Estudo «Clima-Pesca» revela a vulnerabilidade do sector das pescas às Alterações Climáticas. Resulta de uma parceria entre cientistas da Universidade do Algarve (UAlg)/ CCMAR e de pescadores de norte a sul do país, segundo explica o investigador e coordenador Francisco Leitão.
barlavento: Como tudo começou?
Francisco Leitão: o projeto «Clima-Pesca» começou há três anos e fechou no final do ano passado. É um projeto MAR2020 e tem uma tipologia que tem a particularidade de ser uma colaboração cientista pescador. Englobámos todos os pescadores, de grosso modo. O que tentámos foi discriminar um pouco os efeitos a nível das diferentes artes de pesca ou dos diferentes sectores, como a pesca artesanal, o arrasto e o cerco, desde norte a sul de Portugal
Quando se propuseram a estudar as alterações climáticas e os efeitos na pesca costeira portuguesa, foi logo com o objetivo de fazer um suporte audiovisual?
Sim, já estava programado no projeto. Tínhamos esta ambição. Já tinha feito outros projetos na área e sempre senti necessidade de partilhar com o sector aquilo que às vezes fica fechado nos bastidores e nos relatórios ou publicações científicas. Essa é das maiores queixas que ouvimos. Então, de forma a minimizar isto, comprometi-me com vários parceiros e associações de pescadores, organizações de produtores, ONGs, e parceiros institucionais a realizar um documentário que sumariza os principais resultados. Estamos também a fazer agora um pequeno livro de bolso para divulgar na comunidade.
Já tinha havido algum estudo prévio que servisse de ponto de partida?
Não havia nenhum estudo e talvez tenhamos sido pioneiros quase a nível europeu. O projeto seguiu um quadro de avaliação sugerido pelo Painel Internacional para as alterações climáticas (IPCC): a previsão do tempo, como vai ser no futuro a curto e médio prazo, quais as consequências dessas mudanças nos recursos marinhos e, por fim, quais processos de adaptação e mitigação. Seguimos um pouco esta filosofia.
Estudaram espécies apenas em meio selvagem ou também de aquacultura?
Peixe da costa portuguesa, marítimo. Claro que em alguns sítios isso coincide com zonas estuarinas ou em baías, como é o caso de Olhão ou da Ria Formosa. Estudámos 76 espécies que correspondem quase a 90 por cento da pesca artesanal, a 75 por cento da pesca de arrasto e 70 por cento da pesca do cerco, todas com valor comercial, em termos de número e volume de descarga.
Mas há muito que ouvimos falar em alterações climáticas. Porquê apenas agora este estudo?
É verdade, mas não ouvíamos falar dos impactos das alterações climáticas nos vários setores. Uma coisa é sabermos, e isso de certeza, que estamos perante mecanismos climáticas que estão a alterar, por exemplo, as propriedades da água ao nível oceanográfico. Todos ouvimos falar em mudanças na temperatura e na alcalinidade, mas outra coisa é saber se essas alterações vão ter consequências, ou não, nos recursos marinhos.
E que sabemos hoje?
Já vimos e sabemos que desde 1950 até 2010, a temperatura da água tem subido, mas de forma diferente na região norte, centro e sul, porque as características da costa portuguesa são diferentes. Quando as pessoas ouvem dizer que a temperatura do planeta vai subir dois graus, não quer dizer que a água em Portugal vá acompanhar, porque existem condicionantes oceanográficas, de tipologia dos fundos e outras que condicionam isso. Nos últimos anos, podemos dizer que tivemos um crescimento na zona sul de 0,2ºC à década, que contransta com a região centro e norte que é de 0,1ºC à década de aumento de temperatura.
Então, a temperatura está a subir mais no sul?
Sim, muito embora seja um aquecimento que se regista mais nas águas de fora, do que propriamente na plataforma continental, onde existe a maior parte da produção biológica, o ciclo de vida das espécies se desenvolve e onde os pescadores trabalham. Até aos 200/300 metros é onde a maior parte de toda a vida marinha e da produtividade maior do mar em todo o mundo se desenvolve, em zonas onde há luz, onde há interação muito dinâmica com a costa e onde existem nutrientes na água.
Um indicador é a subida da temperatura e outro pode ser a quantidade de peixes?
