Conjunto de pedras litográficas esteve esquecido durante quase três décadas debaixo de uma laranjeira em Almancil. Maioria das peças está em relativo bom estado de conservação.
A história reza que, uma vez consideradas inúteis, um conjunto de pedras litográficas foi parar a uma antiga sucata, algures na zona de Portimão. A dada altura, foram disputadas por dois colecionadores, um de Boliqueime, que já as tinha apalavradas e por um outro de Almancil, que duplicou a oferta do concorrente e acabou por levá-las para casa: cerca de 300 pedras, três paletes de madeira, com 100 unidades cada.
O tempo passou e foram precisos cerca de 30 anos até voltarem a ser descobertas, neste caso por Hugo Batalha, que em setembro último, fundou o mais recente antiquário de Faro, a propósito de um negócio que nada tinha a ver com este espólio.
Habituado a procurar tesouros por entre recheios de casas, leilões, vendas particulares ou negócios de oportunidade, Hugo Batalha não esconde a admiração por este achado, que esteve décadas debaixo de uma laranjeira, tapado do sol e da chuva por plásticos, numa propriedade algures no concelho de Loulé.
«À primeira vista, reparei em algo que parecia um monte de pedras de calçada. Aproximei-me e começo a ver uma série de desenhos lindíssimos, estilo Art Nouveau», lembra.
«Apercebi-me que se tratava de pedras litográficas da indústria conserveira algarvia.
Investiguei e percebi de imediato que hoje restam muito poucas», diz o empresário.
Mais tarde, depois de ter limpo alguns exemplares, reparou que «são a matriz de dezenas de marcas de conservas que eram feitas aqui no Algarve, algumas com rótulos em inglês, alemão, italiano e espanhol, embaladas para a exportação, em mercados tão longínquos como Nova Iorque ou Buenos Aires».
Uma hipótese
Supondo que há alguma veracidade na história destas pedras litográficas poderem ter vindo da zona de Portimão, vale a pena atender aos factos históricos para traçar uma hipótese em relação à sua eventual origem.
«Havia apenas duas fábricas que tinham a sua própria litografia: a Júdice Fialho e a Feu Hermanos. Mas quando se fala em Portimão, não é só do lado direito do Arade mas igualmente a sua margem esquerda. Constituiam o Centro Conserveiro de Portimão, integrando Portimão, Ferragudo, Parchal, Mexilhoeira e Carvoeiro. Havia também, em frente ao apeadeiro de comboio do Parchal, e ainda hoje está lá a chaminé, uma litografia chamada Ramirez Perez Cumbrera & Compañia, casa espanhola fundada em 1880, que tinha filiais em Olhão, Portimão, Setúbal e Ayamonte», explica José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão.
Numa publicidade publicada na Revista Internacional de 1939, esta empresa anunciava a prestação de serviços de litografia sobre folha de flandres [uma liga metálica de folha de lâmina de ferro revestida por uma camada de estanho para aumentar a resistência à corrosão] e a «construção especial de latas para conservas de peixe em azeite, salmoura e para todos os produtos em todos os formatos», além de materiais diversos para a indústria conserveira.
«Todas as outras fábricas de conservas mais pequenas que não possuíam litografias próprias, tinham de se servir destas empresas. Também existia a Litográfica do Sul, em Vila Real de Santo António, e havia outras congéneres que, no fundo, forneciam a matéria-prima de embalagens. Nem todas as indústrias podiam ter uma litografia própria, porque envolvia grandes meios», acrescenta Gameiro.
Em boa verdade, uma das pedras agora encontradas contém a matriz da marca «All-Right», produzida na Portugália Industrial, Lda, que fazia parte do dito Centro Conseveiro de Portimão. «E isso reforça a possibilidade de ter sido produzida e impressa na litografia Ramirez Perez Cumbrera & Compañia».
Fogo e desilusão
Muitos dos rótulos são autênticas obras de arte. Há, por exemplo, latas de atum e de anchovas, de produtores italianos instalados em Olhão, como Caetano Mantero e Francesco Cocco, e também outras com a indicação de origem de Ceuta (Espanha), Cadiz, Tavira, Portimão, Lagos e Vila Real de Santo António. Há ainda referências fora da região, como a marca de massa de tomate produzida pela Sociedade Colocadora de Castanheira do Ribatejo e uma outra da lisboeta CORESA, Conserveiros Reunidos, SARL.
E algumas têm marcas dos famosos «pirulitos» de outros tempos.
