», diz Adolfo, embora as galerias em mundo rural funcionem sobretudo ao fim de semana.

Regras de conduta.

No campo da literatura, a ideia é que os Gorjões sejam um polo da Biblioteca Municipal de Faro, o que permitiria «tratarmos dos livros do ponto de vista técnico e científico, inventariar, catalogar», além de um trânsito de acesso público de obras, sugere Raimundo.

E também se aceitam doações. Foi o que fez Natércia Madeira, que deu o espólio em memória do pai Manuel Madeira. «Foi um resistente antifascista, pertenceu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD) e foi muito amigo do poeta António Ramos Rosa», descreve Adão.

E a agenda para 2023? «Temos um plano de atividades. Vai ser um ano de reforço. A associação está registada como editora de livros para 10 ISBN». A direção já tem alguns contratos-programa assinados e o objetivo é encetar candidaturas para financiar os vários projetos previstos.

Ao longo de novembro, está em marcha o projeto «A construção do lugar do Alto», em parceria com o Colectivo Janela Aberta Teatro (JAT), com foco nas memórias sociais e culturais dos naturais ou residentes do Sítio dos Gorjões. O objetivo é criar um trabalho cénico para apresentar até final do ano.

Na apresentação de sábado, dia 19, será distribuído o livro «A Pequena Grande Utopia» de Adolfo Pinto Contreiras, sobre a vida do pai e haverá um cocktail com música jazz do contrabaixista Zé Eduardo, que é residente permanente nos Gorjões.