Sim. Os indicadores que vemos se estão a condicionar, ou não, a vida marinha são a produção e a distribuição das espécies. Por exemplo, os peixes adaptam-se a alterações do ambiente marinho, como a temperatura, mudando de sítio para onde o habitat seja mais favorável. As pessoas só olham para o peixe que está no prato, mas a vida começa muito antes. Em média, mais de 90 por cento das larvas de peixe morre devido à variabilidade natural. Portanto, olhamos sempre para produção e distribuição, pois são os fatores que as alterações climáticas podem afetar, nomeadamente devido à falha de recrutamento larvar.
E verificaram alguns?
Não é que esteja tudo bem, mas para algumas espécies, os efeitos podem ser positivos. Nalgumas não acontece nada, e para outras poderá afetar a sua produção e distribuição. Parece que existem alguns condicionantes no caso da lagosta e da enguia. Mas os efeitos das alterações climáticas não ocorrem sozinhos. Ocorrem combinados em simultâneo com a pesca a exercer pressão sobre os recursos.
Mas o que é que acontece com a enguia e lagosta?
São as espécies que chamamos de mais vulneráveis. Por exemplo no robalo, no caranguejo verde, o efeito das alterações climáticas é moderado. Isso é um pouco difícil de distinguir. Mas mesmo a intensidade deste efeito nestas espécies como a lagosta, que são mais negativas, não se espera que seja muito elevada. Portanto, é sinal que pode afetar negativamente. Estamos a falar de valores, quando esmiuçámos mais, de um intervalo de perder entre 10 por cento, no máximo, devido à distribuição e produção das espécies.
É mais predatório o efeito da pesca do que as alterações climáticas?
Não concluimos isso. Mediante o que se apanha e a sensibilidade das espécies, e depois de reunirmos também a opinião dos profissionais da pesca com pareceres científicos, o que verificámos foi que como não podemos aumentar ou diminuir a temperatura ou aumentar e diminuir as correntes do mar, é que agora ainda existe é mais responsabilidade para gerir a pesca. Ou seja, tem mesmo de haver um código de boa conduta que ajude a gerir, porque a melhor forma de nos adaptarmos e mitigarmos os efeitos das alterações climáticas, é utilizar as ferramentas que já sabemos: respeitar os tamanhos mínimos, os períodos de defeso, utilizar menos gasóleo e emitir menos poluição, criar condições para que os pescadores a nível sócio-económico tenham preços competitivos de primeira venda em lota, que foi um dos aspetos que a comunidade mais se queixou. Porquê? Se o pescador vai à lota e vende pouco, sabe que no dia seguinte vai ter de ir buscar mais peixe. Então vai aumentar o esforço de pesca, vai ter de gastar mais tempo, consumir mais. Eles são mais resilientes se houver uma melhor distribuição ao longo da cadeia de pescado de preços mais justos para os pescadores.
Esse problema do leilão em lota é bem conhecido…
Sim, está bem identificado, mas pode ser exacerbado por estes fatores climáticos.
Ou seja, as alterações climáticas podem ser um argumento para se inverter essa lógica que os pescadores há tanto se queixam?
Pode ajudar a catapultar isso. É mais um argumento para que isso possa acontecer, sim. Vou dar um exemplo: a subida do nível médio da água do mar não tem problema para os peixes. Terá no Polo Norte onde os ursos polares perdem o seu habitat. Para os pescadores que têm os barcos em portos palafíticos, ou zonas como em Olhão, em zonas estuarinas, a subida do mar potencia que durante uma vez por ano ou duas, aquelas infraestruturas fiquem debaixo de água, durante um número de horas. Isto gera despesa e problemas para o sector.
Isso vai acabar por acontecer?
A subida do nível médio das águas do mar está prevista que vá acontecer, sim e existem zonas no Algarve que são bastante vulneráveis. A zona de Olhão, por exemplo, algumas zonas onde existem hoje aquaculturas, pensa-se que daqui a 20 ou 30 anos, em picos de equinócio com marés altas, a barreira do limite hidrográfico seja ultrapassada e a água possa gerar perdas.
Estamos a lidar com ecologia e sociologia?
