Em Cacela Velha há uma reserva botânica da flora algarvia ameaçada

  • Print Icon

Teresa Patrício está há 18 anos a criar um pequeno reduto de grande valor biológico numa paisagem cada vez mais pressionada. Jardim representativo da flora do Algarve surgiu há 11 anos.

«Aqui há alecrim do monte, conhece? É muito menos exuberante, mais fininho, a flor não é tão azul, é mais cor de rosa, mas sinta o cheiro», desafia Teresa Patrício, residente em Cacela Velha desde 1987 e mentora de um jardim representativo da flora do Algarve, num terreno de quatro hectares, propriedade da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António.

Rodeada de sabinas e perpétuas das areias, vegetação da retaguarda do cordão dunar que ali já não existe, recorda ao barlavento as origens deste projeto. «Toda a várzea de Cacela Velha foi ancestralmente agrícola.

Quando a autarquia o adquiriu passou de terreno agrícola a terreno sem interesse, com campismo selvagem, caravanas e entulhos da construção civil. Foi também uma lixeira de verdes. Carecia de uma intervenção, até porque estava em cima da mesa um projeto para um parque de autocaravanas. Era importante começar a fazer aqui qualquer coisa», recorda.

O princípio do projeto remonta a 2002 com o realojamento de animais domésticos, pombais e galinheiros de um antigo pescador reformado que ali os criava em estruturas de telhados de amianto, dentro da zona que é hoje para prospecção arqueológica.

«Então, fez-se um corta-fogo para delimitar o espaço. Surgiu também a ideia de se abrir um talude capaz de reter as águas pluviais que vinham» de terrenos mais elevados, e que faziam «crateras porque não existia qualquer vegetação. A agricultura que se fazia aqui era de cereais, e portanto não existiam árvores».

Hoje, em quatro hectares de terreno, o atual jardim representa apenas uma faixa, ao lado do pomar tradicional de sequeiro que também faz parte da intervenção.

«O talude é fundamental neste projeto. A certa altura tive conhecimento de 25 oliveiras centenárias e duas alfarrobeiras que iriam ser abatidas em Silves. Meti mais esse projeto à autarquia, para as colocar aqui graciosamente», sugestão que foi aceite.

«Hoje, parece que estiveram sempre cá». Uma vez construído o talude para reter as águas da chuva, «surgiu a ideia de fazer um jardim representativo da flora do Algarve. Foi aprovado».

A lixeira municipal foi sendo retirada, «mas ficaram para mim quatro anos de apanha de acácias, todos os invernos», recorda. «Começamos a fazer as primeiras plantações com as escolas. Pensei em dinamizar uma campanha de apadrinhamento de árvores para o pomar tradicional de sequeiro.

Os padrinhos teriam de investir no custo da árvore e consegui 150 pessoas, das quais 50 concordaram em ajudar o todo o projeto, nos dinheiros para lavrar o terreno e instalar o sistema de rega gota-a-gota. O trabalho fez-se e está aqui. Está a ver? Há uma linha de sobreiros que dão pelo joelho, mas crescerão», descreve.

Quem são os padrinhos? «São pessoas que se vão conhecendo, que se mostram interessadas e passam a palavra. Alguns estrangeiros residentes. Poucos algarvios», revela.

Há também dois ou três voluntários muito importantes que complementam o trabalho de Teresa Patrício que investe duas horas diárias a cuidar dos caminhos do jardim e da coleção botânica da flora do Algarve. Há milhares de insetos que andam à volta. É um último reduto de biodiversidade.

E como chegou à coleção? «Por pesquisa minha, recolha de sementes e também há uma série de plantas que vieram resgatadas de outros terrenos. As espécies que existem aqui são já muitas mas, ainda assim, não chega. A verdade é que há uma grande dificuldade em encontrar plantas autóctones do Algarve. Não há nos circuitos comerciais. O que existe são sementes de exóticas».

Na falta de soluções, é preciso vascular campos e serras, «temos de ir ao campo recolher sementes, ver onde está a planta, reconhecê-la e esperar que dê semente. É um trabalho para todas as quatro estações». «Há uma planta que é a nêveda ou erva-das-azeitonas. Por vezes assaltam-me o canteiro.

Porquê? Porque é difícil de encontrar. Há cada vez menos manchas onde estas plantas podem sobreviver. O facto dos matos terem de ser cortados em março faz com que desapareça toda uma flora que está a nascer naquele momento. Se já não há insetos, imagine, com os campos todos limpos numa altura em que está tudo verde, a natureza ainda não cumpriu o seu ciclo, desaparecem as plantas, os insetos, as sementes. Cada vez haverá menos biodiversidade porque isto não é sustentável. As nossas pequenas orquídeas silvestres, por exemplo, que nada têm a ver com as grandes da Holanda, não têm hipótese. São destruídas logo à nascença. Há que limpar os terrenos, mas numa altura em que está toda a vegetação verde é uma perfeita loucura. Vai destruir tudo o que existe. Em março está tudo a nascer. Não faz sentido», critica.

Teresa Patrício admite que ainda falta muito para que o jardim possa cumprir o seu objetivo.

