Falta de água no nordeste alarma toda a região algarvia

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Abastecimento por autotanques no norte do concelho de Castro Marim acontece desde o início de julho. Mediatismo da medida é um alerta para a escassez do recurso, problema grave que pode mesmo vir a afetar toda a região algarvia.

São oito da manhã e já Florentino Guerreiro se faz à estrada. É um dos funcionários da Câmara Municipal de Castro Marim que tem como missão exclusiva levar 100 mil litros de água por semana ao norte do concelho. A tarefa ocupa-o cinco dias da semana, de manhã e de tarde. Sozinho, enche os tanques azuis num dos dois camiões do município destinados a esta tarefa. Leva 10 mil litros de água em cada viagem e recarrega várias vezes nas bocas de incêndio na sede das freguesias de Azinhal e Odeleite. Faz dois circuitos. Um às segundas, quartas e sextas-feiras, e outro nos restantes dias da semana.

«Por norma, ao fim de semana descanso. Mas se alguém telefonar a dizer que se acabou a água, lá vou eu. Às vezes acontece, quando há fugas. Passo muito tempo sozinho. Nos montes, já há pouco com quem conversar. Também me aborreço quando vejo pessoas a gastar a água na rega das hortas. Se não chover este inverno, não sei como vai ser. A barragem de Odeleite está quase vazia. As pessoas podiam poupar mais um bocadinho», diz Florentino Guerreiro.

Escassez do recurso é um problema grave para todo o Algarve.

Em boa verdade, o alarme soou no final de junho, conforme conta ao «barlavento» Victor Rosa, vereador da autarquia, licenciado em Engenharia Hortofrutícola pela Universidade do Algarve.

Nas 35 povoações que não estão ligadas ao sistema multimunicipal da Águas do Algarve, a disponibilidade de água é garantida através de sistemas autónomos que a captam no lençol freático.

No início do verão, contudo, foram detetados «índices na qualidade da água que não são admissíveis nos normativos de abastecimento, a nível de cloro, metais pesados e todos os elementos químicos» que fazem parte dos requisitos mínimos de análise da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).

«O nível de água no lençol freático foi diminuindo ao ponto de haver furos que ficaram secos, e outros cuja qualidade e salubridade já não serve para consumo», explica o vereador.

A partir de 10 de julho, «decidimos fechar os furos e levar água através dos nossos autotanques. Desde então, a autarquia faz esse trabalho de uma forma organizada, corrente, porque há também mais de 50 moradias isoladas que não têm, nem nunca vão ter autonomia de água».

A água potável é colocada em reservatórios, de 2000 a 3000 litros, que servem localidades que, em média, não ultrapassam a trintena de habitantes. A partir desses depósitos, uma rede local faz a transfega para as torneiras.

Embora esta operação só agora tenha chegado à esfera pública, «quem vive no território foi informado. Não fizemos disso notícia porque não foi tido como uma situação para lá daquilo que é o normal depois de dois anos de seca», numa zona de 200 quilómetros quadrados onde vivem cerca de 550 pessoas.

Victor Rosa, vereador da Câmara Municipal de Castro Marim.

Além disso, «neste momento, temos um investimento superior a quatro milhões de euros, em condutas para abastecer cerca de 28 desses 35 povoados, através do sistema multimunicipal da Águas do Algarve», acrescenta o vereador Rosa. Até ao final do ano, 15 povoações ficarão ligadas. O prazo para as restantes é março de 2020.

«É completamente irracional o transporte diário que está a acontecer. Tem vários impactes, além do financeiro, que não medimos porque não é essa a nossa primeira preocupação. Mas ficam desprovidos outros serviços como a recolha de resíduos sólidos urbanos porque os motoristas têm que andar nesta função e há uma intolerância geral por parte da comunidade. O impacte é gravíssimo a vários níveis», contabiliza Filomena Sintra, vice-presidente da Câmara Municipal de Castro Marim e responsável pelo pelouro das obras municipais.

«Para um município com uma estrutura orçamental pequeníssima, temos de arranjar subterfúgios financeiros, com receitas próprias, de forma a fazer o abastecimento de água a estas populações. E há consequências, como o despovoamento e o abandono destes territórios, ainda que acredite que haja um fator indutor de uma nova procura. Mas sem água, não há vida, nem as condições mínimas de qualidade e conforto que exigimos hoje», lamenta a autarca.

Castro Marim tem dois camiões dedicados ao transporte de água potável. Trabalham toda a semana.

«Discutir a seca, infelizmente, serve para quem está na cidade começar a pensar que um dia pode também ter este problema, o de não poder abrir a água da torneira», acrescenta.

