Forno oleiro do século XVI descoberto na baixa de Faro

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Achado é o único do género a aparecer na capital algarvia e intrigou os arqueólogos. Forno oleiro terá servido para produzir cerâmica de mesa no século XVI.

Estava entre muros e a pouca profundidade, na Rua Tenente Valadim, artéria nobre da baixa da capital algarvia. Falta-lhe a grelha, algumas das arcadas de suspensão da grelha, e a câmara de cozedura, mas com mais de 500 anos é uma relíquia industrial que impressiona.

Paulo Botelho, da Engobe – Arqueologia e Património cultural, Lda, empresa que tem a cargo o acompanhamento da obra de uma futura unidade de Alojamento Local (AL), confirma que este «é o primeiro forno do século XVI que aparece em Faro assim conservado. Há ainda que ter em conta os dados sobre a produção local de cerâmica que recolhemos e que não eram conhecidos até ao momento».

«A questão dos fornos é interessante porque revela uma pujança industrial num determinado momento histórico. A grande parte das cerâmicas de consumo em contexto de meados do século XVI eram locais e regionais. Faro pode até não ter tido uma grande produção de larga escala. Há outras cidades algarvias com tradição oleira, como por exemplo Lagoa, Silves e Tavira. São mais próximas do hinterland, onde abunda a matéria-prima (barro), como é o caso de Tavira, com portos e boas relações comerciais com as Praças norte-africanas. O que isto demonstra é que houve dinamismo industrial comparável com outras cidades algarvias que, nesta altura, estavam a encerrar as suas olarias que teriam mais relações com o norte de África. É precisamente a partir da segunda metade do século XVI que Portugal perde algumas praças e que o comércio começa a ser mais contido», acrescenta o arqueólogo Fernando Santos ao barlavento.

Durante as sondagens prévias «encontrámos evidências desta exploração industrial oleira, descartes e zonas de grande acumulação de cinzas. Possivelmente, algures por aqui, existiriam mais fornos. Por norma, e até pela natureza destas estruturas, elas têm uma vida útil que não é muito prolongável» devido à erosão pelo calor, explica o arqueólogo.

«Começam a ficar instáveis e quando isso acontece, o normal é encerrar-se o forno e continuar o trabalho num outro. Ou então refaziam-nos. Aliás, encontrámos aqui vestígios de reconstrução. A tipologia destes fornos é bem conhecida», mas nem por isso deixa de ser um achado espantoso, sublinha Fernando Santos.

No entanto, não se encontrou nenhuma cerâmica intacta. «Encontramos vários cacos que podem estar relacionados com a última fornada», que se estima ter acontecido no início do século XVII. E que tipo de cerâmica era feita na baixa de Faro?

«Sobretudo utensílios de cozinha, como tachos, tampas, caçoilas e pequenos candis para iluminação. Nesta época, a cerâmica de mesa não é muito diversificada. A produção destas olarias de cerâmica comum não vidrada acabava por se cingir a um pequeno conjunto de três ou quatro formas, e a especializações. Estamos a falar em coisas simples, corriqueiras para uso quotidiano. Barros para serem usados até à exaustão», detalha Fernando Santos.
«O que conseguimos ver noutros sítios arqueológicos são lixeiras carregadas destas cerâmicas que quando se partiam eram descartadas», tal e qual como na atual sociedade de consumo. «Esse era o segredo do negócio destes oleiros», ironiza.

No início de julho, a equipa identificou uma pequena parte da estrutura. Depois, com o apoio do promotor da obra, foi alargada a área de prospeção de forma a que os arqueólogos pudessem escavar o forno e colocá-lo à vista.

Curiosamente, estava a poucos metros de onde foi encontrado, também durante os trabalhos de acompanhamento de obra e escavação arqueológica, um antigo dado romano.

«Também encontrámos alguns vestígios de época romana. Não há estruturas mas depósitos e aterros. Ficam a uma cota mais profunda daquilo que esta obra precisa. Sabe-se o que existe, está registado, mas não é necessário escavar mais porque não se vai destruir nada», aponta.

Os materiais empregues na construção do forno quinhentista «não serão de muito longe. Estamos a falar de pessoas que eram muito eficientes. Não perdiam muito tempo a ir buscar matéria-prima a sítios distantes. No entanto, também sabemos que não existem nesta zona da cidade, é preciso entrar um pouco mais para o hinterland. Ainda hoje temos toponímia antiga que nos remete para de onde terá vindo a argila ou outras matérias. Estou a lembrar-me da zona dos Caliços, por exemplo», diz Fernando Santos.