Algumas das pedras do lote têm anotações sobre as cores a que se destinavam e também referências manuscritas na lateral, possivelmente para serem mais facilmente encontradas no arcevo quando fossem necessárias. Questionado sobre se ainda há muito a descobrir sobre a indústria conserveira portuguesa, José Gameiro é perentório.
«Lembro-me de ir ao Patacão, em Faro, já no final do século XX, onde estavam os arquivos de muitas fábricas do Algarve. Na altura, funcionava aí um departamento relacionado com toda esta parte de documentos de arquivo industrial. Ainda consegui alguns», antes do incêndio que viria a destruir tudo.
«Sim. Tinha o arquivo morto de algumas fábricas de Portimão, por exemplo. Quando as fábricas fechavam, muitas vezes, os documentos e arquivos eram queimados. Faziam-se fogueiras. Não havia proteção porque não havia legislação. Muitas vezes, os arquivos eram simplesmente destruídos. Quem estava ligado ao património industrial no século XX eram os sucateiros e alguns antiquários. Tinham sobretudo a visão de que tudo era ferrugem, nada era património, nada interessava. Era essa a lógica. As coisas eram vendidas ao quilo. Também é verdade que não haviam estruturas que aproveitassem esse tipo de património… e portanto, não havia um destino imediato para lhes dar. É preciso perceber toda uma relação social que estava estabelecida. Não era fácil inverter se não houvesse alternativas. Felizmente, começou a existir uma perceção e valorização deste tipo de património mais ligado ao mundo do trabalho industrial», refere José Gameiro.
Retomando a pergunta: ainda há então muito por descobrir? «Sim. Creio que essas pedras litográficas fotografadas, vistas com algum critério de investigação e de pesquisa, podem ser muito interessantes. É evidente».
Quando o Museu de Portimão ainda era apenas uma ideia embrionária, «nessa altura, também procurei ir ao encontro, aqui no Algarve, de antigas litografias e fui, justamente, a Vila Real de Santo António à antiga Litográfica do Sul, que se iniciou no final dos anos 1930. Fui a pensar que iria encontrar muitas pedras litográficas, e informaram-me que essa atividade já tinha acabado. Como já não precisavam delas e ocupavam muito volume, foram usadas nas obras de renovação dos edifícios. A litografia, nessa altura, como quase todo o património industrial, não estava valorizado», lamenta.
«Se calhar, sentiram que tudo aquilo já não lhes fazia falta. Também não havia muita investigação nessa área. Claro que fiquei um pouco desiludido. A realidade, às vezes, também tem disto», admite.
Ainda nessa altura, «nos anos 1980, quando visitei as antigas instalações já desativadas da Júdice Fialho e vi lá as máquinas litográficas fiquei impressionado», recorda.
«Fazia parte da indústria conserveira. Não eram apenas as embarcações, nem as latas, mas também este processo de ilustração, que é a parte artística das fábricas», detalha. «Muitos litógrafos eram italianos, espanhóis e mais tarde» o ofício começou a interessar também a portugueses com talento para as artes gráficas.
Hoje, o Museu de Portimão, um núcleo dedicado à litografia, tal e qual se fazia, com toda a maquinaria que ali se encontra preservada. Há pedras litográficas em exposição e outras em reserva. «O que queremos sublinhar não é a pedra em si como objeto isolado, mas o todo o contexto histórico. E, mais importante ainda, é a parte humana, os intervenientes, os operários e os desenhadores».
Uma outra questão. Será possível recuperar e restaurar todas estas pedras depois de décadas de exposição aos elementos? «É evidente que terá de haver uma limpeza mínima, para que cada pedra possa ser estudada, uma a uma. Será preciso investigar o estado, se têm algum tipo de fungos, ou materiais que não lhes pertencem e se estão a interromper um pouco o ciclo de conservação».
Que destino?
«Quem comprou isto, fê-lo porque quis perservar a história, senão isto já teria ido há muito para o lixo», diz Hugo Batalha. Trata-se de um colecionador, especializado em artigos de exterior, e que por acaso já nem se lembrava do espólio que adquiriu há 30 anos.
E agora, que destino dar a estas pedras? «Está tudo em aberto», responde Batalha. «Poderão vir a ser vendidas individualmente ou em conjunto a colecionadores particulares, ou como lote a uma instituição interessada, como uma autarquia. Gostava muito que isso acontecesse».
Entre as pedras, existem algumas de marcas produzidas por empresas que ainda hoje estão no ativo.
É o caso da Conserveira do Sul, da Ramirez, Nobre ou Bom Petisco, que eventualmente poderiam ter interesse em recuperar estes artefactos para as suas coleções.