Só assim conseguimos ver se o sector da pesca é ou não vulnerável às alterações climáticas, porque do ponto de vista da ecologia pode não ser ainda, mas do ponto de vista da socio-economia pode ser, sim. Veja-se, o tipo de intempérides ou intensidade com que existem as tempestades. Para os peixes pode ser um problema menor, mas parar a frota de pesca que tem de para a faina, é um problema. Isso mexe com a sociedade. A intensidade do vento ou o número de dias em que eles podem pescar, tudo isso mexe com o dia a dia da pesca.
E já se notam os efeitos?
Sim, mas ao contrário do que estávamos a esperar. Quando começámos este estudo, pensámos que com as alterações climáticas as tempestades iriam aumentar. Falemos no sul, em que se espera um clima mais ameno e há uma grande diferença em relação à pesca do norte. Os pescadores aqui vão mais vezes ao mar. Na realidade, o que os pescadores reportam, é que aquelas grandes tempestades, acabaram. Isto até nem é favorável, porque as tormentas mexem com o mar e passados dois ou três dias de mau tempo, o peixe encosta à terra e eles têm bons rendimentos. Ou seja, o tempo vai ficar mais ameno e potenciar o esforço de pesca. A frequência dos eventos extremos por motivos das alterações climáticas pode ser alterada.
Em que estado está a nossa costa?
A maioria das espécies são resilientes às alterações climáticas. Já estão adaptadas por seleção natural, distribuem-se por uma grande área de latitude e longitude, estão habituadas a lidar com a sazonalidade. Portanto, as diferenças entre os mínimos da temperatura da água aqui na região sul poderá ser entre 8ºC e 9ºC e os 24ºC ou 25ºC no verão. Esta é a capacidade térmica natural destas espécies temperadas. Distribuem-se desde o Mediterrâneo ou desde zonas da África Central até quase ao Canal da Mancha em França. Portanto, estamos num sítio privilegiado e o nosso ecossistema é resiliente. Até fazemos parte do braço norte, do grande sistema de upwelling das Canárias, dado como sendo o mais resiliente às alterações climáticas. Quando falamos no aumento de 0,2ºC à década nalgumas zonas, ou de 0,1ºC, até chegar ao intervalo máximo de tolerância, ainda vai demorar algum tempo. O nosso ecossistema, do ponto de vista oceanográfico, é resiliente. Depois há outra coisa que ajuda. Desde 1985 que se evoluiu muito ao nível científico e de recolha de dados biológicos. A implementação de quotas e de normas, ajuda porque um stock resiliente às alterações climáticas, é um stock cujo o nível de estado biológico é elevado.
Os pescadores estão conscientes da necessidades de se adotar boas práticas de gestão?
Sim, mas o que conta é o seu dia a dia. Quando fizemos inquéritos de campo perguntámos se a ciência e os políticos servem para alguma coisa e responderam que não, numa entrevista impessoal e rápida. Depois, quando se começa a interagir, nos workshops, afinal a ciência já era necessária. Portanto, dando a volta, têm consciência, mas no dia a dia é preciso trazer peixe para terra. Os pescadores ouvem falar das alterações climáticas, mas não podem fazer nada. A única coisa que podemos é dar-lhes literacia para se adaptarem e mitigarem o efeito. Mas já têm tantas regras para cumprir. Penso que a maioria dos novos mestres já é mais consciente.
Está na calha um documentário, certo?
Sim, vai sair para o grande público. Contratámos uma empresa, a Mar de Histórias, que tem um protocolo com a RTP. É um filme de 25 a 30 minutos. Em termos de guião, aborda a parte da literacia do mar, a parte oceanográfica e que pesca teremos em 2050. Está também previsto, para breve, o lançamento de um pequeno livro, em suporte papel e formato digital, dedicado ao sector, com textos sucintos e infografias que também poderá ser útil no ensino e acessível a um público mais generalista.
Isto envolveu quantos investigadores?
