Faro vai ter memorial a história heróica da Segunda Guerra Mundial

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Ao fim de 12 anos de persistência, Michael Pease, residente britânico em Lagos, vai dar corpo a um memorial em homenagem aos pescadores farenses que salvaram aviadores norte-americanos ao largo de Faro no inverno de 1943.

Os ventos da guerra sopravam violentos numa Europa a ferro e fogo.

Na noite sem lua de 30 de novembro de 1943, o pescador farense Jaime Nunes estava no mar, à corvina, a cerca de 12 milhas ao largo da ilha de Faro, com o compadre, José Mascarenhas, e o filho deste, o jovem Manuel, num frágil barco a remos.

Primeiro, ouviram o ronco de motores a cortar o silêncio. Depois um estrondo. Fumo, óleo, chamas e gritos.

Um PB4Y-1, versão da Marinha Americana do famoso bombardeiro B-24 Liberator, que combatia submarinos alemães, despenhara-se depois de sobrevoar Quarteira e Faro.

O avião, vindo da base de Port Lyautey, em Marrocos, perdeu-se e ficou sem combustível.

Dos 11 tripulantes a bordo, cinco perderam a vida na amaragem. Embora assustados, Nunes e Mascarenhas socorreram de imediato os aviadores caídos e feridos.

Deram-lhes tudo o que tinham, o farnel e as roupas secas de agasalho. Tiveram que esperar a maré favorável para o regresso, num esforço terrível para governar o barco sobrelotado.

Os heróis de Faro. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, os portugueses salvaram milhares de vidas no mar.

Chegarem ao porto de pesca às 03h15 horas de 1 de dezembro.

Os americanos foram levados para o Hospital da Misericórdia, mesmo ali em frente à doca de Faro.

Um oficial da delegação naval dos EUA mudou o registo do local do acidente para fora das águas territoriais com o objetivo de contornar os acordos de neutralidade e permitir o repatriamento da tripulação graças ao estatuto de náufragos.

De outra forma, teria que ficar internada em Portugal até ao final do conflito. Salazar fechou os olhos e Jaime Nunes e José Mascarenhas, apesar da coragem, nada ganharam, nem viram o mérito reconhecido até muitos anos mais tarde.

Esta história só veio a público em julho de 1999, devido à persistência do jornalista Carlos Guerreiro, investigador da Segunda Guerra Mundial.

O britânico Michael Pease, residente de longa data em Lagos, ficou tão emocionado com este episódio que pensou que nunca deveria ser esquecido.

Assim, desde há 12 anos que tenta implementar um memorial, em Faro, onde tudo aconteceu.

Bateu a mil e uma portas para arranjar financiamento e até o propôs o projeto ao Orçamento Participativo Portugal (OPP) em 2018.

A jornada, contudo, está quase no fim. Se tudo correr bem, o monumento poderá vir a ser inaugurado em setembro.

Coube a Marco Cristovam, 44 anos, ferreiro há 23, e ao seu aprendiz Crestin Razvan, 28 anos, dar-lhe forma, em Loulé.

Marco Cristovam e Crestin Razvan.

«O Michael Pease descobriu- nos, veio ter connosco e propôs-nos apresentar um objeto que representasse o memorial. Entretanto, desenvolveu- se a ideia e o conceito», que demorou quatro anos a construir e está agora na última fase, conta Marco Cristovam ao barlavento.

Explicado de forma simples, «o objeto que criámos é uma chapa com 2,5 toneladas de ferro industrial, toda desenhada e recortada à mão. Representa uma onda a passar por cima de um pequeno barco e os pescadores a resgatarem os aviadores», conta o ferreiro.

No ferro, foi esculpido ao detalhe, com maçaricos de plasma, um desenho original da escultura Toin Adams, residente em Loulé, feita para este projeto desde o início.

Recortá-lo foi um trabalho minucioso que «precisou de muito amor e paciência. Eu, devido à minha qualificação com as máquinas, fiz todos os cortes e soldas. Os aspetos técnicos são minha responsabilidade», diz Cristovam.

Estamos a falar de uma peça de três metros de altura por seis de comprimento, que será «ainda mais elevada. Terá cerca de quatro metros de altura e oito de comprimento. É como se fosse uma fotografia cortada às tiras e disposta numa posição que joga um pouco com a noção da perspetiva. Agora será tudo zincado, protegido e tratado com uma cor que brinca com a perceção do negativo e do positivo», descreve.

O memorial em ferro tem vindo a ganhar forma desde maio de 2020, embora, com algumas paragens no processo, justificadas pelo contexto pandémico.

Ao barlavento, Michael Pease sublinha que foi fundamental o apoio de várias entidades oficiais para conseguir o orçamento, que ronda os 40 mil euros.

Muitos foram os filantropos que se juntaram à coleta, além de todo o tempo e dinheiro que investiu.