Uma coisa é certa. «Depois de limpas e de lhe dar o fixante para que a tinta não desapareça de vez, estou disposto a fazer um levantamento fotográfico detalhado para disponibilizar a investigadores, historiadores, estudantes universitários, a quem poderá ter interesse» em aprofundar este tema, que até pode ser abordado do ponto de vista da história do design.
O valor estimado para cada peça, «de acordo com o que encontrei à venda online, vai dos 500 aos 1000 euros. Isto é um tesouro. Quem sabe hoje que antes do turismo, houve uma grande indústria no Algarve? Eram centenas de empresas a fabricar e a vender conservas», conclui.
Esta, contudo, já não é a primeira vez que aparece um achado relacionado com a antiga indústria conserveira do Algarve. Veja-se o achado na antiga casa da família Cocco, em Olhão.
Génese da lata colorida
A litografia, espaço existente nas grandes fábricas conserveiras, como as do industrial algarvio Júdice Fialho constituía um verdadeiro «núcleo artístico» reunindo litógrafos, desenhadores e impressores. O processo iniciava-se com uma composição gráfica (desenhos, letras e cores) passada para papel, a partir de um original desenhado na pedra litográfica, utilizada como matriz para impressão, no prelo de madeira. Seguia-se a transferência dos desenhos para as chapas de zinco, uma por cada cor, que na máquina rotativa vertical, imprimiriam as chapas de folha de flandres. Depois de envernizadas, eram transformadas em latas. As pedras, muito calcárias, eram importadas da Baviera, Alemanha.

«Cada cor tinha uma pedra específica. E não quer dizer que as que sobreviveram até hoje sejam as originais. Porquê? Porque as pedras eram limpas e reaproveitadas várias vezes. Por isso, as que vemos hoje só mostram os últimos momentos da sua vida útil», explica José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão.
Depois de ter sido intensamente usado, o processo litográfico começa a entrar em desuso no final da primeira metade do século XX com o advento do offset tipográfico.
Aquisição museológica tem regras
Ainda que o atual proprietário mostre intenção de as ceder a um espaço museulógico, essa aquisição, segundo explica José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão, está sujeito a regras. «Qualquer museu, e sobretudo os que estão ligados à Rede Portuguesa de Museus, como é o nosso caso, tem um código deontológico e uma política de inventariação e aquisição. Portanto, primeiro que tudo, há que se perceber se as peças têm interesse para o próprio discurso, visão e programa do museu. De qualquer modo, qualquer que seja o procedimento a seguir, seja qual for o interesse do eventual proprietário em querer vender, qualquer processo de aquisição tem de assegurar deontologicamente, a legalidade». Ou seja, «o primeiro passo é saber como é que o proprietário legal das peças as adquiriu. Não pode entrar no acervo de um museu uma peça que não se saiba exatamente qual sua origem legal», refere.
Coleção privada dá origem a nova loja
O vintage tem sido moda e a palavra «antiquário» quase desapareceu do léxico. A tendência, contudo, está inverter-se. Quem o diz é Hugo Batalha, empresário que decidiu abrir o seu acervo pessoal ao público. Em setembro abriu a «Batalha Collection», na Rua Rebelo da Silva, 47, em plena baixa de Faro.
A oferta é «eclética» e tem peças para várias carteiras e gostos. «Tenho um pouco de tudo. De tapetes persas, a escultura, pintura, arte sacra, arte africana, cristos populares, marfins, louça oriental, satsumas japoneses do século XVIII e XIX, mobiliário romântico, a candeeiros ultra-modernistas», enumera ao barlavento. A arte, sobretudo a pintura, é um ponto forte, basta ver quadros de Joaquim Rebocho, famoso pintor de Vila Real de Santo António, que estão ladeados por «naifs» de artistas convidados. «Hoje, mesmo as pessoas que têm casas ao estilo IKEA gostam de ter uma peça que se destaca e que dá personalidade. Pode ser um espelho, uma iluminação, um quadro diferente. A nossa casa é, ao fim e ao cabo, um espelho de quem somos e daquilo que gostamos», afirma.

A loja, apesar de recente, tem tido boa aceitação. «A peça mais cara que tenho é um cristo indo-português em marfim, do século XVIII, com as feridas em rubis. Foi feita na Índia, e estava numa vivenda senhorial no Restelo. Custa à volta de 7000 mil euros», embora haja peças dos 50 aos 50 mil euros. A pensar na época festiva que se aproxima, Batalha está restaurar uma série de miniaturas de comboios dos anos 1920, que em breve estarão disponíveis.