Acima de 17 pessoas no âmbito dos dois projetos com bolseiros e teses de doutoramento. E ainda vamos aprofundar dados. Quando fazemos previsões para o futuro, estamos a falar de uma janela para 2040/2060. As nossas simulações e os nossos resultados são esse tempo, mas com base na situação atual, daquilo que sabemos do clima hoje (2020 e 2021). Se entretanto o painel de alterações climáticas mudar, teremos de voltar a fazer tudo outra vez. Calculámos dois cenários, na realidade. Um mais moderado e outro mais economicista e verificámos estes resultados, considerando as condições atuais para ambos, Claro que isto por ir tudo por água abaixo. As espécies estão muito ali no limbo do moderado, podem passar todas para mau, podem passar todas para bom, ou pode não acontecer nada. A monitorização dos efeitos das alterações climáticas é algo que necessita de ser acompanhado de acordo com o que vai saindo.
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Projeto «Clima Pesca» auscultou o sector
Francisco Leitão, investigador do Centro de Ciencias do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve, tem vindo a estudar a vulnerabilidade do sector da pesca em Portugal, tendo em linha de conta os cenários de alterações climáticas esperados para os próximos 20 a 30 anos e com base nos dados recolhidos de norte a sul do país, nos últimos três anos. «Fizemos mais de 600 inquéritos que aproveitámos, várias entrevistas, inquéritos e workshops», organizados com as associações do sector em Alvor, Aveiro, Olhão, Peniche, Sagres, Setúbal e Viana do Castelo. Os investigadores explicaram os efeitos que as alterações climáticas terão no sector das pescas aos pescadores, que também relataram as diferenças que já sentem no mar. Todas as comunidades pesqueiras relataram ter notado já, em algum grau, o efeito das alterações climáticas em termos de condições meteorológicas, alterações na distribuição das espécies, aumento da temperatura da superfície do mar, entre outras. Embora cada comunidade tenha as suas próprias especificidades, algumas das preocupações e potenciais soluções discutidas são comuns. Dos encontros, intitulados «Conversas Clima-Pesca: Adaptação da pesca de Portugal às mudanças climáticas», surge «uma proposta sectorial para a adaptação às alterações climáticas. A maior parte das medidas foi consensual, de concordância», diz o coordenador. Uma das dificuldades é a elevada burocracia e as leis em vigor. «Se uma determinada espécie, por força das alterações climáticas, não gosta da temperatura das águas do Algarve e vai para paragens mais frescas a norte, um barco de pesca artesanal não pode sair da área de jurisdição da sua capitania para a ir apanhar? Tem de haver flexibilidade», exemplifica.
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Pesca do caranguejo também já está estudada
Francisco Leitão, doutorado em Ciência e Tecnologia das Pescas, Biologia das Populações, diz que «nada se sabe sobre a pesca do caranguejo em sistemas estuarinos e lagunares em Portugal. Contudo, todos gostamos de caranguejo. Na verdade, têm sido capturados de norte a sul, desde há décadas, sem que haja qualquer registo desta atividade». Por isso, uma equipa de investigadores do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve (UAlg) passou «quatro anos em em campo a desvendar os aspetos desta pescaria» no âmbito do projeto «Crustapanha».
O objetivo foi estudar a ecologia, biologia e dinâmica populacional dos pequenos caranguejos com interesse comercial existentes ao longo da costa portuguesa. Deste estudo resultará um contributo para a regulamentação e gestão sustentada desta faina. E também um documentário, a apresentar em breve.
«A apanha de caranguejos tem merecido reduzida atenção a nível nacional, assim como a nível da União Europeia, já que grande parte dos estudos desenvolvidos pela comunidade científica europeia são dirigidos sobretudo para a pesca industrial ou semi-industrial que exploram os grandes recursos.
A informação a nível dos desembarques por espécies de pequenos caranguejos, na base no Instituto Nacional de Estatística (INE), Direção-Geral das Pescas (DGRM) e Docapesca, aparecem como categoria mista. As espécies de caranguejos não são discriminadas. As estatísticas relativas aos pequenos caranguejos interditais são assim escassas e pouco detalhadas. Esta situação deriva, por um lado, do facto da pequena pesca e da apanha terem um peso direto muito pequeno no Produto Interno Bruto (PIB) e no contexto socioeconómico da região. E por outro lado, pelas dificuldades em seguir estas atividades não declaradas e muitas vezes não licenciadas». No entanto, a apanha do Caranguejo-da-lama (Panopeus africanus); Caranguejo-verde ou caranguejo morraceiro (Carcinus maenas); Escava-terra ou bocas-de-cavalete (Afruca tangeri), podem assumir uma importância crescente.