«As urzes, por exemplo, que têm sido difíceis de conseguir. A camarinha, que ainda não consegui arranjar. O Algarve é rico em flora. Há aqui plantas que vieram dar outra vez corpo a uma flora que não está globalmente extinta, mas que localmente desapareceu. Por exemplo, a palmeira-anã, cujo crescimento é muito lento. Havia aqui nas arribas de Cacela Velha, havia murta, e quase que podia dizer que no litoral de Vila Real de Santo António só conheço uma mancha.

No futuro? «Gostava de chegar a um ponto em que este projeto é considerado um projeto importante para Cacela Velha. Isso leva tempo. É fazer algo credível aos olhos das pessoas em geral, dos algarvios e das entidades que decidem», diz.

«O interesse é criar um sequeiro tradicional que seja autónomo, que precise de sistema de rega só nos primeiros anos, e que tudo cresça de forma natural, como sempre aconteceu no Algarve. No Algarve tal como ele era».

Teresa Patrício orgulha-se que as escolas visitem o jardim, com o apoio do Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (CIIPC). «Sobre isso, estamos muito agradecidos». Perda de valores naturais e culturais Este é um verão atípico, mas ainda assim não faltam banhistas.

O parque de estacionamento foi alargado para 300 lugares e há quem pare os motores mesmo em frente aos limites daquele que pretende ser um pomar tradicional de sequeiro, algo cada vez mais raro naquela zona.

«Há curiosos que reparam e vêm espreitar. Estou sempre pronta para explicar o projeto. Depois, há outras pessoas menos interessantes que roubam as plantas e, espante-se, também roubam a sinalética. Levam tudo para os seus paraísos privados e pessoais. É muito triste», lamenta.

«Agora com a pandemia até já tenho uma pinça para apanhar os lixos e as beatas», ironiza. Teresa Patrício também não compreende porque se deixou de investir na vertente cultural em Cacela Velha.

«A Poesia na Rua era um evento fantástico que deixou de ser financiado. Também havia um ciclo de cinema ao ar livre, no cemitério antigo, que era um projeto muito mediterrânico. Agora com esta pandemia, não sabemos se estas manifestações artísticas e poéticas voltarão. Quando vim para cá viver, há 40 anos, Cacela Velha era conhecida como um sítio maravilhoso do Parque Natural da Ria Formosa. Era conhecida pelas suas dunas, pela nidificação de aves que já não existem hoje em dia. A informação que hoje passa sobre este local é de uma Cacela Velha balnear, que começou em 2010 com a abertura de uma barra. Destruiu-se o que existia, como os viveiros, e abriu-se ao turismo de massas a possibilidade de não pôr o pézinho na casca de ostra. Como já não há vida, resta um areal a perder de vista. É só areia. Que melhor cenário para a melhor praia de Portugal inteiro e arredores? Tudo isto é muito triste», sublinha.

Mas «ainda agora a missa vai no adro. As dunas foram, ao longo dos tempos, o que mais preservou Cacela Velha. A dificuldade de ir para a praia era grande, tinham-se de atravessar lodos e dunas. Não havia barcos».

Entretanto, a norte da Fábrica preparam-se os terrenos para mais uma grande plantação de abacates.

«É uma desgraça sem fim. Apesar de tudo o que se sabe sobre o consumo de água que estas monoculturas requerem há a destruição de todo o pomar de sequeiro em prol dos abacateiros», sublinha.

No jardim há pormenores interessantes. Duas construções toscas de madeira servem de hotel para insetos, que ali travam o avanço de um deserto biológico. Cumprem a função da árvore que caiu, morreu, onde os insetos entram e põem os ovos. Serão também abrigo seguro para outras espécies, como o lagarto sardão, avistado pela última vez já lá vão mais de 30 anos.

A maré trouxe um baú antigo. «Talvez tenha sido de um naufrágio antigo, quem sabe?» Teresa Patrício recuperou-o. Serve para a compostagem doméstica. E há sementes que sobrevivem, aqui e ali nasce um tomateiro espontâneo.

«E aquela flor? É da família das malvas. Nunca tinha visto uma»… O botânico francês Jules Alexandre Daveau, contratado para criar o Arboreto do Jardim Botânico de Lisboa no final do século XIX, andou pelo Algarve a estudar a flora. Encontrou um mundo à parte onde cinco em cada 100 espécies só aqui existiam. Publicou o relatório no Jornal de Ciências Matemáticas em 1882 e reportou que apenas 27 por cento das 1161 espécies que encontrou na região eram de origem europeia.

Em Cacela Velha continuam os atropelos

Na manhã de dia 17 de julho, a Junta de Freguesia de Vila Nova de Cacela, através do presidente Luís Rodrigues, acompanhou os elementos do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) na localização, após denúncia, de uma desbravação dentro da área protegida em Cacela Velha para acesso de um terreno privado à Ria Formosa. Após a localização, o ICNF tomou conta da ocorrência. Este é o mesmo local onde em 2018 ocorreu uma ação de limpeza de mato que destruiu o coberto vegetal, sem que até hoje se conheçam os fins de tal iniciativa. O terreno em causa fica em plena zona de Reserva Ecológica Nacional (REN) e Reserva Agrícola (RAN) estando também na área de jurisdição do Parque Natural da Ria Formosa (PNRF).

Fotos: Filipe da Palma, Bruno Filipe Pires, Teresa Patrício e Nuno de Santos Loureiro.