«Um metro cúbico custa 0,45 euros ao consumidor final. Podemos dizer que 1000 litros de água da torneira custam 1 euro. Claro que para levar 800 litros de água a 30 quilómetros, não tem esse custo. Mas é uma questão social», remata Victor Rosa.

Barragem da Foupana, um desejo antigo

«Em termos de estudo científico está claramente comprovado o que vai acontecer ao nordeste algarvio em termos de seca e de pluviosidade. Então, deixemos de falar e fazer um mediatismo sobre a falta pontual da água e pensemos em soluções estruturantes», diz Filomena Sintra.

«No momento em que se expropriavam os terrenos para a construção da Barragem do Beliche, já estava em estudo e levantamento a Barragem da Foupana. É uma barragem cujo leito terá a mesma capacidade ou equivalente à Barragem de Odeleite. Mesmo analisando os impactes ambientais da construção de uma nova reserva de água, é preciso pensar que essa é a única forma de garantir vida neste território», acrescenta a vice-presidente.

Filomena Sintra, vice-presidente da Câmara Municipal de Castro Marim.

«Ou então, estamos a fazer um plano intermunicipal de adaptação às alterações climáticas do Algarve (apresentado recentemente pela AMAL) só para inglês ver. E no plano nacional de investimentos para o país não existe um único preconizado, a 10 anos, a este nível. Isto é preocupante».

Osvaldo Gonçalves, presidente do concelho vizinho de Alcoutim concorda. «O mais grave disto é que as soluções que deveriam ser encontradas para resolver o problema, não estão a ser postas em prática. Por muito que nós tenhamos dito que é fundamental aumentar a capacidade de retenção e de armazenamento de água, através da construção de pequenas e médias barragens, dá-me a ideia que isto é um pensamento muito próprio do interior», desabafa ao «barlavento».

«Temos identificado o sítio da barragem da Foupana, que tem uma capacidade provável de abastecimento de água de 100 milhões de metros cúbicos. Estamos a falar de uma bacia igual ou superior à de Beliche e que reforçaria todo este sistema intermunicipal e ajudaria a resolver os problemas futuros que vamos sentir no Algarve pela falta de água, sobretudo aqui nas zonas do Sotavento», acrescenta o autarca que não tem sofrido tanto com a seca.

«Este ano terminámos uma obra que custou quase um milhão de euros, financiada pelo PO SEUR, e levámos água a mais de 12 localidades. No entanto, sentimos a necessidade urgente de criar uma barragem aqui na ribeira da Foupana. Se hoje estamos com dificuldades naquelas que são as nossas captações subterrâneas, temo que se não chover, possamos vir a ter também problemas nas populações servidas pelo sistema multimunicipal», conclui Osvaldo Gonçalves.

Alcoutim abre polo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)
Osvaldo Gonçalves, presidente da Câmara Municipal de Alcoutim.

Para Victor Rosa, é «uma infraestrutura absolutamente necessária. Não sei se isso colide com o caudal mínimo que o Guadiana deve ter, uma vez que é um rio internacional, mas o modelo que os espanhóis utilizaram também não posso dizer que seja agradável, no que toca ao perímetro de rega de Lepe, que está a ser abastecido por uma barragem na zona de Mértola, quase a 40 quilómetros de distância. A questão de fundo é: que intervenção vamos nós ter no território numa perspetiva de horizonte? Se temos que fazer mais zonas de captação de barragens que permitam dispormos da água, temos que saber usar esse bem. As pessoas têm que perceber que não podem gastar água de forma desinteressada. A médio e a longo prazo, as medidas de salvaguarda das populações obrigam a que sejam feitas mais barragens, não estou a ver outra forma», remata o vereador da Câmara Municipal de Castro Marim.

E se não chover?

E se não chover, para quê investir numa ligação à rede intermunicipal? «Se começar a ser posto em causa o abastecimento à população através da rede, a estratégia a seguir terá que ser a reutilização de furos desativados que antes serviam os municípios», responde Victor Rosa.

O vereador explica que, comparativamente aos furos «em solos de xisto, nas linhas de rocha com capacidade de recarga muito curta» no norte do concelho, estas infraestruturas pesadas «têm outra massa de água, mas esta não é usada há 20 anos. A verdade é que ninguém sabe em que condições é que está». Se o clima não mudar, «temos um problema que será nacional e terá que ser entendido noutras instâncias», diz ainda.

O complexo Odeleite/ Beliche permite abastecer todo o perímetro de rega que começa junto a São Bartolomeu do Sul e vai quase até Moncarapacho. A agricultura está em crescimento no concelho de Castro Marim, que tem também alguns campos de golfe.

