Há 52 anos que as armas produzidas na fábrica «J Lagoas», em Tavira, são das mais procuradas por atiradores e colecionadores no mercado nacional. Adquirir uma não é fácil, uma vez que são raras e consideradas autênticas «obras de arte». Duas características distinguem-nas de todas as outras: são feitas à mão e «sem olhar ao relógio». Atualmente são produzidas por apenas três homens: o proprietário da fábrica Cláudio Mendonça, 70 anos, o mestre de gravuras Filipe Dias, 47 anos, e o «mais fiel funcionário da empresa», Florival Cruz, 72 anos.
No mercado português, estas armas são rapidamente vendidas por largos milhares de euros e os seus fabricantes garantem: «estão ao nível das melhores armas do mundo como as fabricadas pelas marcas Browning, Pietro Beretta, Perazzi ou até mesmo as inglesas James Purdey. São o culminar de muitos anos de aperfeiçoamento no fabrico e os nossos clientes sabem disso».
«Cada peça é uma obra de arte pronta a ser esculpida. São armas de luxo e o desafio é fazê-las cada vez melhores. A última que fazemos é sempre a nossa melhor», explica Claúdio Mendonça, atual proprietário desta espingardaria tavirense.
Há quem diga que este armeiro já não existe. E que daquele velho armazém em Tavira já não saem armas. Mas não é verdade. A «J Lagoas» é uma das únicas duas fábricas portuguesas, ainda no ativo. Desde 1956, já foram produzidas 3407 armas, a maioria de calibre 12, «muito equilibradas e com boa potência no disparo do tiro e no rácio metros/segundos».
A «J Lagoas» tem o seu ritmo próprio. O conhecimento adquirido ao longo dos anos liberta a pequena equipa da pressão de apresentar constantemente novos modelos no mercado. Mas isso não significa que tenham parado no tempo e que não acompanhem o evoluir desta tão especializada indústria. As armas são potentes e complexas como a última, ainda em construção, avaliada em 12.500 euros: «é uma espingarda de calibre 12 de sobrepostos com dois canos de 71 centímetros, que permitem atirar entre os 15 e os 60 metros, com uma box-lock, extratores automáticos, monogatilho, seletor de tiro, apresentada num estojo de pele, feita com madeiras de raiz de nogueira da Turquia, e gravuras altamente complexas em ouro de 24 quilates. Uma arma personalizada e ergonomicamente adaptada», explica o mestre de gravuras Filipe Dias.
Irá demorar um ano e meio a ser finalizada, e deverá estar pronta em fevereiro de 2017. Será apresentada ao público na Expocaça (Santarém).
As armas de Tavira
Claúdio Mendonça é um homem de poucas palavras. Pelas suas mãos hábeis e calejadas já passaram milhares de armas, mas os seus olhos ainda reluzem com o processo de construção. Numa das paredes da fábrica tem emoldurado o diploma de uma inspeção de trabalho, em 1963, data em que conseguiu o alvará de fabricante de armas de caça. Mais tarde foi alargado para «armas de recreio, defesa e caça grossa». A «J Lagoas» foi fundada no início da década de 1950 por João Lagoas, sogro do atual proprietário. Nascido em 1920, começou a trabalhar na fábrica nos primeiros anos da década de 1950. Inicialmente, reparava e transformava armas, mas, mais tarde aventurou-se na construção.
«Frequentou a escola industrial de Faro na área de mecânica. Depois com o serviço militar, por coincidência do destino, encaixa na carreira de tiro. Na vida militar ganha ainda mais conhecimentos e nessa época começa a produzir uma arma para uso próprio utilizando peças que vai conseguindo ao longo do tempo. Na ânsia de conseguir mais independência financeira emigra para a Venezuela. Aí faz formação em mecânica fina e consegue o dinheiro necessário para voltar a Portugal e realizar o seu sonho: montar uma fábrica de armas. Tudo mudou quando um dia comprou cinco toneladas de aço sueco para fazer canos, a parte mais complicada em termos de assearia. E desde esse tempo, ainda hoje temos aço que não conseguimos gastar. É um material maravilhoso», explicou Cláudio Mendonça.