«Não quero ficar por aqui. A ideia é que o município de Faro convide o Governo Regional do Açores para a inauguração do memorial. Faria sentido replicar esta ideia naquele arquipélago, onde os portugueses regataram do mar mais de 2000 pessoas durante toda a Segunda Guerra Mundial», aponta.

Pease deu também conhecimento do projeto ao Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.

Por sua vez, o autarca farense Rogério Bacalhau, disse ao barlavento que «há ainda um conjunto de trabalhos preparatórios a realizar» antes de a cidade poder acolher a obra.

«Mas do ponto de vista histórico, faz todo o sentido termos esse memorial. O promotor veio falar connosco e achamos a ideia muito interessante. A obra está muito bem conseguida e nesse sentido já atribuímos um apoio».

Bacalhau não quis ainda apontar uma data, até porque não quer que as eleições autárquicas que se aproximam, de alguma forma, se imiscuem em algo tão simbólico que nada tem a ver com política local.

Segundo Pease, só falta definir o local exato, que será algures entre a doca e o Jardim Manuel Bivar.

Resta dizer que a obra é inspirada numa escultura de homenagem a Nelson Mandela, que está em Howick, na África do Sul.

Uma história da humanidade

Carlos Guerreiro, jornalista e investigador da Segunda Guerra Mundial, ainda conheceu o pescador herói Jaime Nunes, que lhe foi apresentado pelos netos.

Mas queria ouvir a história pelos aviadores resgatados.

«Escrevi umas cartas desgarradas para os Estados Unidos sem grandes resultados. A Internet veio mudar tudo. Publiquei a história numa página de veteranos da Segunda Guerra Mundial e houve uma alma caridosa que revirou primeiro os arquivos americanos do Exército e depois da Marinha para descobrir a história deste voo. Um envelope chegou-me às mãos com uma cópia do relatório oficial do desastre. Continuava, com mais dados, a busca pelos sobreviventes».

«Enviei cartas para aqui e para ali e finalmente consegui localizar Lyle Van Hook (um dos sobreviventes do acidente) em 1998. Van Hook contou-me como se tinham perdido e, sem combustível, tentaram aterrar, noite cerrada, naquilo que pensavam ser uma praia. Então, tornei-me no canal de ligação entre Van Hook e Ti Jaime e em junho de 1999 consegui colocá-los frente a frente, com as despesas a sair do bolso da Embaixada Americana. Foi apenas uma videoconferência, mas seria difícil um encontro pessoal entre duas pessoas de idade avançada e com problemas de saúde. Van Hook agradeceu comovido ao seu salvador e o Ti Jaime, recebeu uma placa de agradecimento da Marinha Americana», recorda.

Esta seria uma das histórias imortalizadas no livro «Aterrem em Portugal», editado no final de 2008.

Ao barlavento, Carlos Guerreiro manifesta-se «muito satisfeito» pela concretização do projeto de Michael Peace, que também acompanha desde o início, e refere que os portugueses salvaram centenas de vidas, beligerantes e não beligerantes durante os anos do conflito.

Coletivo de ferreiros quer singrar nas grandes obras

Estão juntos desde 2018. Marco Cristovam nasceu na África do Sul e veio para Portugal em 1986, ainda criança. Morou em vários pontos do país e da região, «até que os meus pais assentaram aqui em Loulé».

Já Crestin Razvan, licenciado em Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, «sem ser romeno sou algarvio. Nasci na Roménia, vim para cá com oito anos de idade. A primeira morada em Portugal foi na EN125, nas Quatro Estradas. Sempre estive no concelho de Loulé», diz.

Cristovam acabou o ensino secundário e foi logo trabalhar. «Iniciei-me como aprendiz de ferreiro em 1999, numa empresa que tinha dois mestres, a Ferro Design, perto do Perragil. Fiz uma aprendizagem e depois comecei o journament (uma tradição dos ferreiros de fazerem uma viagem ao longo de sete anos para conseguirem adquirir conhecimentos e passar pelo maior número de mestres que conseguirem)».

Acabou por regressar mais cedo devido a problemas de saúde.

«Trabalhei em atividades artísticas porque também tenho background de música e teatro, arte no geral. Em 2014 voltei a trabalhar o ferro. Tenho estado no ativo a tentar reivindicar a minha posição como ferreiro, num país em que não existe e está em vias de extinção».

Mas «juntos, como coletivo de artistas, temos a ambição de fazer projetos públicos de grandes dimensões».

Para isso, fundaram a Associação «The Imaginary Beings».

«O nosso objetivo é tornarmo-nos uma referência não só regional, como nacional e até europeu. Não nos queremos limitar, de maneira nenhuma», diz Crestin Razvan.

Para já, a dupla tem dois projetos em cima da mesa para Loulé. Uma escultura que mostre a importância da mina de sal-gema, outra de tributo às colheitas tradicionais do Algarve que são a alfarrobeira, o figo, a azeitona e a amêndoa.