«A gestão das albufeiras está entregue a duas entidades, e se calhar há alguma disfunção: a Águas do Algarve e o Ministério da Agricultura, que através do perímetro de rega também tem alguma cota adstrita. A partir do momento em que o nível das barragens começa a pôr em causa a disponibilidade à população, a agricultura vai ter que ser sacrificada. Ocorre que no Sotavento há muitas áreas agrícolas novas de fruteiras. Não estamos a falar de produções de hortícolas que em poucos meses fazem o seu ciclo. Estamos a falar de fruteiras que levarão anos até estarem em produção e até lá tem de haver garantia de água», diz o vereador.

Um reservatório comunitário.

«A barragem de Odeleite está interligada com um túnel à do Beliche. A partir de determinada cota, é do Beliche que sai para todo o sistema. Tudo isto são artifícios que nunca foram utilizados até hoje. Não quer dizer que não sejam postos em marcha e mantidos. Nunca houve necessidade de o fazer. O mal é nós preocuparmo-nos com a falta de água quando ela não há. Aí já pouco podemos fazer».

Segundo os cálculos de Victor Rosa, deveriam chover, pelo menos, 150 litros de água por metro quadrado, para minimizar a atual situação de seca extrema.

«Em função do ano pluvimétrico, vamos decidir. Por norma, em outubro chove sempre. Agora há alguma humidade relativa, mas isso não vai resolver nada», remata.

Situação «ainda não é crítica» diz Águas do Algarve

Ouvida pelo «barlavento», Teresa Fernandes, porta-voz da Águas do Algarve, empresa gestora do sistema multimunicipal de abastecimento, explica que a situação ainda não é crítica.

«Estamos a iniciar o novo ano meteorológico. Nada nos diz que daqui para a frente vai haver seca. Não é estar a confiar apenas que chova, porque apesar de tudo, estamos com uma boa margem daquilo que é a quantidade de água disponível nas barragens. O que não significa que não estejamos preocupados e já a ver o que poderemos fazer no futuro, caso não chova».

Em relação à disponibilidade hídrica da região, a Águas do Algarve faz a captação a partir das barragens de Odeleite/ Beliche e Odelouca.

«Desde maio que estamos a fazer captações de origem subterrânea dos furos, principalmente no aquífero Querença – Silves. Sabemos que a quantidade de água que é necessária para abastecer a população algarvia, é cerca de 72 a 73 milhões de metros cúbicos. Essa é a quantidade que existe atualmente nas albufeiras. Contudo, as barragens de Odeleite/ Beliche não são exclusivas para abastecimento público, são também para rega».

Nesse pressuposto, «podemos garantir que até ao final do corrente ano temos água em quantidade e qualidade para abastecer toda a região. Apesar disso, estamos preocupados, atentos e estamos também com algumas situações que estamos a averiguar com a Águas de Portugal, com os acionistas, que são as Câmaras Municipais, para vermos quais as ações que podem e devem ser feitas», explica.

Teresa Fernandes, responsável da Comunicação e Educação Ambiental (CEA) da Águas do Algarve.

Hoje, «é fundamental que as pessoas tenham noção que, neste momento, as disponibilidades hídricas estão muito abaixo daquelas que seriam as desejáveis para esta altura do ano e que aquilo que fazemos nas nossas casas, com as nossas torneiras, é muito importante. Toda a água que não desperdiçarmos estamos a guardá-la para alturas de necessidades».

Falta de água no nordeste algarvio é a mesma há 25 anos

«Um paradoxo». É assim que Filomena Sintra, vice-presidente da Câmara Municipal de Castro Marim, classifica as recentes notícias sobre a distribuição de água por via de autotanques no concelho.

«O efeito da seca nas torneiras destas pessoas hoje é exatamente igual desde há décadas. Esta manchete regional serve para dizer que vivem esquecidas. Depois de 25 anos em que ficaram desprovidas dos seus terrenos e passámos a ter cumeadas completamente isoladas por força da construção de duas barragens, agora é que as pessoas poderão vir a ter água nas suas torneiras dessas mesmas barragens».

A autarca refere-se ao projeto que a Câmara Municipal está a empreender, um investimento de quase cinco milhões de euros para ligar as aldeias e povoados a norte do concelho à ligação à rede intermunicipal da Águas do Algarve. «Não nunca houve uma medida de majoração, ou de beneficiação, ou diferenciação» para as freguesias de Azinhal e Odeleite.

Abastecimento de água em Corujos, concelho de Castro Marim.