A empresa chegou a ser uma das maiores empregadoras da região à época, com 32 pessoas ao serviço, a produzirem uma arma por dia. A primeira, com o número de série «0000», de calibre 12, ainda hoje está guardada no cofre-forte de Mendonça. Foi feita com recurso a «um martelo, escopro, berbequim de pua manual e um serrote. Nada mais», recordou ao «barlavento».
«Nunca houve uma linha de montagem industrial e daí podermos dizer que são armas artesanais». Desde o início, em homenagem «à sua cidade do coração, Lagoas sempre fez questão de inscrever Tavira nos canos das armas produzidas», prática que se mantém até aos dias de hoje.
O fabricante resolveu guardar todas as armas com «números de série redondos», isto é, uma a cada centena produzida, «da arma 100 à 900». No entanto, essa opção passou a fazer sentido a cada milhar, sendo que na caixa-forte estão as armas com os números de série «1000, 2000 e 3000».
Os trabalhadores faziam tudo desde as molas dos cartuchos até ao desbaste dos canos feitos, segundo métodos conservados e ainda em uso nos dias de hoje.
No início, as espingardas destinavam-se a uma classe mais rural. «A nossa preocupação era fabricar armas para toda a gente, fáceis de utilizar e acessível a todos. Principalmente para os profissionais, que viviam da caça. Armas que custavam dois contos na época! Eram bem mais baratas que as armas importadas na altura. As primeiras andavam todas pelo Algarve. Pelos anos 1970 já éramos bem conhecidos e começámos produzir para fora», recordou Mendonça.
Atualmente são consideradas «de luxo e exclusivas» acessíveis apenas a poucos, quer devido à produção muito limitada, quer devido ao detalhe que a empresa coloca em cada peça. Com uma destas armas, Luis Isidoro foi medalha de prata no campeonato da Europa de tiro ao voo. «Hoje em dia existem muito bons atiradores em Portugal, mas não existem quase armeiros», ironizou.
«Os funcionários foram saindo para a reforma, os custos e a concorrência aumentaram, a legislação de porte de armas tornou-se mais complexa e a crise fez com que diminuíssemos a produção. No entanto, continuamos a fabricar armas, e hoje, com muito mais qualidade e perfeição e extraordinário acabamento. Estamos melhores do que nunca», garante.
Mendonça admite que «um banco de provas oficial teria sido fundamental para testar com ensaios as armas, e para creditar a sua qualidade a nível mundial. A evolução das leis e da burocracia não permitiu que esta indústria se desenvolvesse. Passamos muitas dificuldades em Portugal enquanto armeiros. Uma delas é que como não há indústria paralela que nos permita ter ferramentas específicas, muitas vezes temos de criar as ferramentas para trabalhar». Sobre o futuro da «J Lagoas», o responsável lamenta que «quando construir a última arma, será o fim… mas hei-de continuar até ao último dia da minha vida».
Adquirir uma arma «J Lagoas»
«Não fazemos armas por encomenda porque não temos capacidade de assumir esse compromisso, por isso, a filosofia é fazermos uma peça de cada vez, e quando estiver concluída vamos apresentá-la ao público. Achamos que a melhor ocasião para fazê-lo é durante a Expocaça – Feira internacional de caça de Santarém, a maior do país» onde são rapidamente vendidas.
Legado histórico em livro
O investigador José Vasconcelos decidiu avançar com a publicação de um livro sobre a história da fábrica «J Lagoas» e a sua importância e impacto no Algarve, por forma a imortalizar a sua história. O objetivo é que venha a ser apresentado juntamente com a próxima arma, em maio de 2017.