Por lei, quando surge algo relevante, é dado conhecimento à Direção Regional de Cultura do Algarve. «O primeiro procedimento é comunicar a identificação do achado. Importa perceber o que é e de que época poderá ser. Ou seja, o enquadramento cronológico e tipológico da estrutura e dos contextos identificados. A arqueologia que se desenvolve nestas operações urbanísticas é a de salvamento, para criar uma solução de salvaguarda para os bens patrimoniais», detalha.

Neste caso, o arqueólogo enaltece «ter havido sensibilidade por parte do promotor da obra para alterar o projeto de forma a que o forno não fosse impactado» pela construção do novo edifício.

«Ficámos com um registo gráfico, fotográfico e tridimensional para dar esta informação à sociedade. As medidas de minimização a aplicar são adequadas quer ao tipo e à profundidade da intervenção, quer ao conhecimento científico que se tem da zona. E temos uma base muito ponderada sobre quais as possibilidades de salvaguarda», diz ainda Fernando Santos.

E quais são? «Tendo-se adaptado o projeto a esta pré-existência, o forno será coberto com uma tela de proteção e aterrado com inertes finos. É a garantia que ficará aqui como reserva arqueológica e não será destruído».

Na opinião dos arqueólogos seria difícil encontrar uma solução expositiva para que o forno quinhentista pudesse vir a ser visto. Por exemplo, um vidro transparente colocado por cima. E justificam: «estas argilas, que foram expostas continuamente a altas temperaturas não têm resistência mecânica alguma. Qualquer outra pretensão de valorização a descoberto poderia colocar um grande peso nos custos de conservação e manutenção de estruturas que são muito, muito frágeis. Temos o nosso registo, bastante aprofundado e por isso a melhor forma de conservar o forno é devolvê-lo à terra. Assim garantimos que ficará intacto para as gerações futuras, que poderão vir a ter outras tecnologias» para o estudo da arqueologia.

«A partir do momento em que estão num ambiente mais controlado, começamos a ter fungos, líquenes e vegetação. Implica haver uma contínua manutenção. Tem de considerar o quanto gostamos destas estruturas e o quanto gostamos que elas continuem a existir. Existem hoje outras formas de as trazer para o presente, por exemplo, através de suportes multimédia em 3D», conclui Fernando Santos.

Boas práticas de reabilitação urbana

A Retrosaria Cristina, ou Casa Cristina, como também era conhecida era um dos ícones da baixa de Faro. O andar de cima foi também ocupado pela Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA) e ainda lá está a placa afixada por quatro parafusos e o cofre embutido na parede. Não sabendo bem ao certo o que aconteceu, a verdade é que em 2019, John Afonso e as duas irmãs compraram, por leilão, o imóvel no número 20 da Rua Tenente Valadim. «Juntos, queríamos ter um projeto na cidade que nos viu crescer», conta.

Só viram, contudo, o estado de conservação em que se encontrava depois de concluído o negócio. «Havia algumas fotografias e pensei que precisasse apenas de alguns retoques. Depois de ter a chave na mão, a entrada foi um choque! Estava em condições tão paupérrimas que foi preciso uma demolição total. Até havia amianto que teve de ser removido», recorda o proprietário. A reabilitação urbana de imóveis devolutos na baixa da cidade é um processo delicado. A descoberta do forno quinhentista foi só mais uma variável.

«Sempre apelei que as questões da arqueologia pudessem pesar na parte burocrática e financeira da obra. Mas estou disposto a assumir as alterações ao projeto. Isto só anda para a frente depois de feito todo o levantamento que é importante e que pode até trazer alguma mais-valia à propriedade», sublinha ao barlavento. Na prática, «surgiu a possibilidade de se construir uma moradia bifamiliar que, por força daquilo que será uma obra custosa, terá de se transformar num Alojamento Local. Terá sete quartos e um apartamento isolado tipo duplex, com três quartos», revela.

A Área de Reabilitação Urbana (ARU) da Mouraria impediu que a fachada original fosse demolida, mais uma dificuldade para a obra, mas que com o passar do tempo, também poderá transformar-se em riqueza. «É o que fará daqui por uns anos termos um centro histórico de qualidade», sublinha o arqueólogo Fernando Santos.