«É bom que por algum motivo tenha nascido esta notícia, mas para o despertar de um Algarve que existe e que tem sido esquecido ao nível dos programas de política regional. O impacte positivo destas barragens, há 25 anos no território de Castro Marim, até agora, não o consigo medir diretamente além do uso normal de água, como qualquer outra pessoa. Nem na aldeia de Odeleite ficou assegurado o abastecimento de água dependente da barragem. Isto parece-me que não é de um Estado que pense na redução da assimetria».

Legislação dificulta reutilização da água das ETARs

Para Filomena Sintra, vice-presidente da Câmara Municipal de Castro Marim, a legislação publicada em agosto para a reutilização da água que sai das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), é «altamente restritiva».

«Temos uma conduta construída há 15 anos, que vai de Vila Real de Santo António para a Junqueira. Nunca se conseguiu pôr em carga porque não existia legislação. Agora já há esse enquadramento legal, mas obriga a uma matriz de investimentos, de controlo de qualidade e de tratamento tal, que ninguém vai pegar nisso. Até porque tudo isso está declinado para terceiros. A lei desonera as concessionárias de exploração, neste caso a Águas do Algarve, dessa responsabilidade», explica.

No entender da autarca tal não faz sentido, porque «os três milhões de metros cúbicos de água que saem da ETAR de VRSA, tratada, já foram todos pagos por nós, na nossa fatura. Agora, se a queremos usar, temos de pagar para a redistribuir. Os campos de golfe por onde passa essa conduta utilizam, em média, 800 mil metros cúbicos de água, por ano. Nós desperdiçamos três milhões…dá que pensar», questiona.

«É muito bonito o discurso, mas os instrumentos que se vão desenvolvendo para operacionalizar são cada vez mais difíceis. Isso tudo, traduz-se em custos», ironiza Filomena Sintra.

Alcoutim defende barragens complementares

Apesar da dimensão do concelho, «vamos conseguindo dar conta», diz o autarca Osvaldo Gonçalves. «Estamos a falar sobretudo em zonas onde a água é feita por captações subterrâneas, furos. Felizmente, são situações muito pontuais. Depois, o que vimos aqui no terreno, são aquelas pequenas charcas de abeberamento para animais que existem, mas que já estão praticamente secas. Isto é fruto de dois ou três anos sem chuva. Acho que é importante e fundamental que comecemos a pensar e a trabalhar já no planeamento da construção de pequenas e médias barragens complementares ao sistema multimunicipal porque no dia em que não tivermos sítio para ir buscar água, aí é que vem o problema grave».

Barragem de Odeleite em outubro de 2019.

Carlos Madeira: «nunca vi isto assim»

Trabalhou em Faro, mas desde que se reformou que vive em Odeleite, onde se dedica à agricultura. Carlos Madeira, 67 anos, viu a barragem ser construída e nunca se lembra de ver o nível abaixo dos 27 por cento. Do bolso tira um par de binóculos para verificar a escala e tirar as medidas à seca.

«Baixou 20 centímetros em três dias. Nunca vi isto assim», diz ao «barlavento». «As pessoas ficaram sem os terrenos e ficaram sem água. Tínhamos aqui uma praia fluvial com uma água limpa, fez-se a barragem e isso acabou. Ganhámos porque evitamos as cheias e enxurradas que levavam tudo à frente, mas temos inconvenientes», diz.

Carlos Madeira está preocupado com a seca no nordeste algarvio.

O principal é não poderem usar a reserva de água na rega. Desde 2013 que a Cooperativa Agrícola e Rega de Odeleite, que preside, aguarda o visto do Tribunal de Contas para avançar, projeto que envolve também a Câmara Municipal de Castro Marim. «Será para um regadio de 140 hectares» em pressão gravítica. «É um consumo menor, destinado às várzeas, que são muito férteis. Temos aqui uma agricultura de subsistência, mas há pessoas com ideias de plantar melão e melancia».

Carlos Madeira vê com desconfiança as novas culturas intensivas que vão surgindo no concelho. «Se regarmos uma laranjeira durante oito dias, ela sobrevive. Mas nesses terrenos onde agora estão a plantar, metem uma gota e ela desaparece. Não há acumulação de água. Continua tudo estéril, embora haja forças que dizem que não é assim», exemplifica. Madeira que também é o responsável pela zona de caça associativa não esconde a preocupação com a seca.

«Está a mexer com todo o sistema de vida. Estamos a espalhar bebedouros artificiais de 200 litros», entre a barragem de Odeleite e a ribeira da Foupana para minimizar o impacte da seca.

Trabalho realizado por: Bruno Filipe Pires, Maria Simiris e Nuno de Santos Loureiro.